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Atrás do sangue azul, laranja, incolor…

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h34 - Publicado em 31 Maio 1998, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

A cor é o que menos importa. Pode ser azulado, transparente ou em tom de ferrugem. O importante é que funcione como o velho, bom e natural líquido vermelho que você tem aí correndo em suas veias. A ciência está em busca do sangue artificial.

Querer é poder, diz o ditado. Mas, em ciência, a voz do povo muitas vezes está errada. Há 130 anos os cientistas querem encontrar um substituto para o sangue que, como ele, transporte o oxigênio para as células. Até agora, nada. Em 1868, médicos da Universidade Cambridge, na Inglaterra, experimentaram em cachorros injeções de hemoglobina de outro cão. Os receptores morreram com os rins em frangalhos.

Outra história antiga, de 1960, é a do ratinho que, por acidente, mergulhou no vidro repleto de um líquido transparente e continuou respirando submerso. Foi na Universidade do Alabama, nos Estados Unidos, e o tal líquido era o perfluorcarbono (PFC), que, diferentemente da água, absorve o oxigênio do ar e por isso pode oferecê-lo aos pulmões tanto quanto a atmosfera. Com o rato escafandrista, os cientistas descobriram também que o PFC soltava o oxigênio nas quantidades necessárias. Até hoje os pesquisadores persistem nesses dois caminhos. Alguns testam fórmulas à base da molécula de hemoglobina. Outros aprimoram versões usando o PFC. Só que agora a corrida está mais acirrada, desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1997, deu o alarme: os bancos de sangue do mundo inteiro vão logo, logo ficar no vermelho.

Os bancos anêmicos

Nos Estados Unidos e na Europa, a quantidade de gente que doa sangue está caindo, em média, 5% ao ano. No Japão, a situação é pior: a queda é de aproximadamente 7%. Ninguém sabe ao certo por que está havendo queda nas doações, mas a explicação deve ser o medo ao contágio. “No Brasil não sabemos se isso está acontecendo, porém é provável”, diz o hematologista mineiro Hélio Moraes de Souza, que em outubro do ano passado se mudou para Brasília para estar à frente da Coordenadoria de Sangue e Hemoderivados (COSAH) do Ministério da Saúde. Uma de suas metas é botar ordem na casa. Até hoje o governo só tem (alguma) noção sobre o volume e a qualidade do sangue na rede pública, deixando de contabilizar os hospitais privados. Sem um retrato dos bancos de sangue em geral, não se sabe se a oferta aqui está caindo, como no resto do mundo.

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Enquanto existe cada vez menos sangue disponível, cada vez mais pacientes necessitam de transfusões. “É uma conseqüência da evolução da Medicina”, explica o hematologista Marcelo Cliquet, da Fundação Pró-Sangue de São Paulo. “Alguns tratamentos de câncer destroem a medula óssea, que fabrica as células sanguíneas, e, até ela se recuperar, a pessoa vai precisar de dez unidades de sangue diárias durante vinte dias”, exemplifica. Uma unidade de sangue tem 480 mililitros e corresponde àquele saquinho que se enche durante uma doação (veja quadro à direita). Feitas as contas, um único paciente de câncer pode nescessitar, nesse período, de duzentos doadores.

Por motivos como esse, o mundo precisa de 7,5 milhões de litros de sangue a mais por ano e, se continuar assim, por volta do ano 2020 vão faltar 9 milhões de litros em seu estoque. Diante desse quadro anêmico, o sangue artificial seria a salvação. “Além de não oferecer risco de contaminação, o sangue artificial seria abundante”, diz o imunologista Peter Collins, da agência do governo americano que controla a busca de novos tratamentos, a FDA (Food and Drug Administration). “Temos só duas décadas para evitar uma calamidade”, conclui.

Para apressar uma solução, os americanos passaram a testar em seres humanos seis fórmulas que ainda apresentam problemas (veja quadro à esquerda). Uma delas, transparente, usa o PFC do rato mergulhador dos anos 60 e é a que menos chance tem de vencer a parada, por ser tóxica. As outras cinco, do branco azulado à cor de ferrugem, são à base de hemoglobina. Acontece que essa é uma molécula que, por enquanto, só trabalha direito quando está no sangue de verdade.

As fórmulas que circulam

Nos bancos de sangue, os glóbulos vermelhos não duram mais do que 42 dias. Mas o material com prazo de validade vencido está sendo aproveitado por dois laboratórios americanos para a extração da hemoglobina. Um deles está revestindo a molécula transportadora do oxigênio com uma grossa capa de polímero. A idéia é transformar a pequena hemoglobina numa molécula grandalhona. Caso contrário, ela se enfia nos minúsculos canais dos rins, deixando-os fatalmente entupidos. Aumentar o tamanho da hemoglobina é um dos desafios de quem pesquisa sangue artificial.

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Já a empresa de biotecnologia Somatogen, em Boulder, no Colorado, preferiu botar bactérias Eschirichia coli para trabalhar. Há catorze anos, o cientista japonês Kiyoshi Nagai descobriu uma manobra para transformar esses micróbios em fabriquetas de hemoglobina, modificando o seu código genético. Mas a hemoglobina das bactérias, sem as enzimas do glóbulo vermelho por perto, pegavam o oxigênio no pulmão e não o largavam mais. “Isso já foi resolvido”, afirma Nagai à SUPER. “Em certas doenças genéticas, o indivíduo tem uma espécie de anemia em que a hemoglobina se encontra alterada, com um de seus aminoácidos fora de lugar”, conta o pesquisador. “Por isso solta o oxigênio rápido demais. Para agilizar a hemoglobina fabricada nas bactérias, a gente reproduziu essa alteração.” O sangue da Somatogen, que já tem até nome, Optro, está sendo usado em pequenas doses durante cirurgias e em pacientes com anemias graves.

Finalmente, outras duas fórmulas usam o sangue de vaca como matéria-prima para extrair a hemoglobina. “A molécula de origem bovina é barata e, melhor, não precisa da enzima DPG para entregar o oxigênio rapidamente às células”, explica Mary Nucci, imunologista que trabalhou durante dezoito anos no desenvolvimento dessa alternativa no laboratório Enzon, em Nova Jersey, nos Estados Unidos. Como a molécula extraída é pequena, está sendo usada para fins específicos, como nos derrames cerebrais. “Ela consegue viajar pelos vasinhos que estão parcialmente bloqueados, levando oxigênio e evitando danos maiores às células nervosas.”

Onde a pesquisa é pálida

A cientista, no entanto, reconhece: “Vamos precisar de muito esforço e uma boa dose de sorte para que uma dessas fórmulas seja aprovada no curto período de duas décadas”. Para começo de conversa, os pesquisadores estão acostumados a avaliar efeitos tóxicos de novas drogas com poucos miligramas delas injetadas em voluntários. Mas, nos substitutos do sangue, é preciso sempre usar de 50 a 100 gramas. “Algo que parece inofensivo pode ser perigoso nessa dosagem monstruosa”, diz Mary Nucci.

Os pesquisadores ignoram também se uma formulação testada e aprovada hoje provocará efeitos indesejáveis a longo prazo. Por enquanto, os sangues que estão sendo avaliados costumam causar enjôos, dor de estômago, hipertensão e aceleração dos batimentos cardíacos. Sem contar o preço, que é de fazer qualquer um ficar pálido de susto: hoje, uma unidade de sangue verdadeiro custa entre 60 e 85 dólares, por causa de todo o processo a que é submetido. O preço estimado do sangue artificial é de 240 dólares por unidade.

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Toda nudez é castigada

A hemoglobina não suporta ficar sem a capa protetora do glóbulo vermelho.

Toma lá e dá cá

Para levar o oxigênio da respiração pelo corpo, em cada glóbulo vermelho existem 250 milhões de moléculas de hemoglobina. No pulmão, que é pressurizado, cada hemoglobina agarra quatro moléculas de oxigênio. Nos outros tecidos, como a pressão é menor, essas moléculas são liberadas.

Uma ajuda extra

A hemoglobina percebe a diferença de pressão, agarrando ou soltando o gás, graças a enzimas que existem dentro do glóbulo de sangue, conhecidas por DPG. Sem estar cercada por elas dentro do glóbulo, a hemoglobina perde eficácia.

Entrega lenta

Os substitutos à base de hemoglobina liberam o oxigênio com dificuldade. Talvez mudar a ordem dos 145 aminoácidos que, enfileirados, formam a hemoglobina melhore a sua performance quando está isolada.

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Molécula partida

Outro desafio é que, solta na circulação, a hemoglobina se parte ao meio. Os cientistas testam polímeros que, feito cordas, amarram os pontos frágeis onde a molécula pode se quebrar.

Doador exagerado

Uma saída diferente é abandonar a hemoglobina e apelar para o PFC. Mas ele contém tanto oxigênio que pode entregar gás demais às celulas, o que é tão prejudicial quanto a falta.

Quatro em um

O sangue doado por um indivíduo serve para quatro doentes.

Uma gota de sangue é a primeira prova. Se for pálida, o candidato a doador será dispensado por estar anêmico.

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Se está aparentemente saudável, é jovem e não pertence a grupos de risco de doenças como a Aids, o indivíduo pode doar uma unidade, ou seja, uma bolsa de 480 mililitros de sangue.

Uma seringa do sangue colhido é usada para investigar treze doenças, entre elas a Aids, as hepatites B e C e o mal de Chagas.

O sangue ainda deve passar por outros exames, para saber se ele tem uma proteína chamada A ou uma proteína chamada B ou as duas, sendo do tipo AB. Se não tiver nenhuma delas será tipo O. Qualquer um desses tipos anguíneos pode conter ainda outra proteína, a Rh, sendo então rotulado de positivo. Se não tiver a proteína Rh, será negativo.

Devidamente classificado, o sangue é centrifugado. As células vermelhas e brancas são mais pesadas e ficam no fundo. Elas são separadas do restante.

O líquido amarelado que sobrou é centrifugado de novo. Agora as plaquetas, que ficam no fundo, vão ser retiradas.

O que sobra é o plasma e ele é congelado. Ao sair do freezer, fica com uma casquinha esbranquiçada formada pelos chamados fatores de coagulação.

Os fatores de coagulação são separados do plasma. Com isso, uma única bolsa de sangue pode ser usada por quatro pacientes com necessidades diferentes: glóbulos vermelhos, plaquetas, fatores de coagulação e plasma.

A mais complexa das misturas

Veja do que são constituídos os 5 litros de sangue do corpo humano.

Plasma

Os 55% que são líquido

Água

É o solvente de todas as substâncias carregadas pela circulação.

Sais

O sódio, o potássio e outros minerais são como válvulas que regulam a entrada de substâncias nas células do corpo.

Proteínas plasmáticas

São três tipos. A albumina ajuda a regular as trocas de substâncias entre as células. O fibrinogênio participa da formação dos coágulos. E os anticorpos ajudam a destruir micróbios nocivos.

Células

Os 45% sólido

Glóbulos vermelhos

Existem 5 a 6 milhões deles em uma gota de 1 milímetro cúbico de sangue. Sua função é transportar os gases da respiração. O que se entende por sangue artificial quer suprir o papel desses glóbulos.

Glóbulos brancos

Responsáveis pela defesa do organismo, existem 5 000 a 10 000 deles em uma gota de 1 milímetro cúbico de sangue. Sua função é insubstituível e, por isso, nenhum sangue artificial é capaz de evitar infecções.

Outras substâncias

Os hormônios, os nutrientes da alimentação, o colesterol, assim como todo o lixo produzido pelas células do corpo, navegam pelo sangue. Os testes com sangues artificiais levam isso em conta. Afinal, não basta conseguir transportar o oxigênio direito. Os cientistas querem saber se o sangue de laboratório não atrapalharia o transporte de todo o resto.

Plaquetas

Células responsáveis pela coagulação, elas ainda não são imitadas em laboratório. Existem entre 250 000 e 400 000 plaquetas em 1 milímetro cúbico de sangue. O máximo que os médicos conseguem é extrair as moléculas que elas produzem, chamadas fatores de coagulação, para transformá-las em pó. Desse jeito, usando fatores de coagulação processados industrialmente, pacientes como os hemofílicos, que padecem da falta dessas moléculas, podem abrir mão das transfusões. Isso, aliás, já vem sendo feito.

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