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As duas faces do estresse

Uma tempestade de hormônios prepara o organismo para se defender de uma agressão. Mas o mesmo processo pode fazer mal à saúde: então se diz que alguém está estressado.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h32 - Publicado em 31 mar 1990, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

Toca a campainha de casa, mas o efeito para o organismo é o de uma sirene de alarme: todo o combustível armazenado para pôr o corpo em ação, constituído de moléculas de açúcar e de gordura, é despejado no sangue, que jorra na direção dos músculos, enquanto o coração acelera o ritmo da circulação. Nesse corre-corre. os vasos sangüíneos da pele se fecham, a digestão pára, o sistema imunológico é parcialmente desativado. O resultado é o estresse, a resposta do organismo — um personagem conhecido por sua prudência — a qualquer estímulo ambiental que fuja da rotina e, portanto, possa representar uma ameaça a sua integridade. A todo momento, por assim dizer, as pessoas se estressam, ou seja, têm o corpo preparado para escapar de situações corriqueiras a não poder mais, como uma voz que irrompe no silêncio, um esbarrão na fila do cinema, uma luz que se acende de repente, uma colherada de sopa escaldante, um cheiro estranho no ar. Na fração de segundo seguinte, porém, quando se reconhece que o acontecimento é inofensivo. aquele complexo sistema de emergência costuma ser cancelado. Alguns, no entanto, não conseguem colocar um ponto final no processo e por isso vivem muito mal — vivem estressados. Pessoa sempre cansada ou de mau humor, que reclama de dores aqui e acolá, não come direito, vira-e-mexe perde o sono, adoece, espirra e se coça por alergias — esse hoje nítido perfil de alguém estressado não compunha até há pouco tempo uma imagem clara para a Medicina, empenhada em compreender um problema cada vez mais comum, a ponto de o termo estresse ser usado a torto e a direito por todo mundo. Nos últimos anos de tanto bisbilhotar a intimidade dos organismos à beira de um ataque de nervos e apesar das perguntas sobre o assunto ainda sem resposta ou de resposta controversa, os cientistas conseguiram visualizar aquilo que, de fato, é a essência do estresse: uma saudável tempestade de substâncias químicas capaz, porém, de fazer alguém perder a saúde.

A palavra estresse — do inglês stress, conceito da Física relacionado à condição dos materiais submetidos à ação de forças externas — foi tomada emprestada pelo fisiologista canadense Hans Selye, em 1936, para explicar o que havia acontecido com as cobaias de seu laboratório. Então recém-formado, Selye dedicava-se a testar certa droga, injetando-a em ratos. A substância pareceu-lhe causar terríveis alterações nas cobaias, como úlceras, atrofia dos tecidos onde se produzem as células imunológicas e crescimento das glândulas supra-renais. Para seu espanto, o pesquisador verificou que o grupo de controle, as cobaias que haviam recebido injeções de uma solução salina, apresentavam os mesmos sintomas.

Mais tarde Selye notou que o comportamento dos animais também era idêntico diante de estímulos tão diversos como barulho, frio ou calor excessivos, substâncias tóxicas. Diante disso, definiu estresse como a reação não específica de um organismo a qualquer agressão — e assim proporcionou aos colegas que o sucederiam bons motivos para ficarem estressados, porque a definição era insuficiente e os mecanismos da citada reação insistiam em permanecer irritantemente obscuros. Hoje em dia, embora o tema ainda contenha mais charadas do que os cientistas gostariam eles ao menos trabalham com uma definição aperfeiçoada: estresse seria o desgaste total de um organismo, causado por estímulos que o excitem — desagradáveis ou agradáveis.

“Só agora sabemos que existe uma dúzia de hormônios envolvidos no processo”, observa o endocrinologista Antonio Roberto Chacra, professor da Escola Paulista de Medicina. “De fato, sem esses hormônios todo ser vivo ficaria inerte diante de um imprevisto.” E já que se fala em hormônios, sem estresse não haveria sequer a saudável paquera. Pois, quando um rapaz olha para uma moça, começa no organismo dela uma fulminante reação em cadeia. O estímulo visual é captado por receptores nos olhos. Estes disparam um sinal elétrico para o cérebro e a mensagem é recebida em uma região da massa cinzenta — o tálamo, uma espécie de agência que concentra as notícias transmitidas sem cessar pelo organismo.

O tálamo repassa as mensagens a outra estrutura situada logo abaixo e por isso mesmo chamada hipotálamo, que se encarrega de preparar o corpo para a defesa ou o ataque, liderando uma substância que cientistas americanos descobriram há nove anos, o CRF (sigla em inglês de fator de produção no córtex). Trata-se de um mensageiro que excita a glândula hipófise, também situada no cérebro. Estimulada, ela passa a produzir uma segunda substância, o ACTH (hormônio adrenocorticotrópico) que, jogada no sangue, desencadeia diversas reações. O principal destinatário do ACTH são as glândulas supra-renais, que fabricam uma série de hormônios responsáveis pelos sintomas típicos de um sobressalto, como a sensação de frio no estômago e a taquicardia.

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Ao chegar no fígado, o ACTH faz com que a glândula libere parte da glicose armazenada em suas células, de modo que os músculos tenham energia à vontade para movimentar-se, ou seja, voltando enfim ao exemplo do que acontece com a moça olhada pelo rapaz, como se ela tivesse duas saídas apenas: fugir ou saltar sobre o paquerador. No reino animal, o dilema flight or fight como é conhecido em inglês, se resolve literalmente: o bicho confrontado com uma ameaça potencial ou dispara ou ataca. Entre os homens, na teia dos contatos sociais de todo dia, a mesma escolha é transfigurada pelas múltiplas embalagens necessárias ao convívio civilizado; o disfarce é tão perfeito que a fuga ou o enfrentamento às vezes não são percebidos com nitidez nem sequer pelo fugitivo (ou agressor), como se a ação concreta de resposta ao estímulo se escondesse debaixo de uma metáfora — a ação aparente. Mas, na intimidade do organismo, a situação não é menos estressante.

Uma dose moderada daqueles hormônios é fundamental para que se tenha um desempenho adequado nas tarefas cotidianas. “Minha aula seria maçante se eu não estivesse um pouquinho estressado”, exemplifica o professor Chacra. Por aí se percebe que o estresse, a princípio, é algo muito positivo, pois são os hormônios envolvidos no processo que permitem ao cérebro prestar atenção, relacionar idéias. ser criativo — todas condições necessárias à sobrevivência. O problema — e haja problema — é que o estresse pode também prejudicar, caso exista em excesso. “É curioso como uma estratégia que nos ajuda a viver pode causar até a morte”, pondera o psicólogo Esdras Vasconcellos, da Universidade de São Paulo, que durante dezessete anos estudou doenças psicossomáticas na Alemanha e agora comanda na USP uma pesquisa sobre as conseqüências do estresse em pacientes com AIDS.

Segundo ele, o ACTH liberado pela hipófise estimula as supra-renais a produzir dois tipos de hormônios, os glicocorticóides e os mineralocorticóides. “Ambos têm como principal meta mobilizar energia para uma espécie de fuga”, explica o pesquisador. As supra-renais recebem ainda outro tipo de estímulo, uma mensagem elétrica direta do cérebro que faz a medula fabricar outros dois hormônios, a tão falada adrenalina e a noradrenalina. Verdadeiras injeções de ânimo, aumentam o ritmo de trabalho em todo o organismo. Não é à toa que, entre outros efeitos, a temperatura sobe. “Por isso um dos sintomas clássicos do estresse é justamente o suor frio”, aponta Vasconcellos. “É a forma pela qual o organismo libera o excesso de calor, tentando literalmente esfriar a cabeça.”

Para alívio de todos, ao mesmo tempo em que o hipotálamo ordena a reação de estresse, suas células nervosas enviam uma espécie de comunicado à superfície cinza-escuro do cérebro, região capaz de avaliar situações. Assim, muitas vezes os sintomas do estresse nem sequer se manifestam, pois é como se, uma fração de segundo depois de acionado o alarme do organismo fosse desligado por uma substância sintetizada pelas próprias células cerebrais. Mas, quando os estímulos estressantes ficam muito freqüentes, o sistema nervoso acaba considerando perda de tempo consultar o córtex, a estrutura capaz de distinguir um grito ameaçador de uma canção de ninar. E assim, agindo por reflexo, o organismo alarma-se por qualquer bobagem. desencadeando tempestade em copo de água.

O pior vem a seguir. Depois de certo tempo, cansado do jogo de liga-desliga, o organismo fica ligado de uma vez por todas: a partir daí, começa o chamado destresse, ou fase de resistência. O nome faz sentido: ao modificar o ritmo de funcionamento, o corpo deixa de perceber os sintomas clássicos do estresse. Aí não existe mais taquicardia — a aceleração súbita da pulsação — porque o coração já bate rotineiramente noventa vezes por minuto e não mais de 60 a 80 vezes, como seria normal. Do mesmo modo, não se sente mais tontura por mudanças da pressão sangüínea; ela já se estabilizou em valores 10 a 30 por cento mais altos do que a norma. O aparelho digestivo, enfim, trabalha agora o tempo todo devagar, quase parando; demora até quatro vezes mais que antes para dar conta de uma refeição. Nesse pico de atividade, o cérebro por algum motivo passa a inibir a ação das defesas do organismo contra agressores. “Provavelmente, essas células são ativadas por substâncias fabricadas pelo timo uma glândula situada sobre o coração, cujo trabalho o estresse acaba inibindo”, supõe o psicólogo Vasconcellos. Depois de um ano acompanhando aidéticos, o cientista sente-se seguro em afirmar que aqueles mais estressados são os que sofrem mais infecções oportunistas, doenças raras em pessoas com saúde normal, mas para as quais os aidéticos são indefesos.

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Já a relação entre estresse e câncer não é aceita pela unanimidade dos cientistas, embora tenha sido afirmada há exatos vinte anos, em função de uma pesquisa com ratos. A afirmação mexe com uma das maiores controvérsias sobre os efeitos do estresse: sua suposta relação com o aparecimento ou a piora de um sem-número de males, a começar pelo câncer. Levada às últimas conseqüências, a idéia de que estresse adoece significa que o doente é a própria causa da sua doença, na medida em que ele se tornou um estressado crônico por ter, em derradeira análise, um comportamento inadequado ao ambiente. Isso não é o mesmo que dizer que o fumante é responsável por seu próprio enfisema: neste caso, a relação de causa e efeito já está estabelecida para além de qualquer dúvida. Diversos trabalhos sugerem que, por razões misteriosas, a reação do sistema imunológico em pessoas estressadas melhora com exercícios físicos. Para a psicóloga Marilda Novaes Lipp, do Centro de Controle do Estresse, de Campinas, no interior de São Paulo, a ginástica ajuda o organismo a eliminar o excesso da adrenalina, na sua opinião, a grande responsável

pela maior parte dos males causados pelo estresse. Segundo Marilda, que durante treze anos estudou o problema nos Estados Unidos, voltando ao país no início da década de 80, “quando o estresse mal era conhecido por aqui”, a adrenalina excessiva sempre ataca mais determinado órgão, conforme a pessoa. Seqüelas de estresse aparecem sem relação com sexo ou idade — aliás, de acordo com especialistas. se tornam cada vez mais comuns em crianças.

O homem é o único ser capaz de produzir o seu próprio estresse. Entre os animais. o estresse tem a ver exclusivamente com o estímulo externo, como o ataque de um predador. Numa avaliacão instantânea, ditada pelos reflexos da experiência, o bicho sob ameaça de agressão escolherá fugir ou lutar — em qualquer hipótese, o episódio tenderá a se esgotar em si mesmo, supondo, é claro, que a vítima vença o combate. Ficará nela a memória do ocorrido, de inestimável importância para o próximo enfrentamento. Mas, por falta de um córtex cerebral igual ao humano, bicho algum pode entregar-se a batalhas (ou fugas) imaginárias, cevando pensamentos capazes de despertar emoções negativas e conflitos íntimos — tidos como geradores de estresse. Os cientistas acreditam que tais estados subjetivos podem ativar o hipotálamo da mesma maneira que estímulos objetivos do meio ambiente.

“A maioria das pessoas parece estressada por alimentar preocupações”, avalia a socióloga Nelly Candeias, uma senhora risonha que cultiva dúzias de violetas em seu gabinete e coordena na Universidade de São Paulo pesquisas de Saúde Pública — seu tema de estimação há quinze anos. Recentemente Nelly investigou a incidência de estresse em enfermeiras, profissão que apresenta um dos mais altos índices do problema no Brasil. “Depois de ensiná-las a controlar o estresse, evitando aqueles pensamentos que só tornam as coisas piores, conseguimos diminuir sintomas como a hipertensão”, assegura ela. Aparentemente, não se trata do poder do pensamento positivo ou qualquer baboseira do gênero. Tudo leva a crer que ao se recuperar a calma, o cérebro libera endorfinas, analgésicos naturais, e produz outras substâncias que cortam o processo do estresse. “A cada dia”, informa Nelly, “os cientistas trazem uma nova evidência de que parar cinco minutos para relaxar faz toda a diferença.”

Para saber mais:

Sob pressão

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(SUPER número 12, ano 8)

Sistema de alarme em ação

A fim de reagir aos imprevistos, o organismo, cauteloso, está sempre pronto para acionar seu complexo dispositivo de segurança:

1- Como uma rede de radares, receptores espalhados por todo o corpo captam qualquer alteração no ambiente, como um som;

2 – Os sinais captados chegam ao tálamo cerebral. Este, ao mesmo tempo em que repassa a informação ao córtex a área capaz de analisar a situação, envia a mensagem nervosa ao hipotálamo, que prepara a reação do organismo diante da emergência;

3 – Depois de receber a ordem do hipotálamo, a glândula hipófise libera mensageiros químicos, os ACTH, que disparam na direção das glândulas supra-renais;

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4 – Com a chegada dos mensageiros da hipófise, as glândulas supra-renais despacham imediatamente substâncias químicas a destinos diferentes;

5 – A adrenalina dispersa-se pelo organismo inteiro, ordenando que acelere o ritmo de trabalho;

6 – Os mineralocorticóides seguem para órgãos específicos, como o estômago, mandando que interrompam o seu trabalho, a fim de poupar energia para um ataque ou uma eventual fuga;

7 – Os glicorticóides têm a incumbência de retirar o combustível armazenado nas células, para entregá-lo aos músculos.

A medida certa

Às vezes, estar estressado é estar numa boa. Isso porque se consegue resolver mil coisas ao mesmo tempo: a adrenalina e a noradrenalina ativam os circuitos do cérebro. Mas, aos poucos, esses mesmos hormônios transformam o corpo em uma bomba-relógio: as paredes dos vasos ficam cada vez mais grossas, dificultando a passagem do sangue; o coração começa a ficar cansado e, mais dia, menos dia, como no proverbial copo de água prestes a transbordar, uma cota adicional de adrenalina provocada por uma emoção mais forte faz o músculo cardíaco se contrair em um espasmo — é o infarto. Mas não se imagine sombra e água fresca seja a melhor receita contra os danos do estresse: está provado que, deixando de tomar uma dose moderada de tensão, o sistema nervoso reage como se vivesse em luta-livre. Ou seja, com grandes quantidades de hormônios do estresse. Pesquisas americanas indicam que pessoas submetidas a pouco estresse no dia-a-dia têm o dobro de problemas de saúde que aquelas com estresse tolerável.

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Problema para menores

Certa vez, o professor de Pediatria Francisco De Fiore da Universidade de São Paulo recebeu no consultório um garoto de 11 anos com uma dor de estômago tão forte e repentina que se suspeitou de intoxicação. “Mas quando fiz os exames constatei que era uma úlcera”, lembra o médico de 61 anos, 40 dos quais tratando crianças. “É cada vez mais comum o estresse infantil”, constata. De fato, segundo levantamento recente da Organização Mundial de Saúde, uma em cada cinco crianças nos países ocidentais é estressada, sendo os motivos mais comuns a separação dos pais e o excesso de obrigações escolares.

“Nas crianças, os problemas cardíacos não chegam aparecer, pois o coração em crescimento consegue dar conta da sobrecarga do estresse”, explica De Fiore. No entanto, isso não acontece com o estômago e o sistema imunológico. Assim, nas crianças, estresse costuma ser sinônimo de má digestão, resfriados constantes e todo tipo de alergias.”

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