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Fasciite necrolizante e estreptococo A: bactérias que mordiam

Há quatro meses, uma avalanche de notícias alarmistas anunciou uma bactéria devoradora de carne humana. O vilão seria o estreptococo do tipo A, o micróbio das inflamações de garganta, que teria sofrido uma terrível mutação. Mas as coisas não são bem assim.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h31 - Publicado em 31 jul 1994, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira, Marcelo Affini, Gisela Heymann

Assassina! Carnívora! Com esses adjetivos, qualquer bactéria teria tudo para se transformar em manchetes sensacionalistas. E quando, em abril, um médico do Hospital Geral de Gloucester, no oeste da Inglaterra, anunciou que tinha fechado as portas de uma das salas de cirurgia porque “algo” ali dentro havia matado duas pessoas recém-operadas… pronto. Prato cheio. Foi assim que o estreptococo do tipo A se transformou em mito.

Gloucester é do tamanho de Araguaína, no Tocantins (90 000 habitantes). O que aconteceu por lá acabou conquistando espaço em todos os jornais do mundo. Começou quando os repórteres descobriram mais três casos, na mesma cidadezinha industrial inglesa: as vítimas tiveram febre; depois, apresentaram enormes manchas vermelhas no corpo, acompanhadas de inchaço. Duas delas acabaram morrendo. Em 24 horas. A outra ficou deformada, com parte dos músculos e da gordura sob a pele do abdome destruída pelo micróbio.

A imprensa londrina não perdeu tempo. “Bactéria misteriosa”, publicou o Evening Standard, com letras garrafais. “Comido vivo”, saiu na primeira página do Daily Mirror. E logo surgiram mais casos — então (oh!) em todo o país. Os tablóides populares apelaram para valer: “Uma bactéria está devorando o meu Terry”, dizia a legenda, sob a imagem de uma senhora com o rosto contorcido de desespero pelo marido doente.

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O que poderia ser o melhor remédio para o pânico — explicações científicas para os episódios — só agravou a situação. Pois, quando os médicos declararam que a doença, conhecida por fasciite necrotizante, era causada pela mesmíssima bactéria das amigdalites, muita gente começou a imaginar mutações. A idéia dos leigos era de que a bactéria, antes quase inofensiva, tinha se transformado em um monstro. E, pior, que qualquer dorzinha de garganta seria uma jura de morte. A bactéria chegou lá — virou star. A história de que foi protagonista, porém, não passava de ficção. Um dos mais graves mal-entendidos dos últimos tempos.

O estreptococo A é, na realidade, um tipo bem ordinário. Uma em cada dez pessoas o hospeda na garganta. E, ali, ele não faz nada — até que, um belo dia, o estresse ou a mudança brusca do clima faz baixar as resistências do organismo. Então, a bactéria cresce. E aparece na forma de dor de garganta. “Noventa por cento das amigdalites são provocadas pelo estreptococo”, afirma o infectologista André Vilela Lomar, diretor científico do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo. “Isso não quer dizer que ela possa sair da garganta na direção dos músculos.” Em alguns dos casos na Inglaterra, as vítimas sentiram dor ao engolir, mas o médico brasileiro acredita que, então, tenham sido duas infecções ao mesmo tempo — uma nas amígdalas e outra na fáscia, a capa protetora que reveste os músculos. Enfim, coincidência.

Para ocorrer a fasciite necrotizante, o micróbio ataca diretamente por uma brecha na pele. É por ali que entra. Os médicos sabem disso. Afinal, o estreptococo é um velho conhecido — e a fasciite necrotizante, vendida como grande novidade, também. “De acordo com a forma de infecção, o mesmo estreptococo A pode causar doenças completamente diferentes”, explica o médico Joseph Alouf, do Instituto Pasteur de Paris, na França. “Ele é responsável pela escarlatina, pela erisipela, por certos tipos de reumatismo agudo e por muitos dos problemas de garganta e ouvido.”

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Na fasciite necrotizante, a bactéria ataca a fáscia. As primeiras descrições da doença remontam à Guerra Civil Americana (1861-1865), quando as vítimas eram sempre os soldados feridos em combate. Segundo o microbiologista Alexandre Adler, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, os primeiros sinais da doença, no Brasil, ocorreram há 120 anos. Na década de 50, descobriu-se que o mal era causado pelo estreptococo e isso passou a aparecer nos livros de Medicina. “Toda essa confusão é porque a mídia só descobriu a doença agora”, critica.

Como se trata de uma bactéria comum, não é difícil que invada o organismo por uma ferida qualquer. Difícil mesmo é o micróbio se instalar na região sob a pele — em geral, as células de defesa no sangue o impedem de agir. De acordo com especialistas, para que a fasciite necrotizante apareça é preciso que o paciente esteja imunodeprimido (com o número de células de defesa abaixo do normal), como no caso de idosos ou de quem acabou de passar por uma cirurgia. Aliás, aquelas duas primeiras vítimas de Gloucester tinham sido operadas.

No final, ocorreram oito supostos episódios naquela cidade, até o último mês de junho. Mas no boletim oficial do Centro de Doenças Transmissíveis, em Londres, está escrito que apenas cinco deles foram confirmados como fasciite — dois são considerados prováveis casos da doença e o último foi, na realidade, outro tipo de infecção. A revelação mais importante, porém, foi divulgada após uma rigorosa análise do Centro de Referência dos Estreptococos, no Laboratório Na-cional de Saúde, na Inglaterra: os micróbios que causaram furor em Gloucester são de cepas diferentes.

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Dois micróbios com a mesma cepa têm a mesma linhagem familiar. Quando alguém chega em casa resfriado e passa a doença para o resto da família, o micróbio de todas as pessoas são de uma única cepa — afinal após infectar um, seus descendentes infectam outro e assim por diante. O fato de os estreptococos de Gloucester serem de cepas diferentes, portanto, afasta qualquer hipótese de uma epidemia, como chegou a se dizer. Pois para haver uma epidemia seria preciso que uma vítima transmitisse a doença a outra. Algo, aliás, que só poderia ter ocorrido se a bactéria fosse realmente mutante, tornando-se muito mais virulenta. Afinal, a fasciite, tal qual os médicos a conhecem nem é contagiosa: “Suas vítimas podem perfeitamente dividir o quarto com outros pacientes”, diz o professor Edmundo Machado Ferraz, da Universidade Federal de Pernambuco.

Nos últimos dez anos, Ferraz atendeu quinze casos de fasciite em Recife — sete morreram. Em geral, seis em cada dez pacientes acabam morrendo. “Mas a bactéria não é o fator mais importante e, sim, o paciente enfraquecido”, conta o médico. Felizmente, o micróbio continua sendo secundário, por assim dizer. Nenhum dos testes acusou mutações: “Ao que tudo indica, ele está como sempre foi, nem mais, nem menos agressivo”, diz a médica Jacqueline Nguyen, do Hospital Salpetrière de Paris. “Falar em mutação da bactéria, nesse caso, é erradíssimo.”

Na França costumam aparecer 64 casos de fasciite todo ano. Isso representa 8% das internações por causa do estreptococo do tipo A no país. Na Inglaterra e no País de Gales são 200 episódios anuais; pela projeção dos quatro primeiros meses deste ano, nada indica que em 1994 esse número vai aumentar. Nos Estados Unidos, a doença fez 450 vítimas, de 1990 até o ano passado. No mesmo período, foram 80 casos no Japão.

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Outra imagem que não procede é da bactéria comendo os tecidos do corpo. “Devoradora?”, espanta-se o médico Philipe Lagrange, do Hospital Saint Louis, de Paris. “Ora, o estreptococo não devora nada. Os tecidos são destruídos pela reação do organismo à sua presença.” Segundo Lagrange, o micróbio induz o corpo a realizar essa destruição, porque é do seu interesse. “O pus e as enzimas de defesa só facilitam a sua propagação.” O que mais assusta Lagrange, porém, são as notícias afirmando que o estreptococo é resistente aos antibióticos. “Trata-se de uma bactéria muito frágil, que é liquidada facilmente pela penicilina, a mais antiga de todas as drogas antibióticas.”

As pessoas, então, devem estar se perguntando: se a bactéria pode ser eliminada por um remédio comum, por que a fasciite mata? Ocorre que, nos tecidos destruídos, o sangue não consegue passar direito. E é ele que carrega as moléculas do remédio. Portanto, entre as células mortas da fáscia, a bactéria fica a salvo. “Por isso, só há uma solução para o paciente escapar da morte: uma cirurgia urgente para retirar todo o tecido necrosado”, diz André Lomar, do hospital paulistano Emílio Ribas. O médico não pode hesitar para tomar essa medida, já que a velocidade de destruição da fáscia é tremenda — mais ou menos 3 centímetros por hora. Chega um momento, o organismo entra em choque e morre.

Livre do tecido morto, porém, o corpo passa a responder aos medicamentos. Daí que praticamente todo paciente operado se restabelece. Na pele, é certo, ficam marcas terríveis de lembrança. “É uma doença horrorosa, mas transformá-la numa Aids é um enorme engano”, opina o médico pernambucano Edmundo Ferraz. E o engano, dessa vez, não teria se alastrado sem a ajuda da imprensa.

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Para saber mais:

Planeta dos micróbios

(SUPER número 10, ano 4)

O corpo de prontidão (SUPER número 2, ano 8)

A corrida do século

(SUPER número 6, ano 8)

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