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O troca-troca secreto das drogas que salvam vidas

Conheça as pessoas que distribuem de graça remédios caríssimos - e que ainda não foram autorizados pelo governo - pelas redes sociais.

Por Gabriela Garcia
Atualizado em 21 set 2017, 12h38 - Publicado em 25 abr 2017, 17h59
(Pedro Hamdan/Superinteressante)

Alex*, 57, aposentado do Exército, esconde seis cartelas do medicamento Nexavar na caixa de correspondência. Cada pacote do remédio, ainda não distribuído pelo SUS, custa mais de R$ 7 mil e serve para tratar tumores no fígado. Como a doença se estabilizou, o ex-militar procura, na surdina, com a orientação da médica que o tratou, novos pacientes para repassar as sobras dos remédios. E logo alerta: “quando precisar conversar, é melhor não falar disso ao telefone. Tenho medo que esteja grampeado.”

Ivan Veloso esteve do outro lado. Precisava de remédios para tratar um câncer de próstata. Só que cada frasco custa-va R$ 4 mil. A cada mês, ele teria de desembolsar R$ 20 mil – quatro vezes mais do que a renda do empresário. “Soube [das doações de remédios] pelo chefe da minha irmã, que trabalha em Belo Horizonte, mas tive receio. É uma zona perigosa”, conta. A ajuda apareceu mais cedo do que imaginava: uma senhora que acabara de perder o marido para o mesmo câncer de Ivan enviou a ele, pelo correio, duas caixas do remédio.

Parece um mercado obscuro, ilícito, mas não é. Até porque nem é mercado. O ex-militar e a senhora viúva fazem parte de uma espécie de clube virtual de doação de remédios. Não pagaram ou cobraram nenhum centavo pelos medicamentos. Venceram batalhas de meses na Justiça para receber os remédios gratuitamente. E, quando o tratamento acabou, com finais felizes ou não, colocaram as sobras à disposição de outros pacientes. Encurtaram o caminho dessas pessoas: em vez de esperar por meses no Tribunal para começar o tratamento, tiveram a sorte de encontrar doadores. “Solicitei o medicamento ao grupo e, por coincidência divina, havia essa senhora doando o que restou do marido falecido”, se emociona Ivan.

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O tal grupo é uma das páginas de doações de medicamentos do Facebook. Vera Buonomo criou a comunidade “É dando que se recebe” em 2011, quando uma amiga próxima descobriu que o único tratamento possível para um câncer de rim recém-descoberto seria o Sutent (da substância sunitib). Só tinha um problema: a caixa com 28 comprimidos custava R$ 24 mil. Vera não tinha dinheiro para custear o tratamento e a amiga não tinha tempo para esperar uma decisão judicial para ganhar os remédios. Vera apelou para as redes sociais: criou a página e pediu ajuda de outros usuários.

A amiga faleceu menos de um ano depois. Mas o burburinho e a popularidade da página fizeram Vera continuar. “Eu sou apenas uma interface para esses encontros. Em alguns casos me pedem sigilo e eu, então, coloco as pessoas em contato sem publicar na página”. Só exige deles duas regras: é proibida a venda (ainda que alguns tentem cobrar) e os pacientes devem apresentar receita médica. Quem recebeu remédios volta lá para retribuir a ajuda – qualquer ajuda, seja com novos remédios ou com a divulgação da página. Ou com auxílio jurídico gratuito para quem também precisa recorrer à Justiça para conseguir remédios caros. Assim, a rede funciona bem, numa retroalimentação sem fim.

No caminho da lei

Adalberto Enedino, o Dadá, recebeu apoio de um desses advogados. Diagnosticado com câncer nos rins e no pulmão, em fevereiro, precisava do mesmo remédio que Alex, o ex-militar, esconde hoje na caixa de correio. Não encontrou doadores, só uma família disposta a dar um bom desconto no medicamento – em vez de R$ 7 mil, a caixa custaria de R$ 1 mil a R$ 2,5 mil. Fez uma vaquinha com 24 amigos para começar logo o tratamento. Ainda assim ficaria pesado contar sempre com ajuda para bancar toda a despesa. A saída, então, foi recorrer à Justiça.

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Com a ajuda da sobrinha e o auxílio do advogado, Dadá descobriu como percorrer esse caminho. A jornada começou com uma visita a um posto desaúde. Antes de qualquer coisa, é preciso ter o Cartão Nacional de Saúde. Carregou junto seus documentos, um laudo que justificava a necessidade do uso da medicação e uma receita médica. E levou toda a documentação até uma unidade de remédios de alto custo. Como era esperado, não conseguiu remédio nenhum. Pediu a cópia do protocolo do pedido e encaminhou tudo para o advogado.

(Pedro Hamdan/Superinteressante)

É a partir daí que começa todo o processo jurídico. A primeira tentativa pode ser por meio do envio de uma carta e um requerimento para a Secretaria de Saúde. Até então dá para fazer tudo sem a ajuda de um advogado. Só tem um problema: geralmente esse pedido não funciona. O jeito, então, é entrar com uma ação contra o Estado e torcer pelo ganho de causa.

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Dadá percorreu todos esses processos. Ele e outros milhares de pessoas. Entre janeiro de 2012 e dezembro de 2014, 2.862 pacientes de câncer no Brasil (3,5% do total desses enfermos) recorreram à Justiça. A chance deterem seus pedidos atendidos é grande. “Há um entendimento consolidado de que o paciente ganha sempre que tiver a receita médica. A maior parte das vezes que o Estado perde em primeira instância, ele não recorre porque há um entendimento consolidado da jurisprudência [do direito de acesso à vida]”, explica Daniel Wang, professor de saúde e direitos humanos da Universidade de Londres. Não à toa, os casos de vitória dos pacientes só cresceram nos últimos anos. No primeiro semestre de 2012, 426 pessoas conseguiram obter os medicamentos via ação judicial. Já na segunda metade de 2014, esse número aumentou em mais de 60%, atingindo 705 casos.

Mas até o medicamento chegar às mãos do paciente demora um tempo – em média, quatro meses. Dadá só conseguiu a primeira audiência em junho, três meses após entrar com a ação. Foi tarde demais. Uma semana antes da audiência, Dadá faleceu. Deixou como herança duas caixas fechadas do remédio, que foram doadas para outros dois pacientes – um mineiro e um gaúcho.

Rombo da esperança

A brecha na lei cai bem para os pacientes. Mas não para o governo. A bomba acaba estourando mais à frente: no planejamento das ações de saúde. De acordo com dados do Ministério da Saúde, o impacto dos gastos com a judicialização cresce em escala geométrica. Em 2015, a pasta desembolsou sete vezes mais grana para pagar esses tratamentos do que em 2010. Foram R$ 990 milhões, em quase 4 mil ações (em alguns casos, os remédios já são distribuídos pelo SUS, mas, por falta de estoque, os pacientes acionam a Justiça). Ou seja, cada um desses pacientes custou R$ 250 mil ao Estado.

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É que comprar esses remédios toda vez que um novo paciente pede sai muito caro. Segundo um levantamento feito em 2013, os preços podem ser até três vezes mais caros quando comprados em pequena escala. E é assim que os grandes laboratórios lucram. A Roche, fabricante do Trastuzumabe, medicamento para câncer de mama, foi acusada pelo Ministério Público Federal de cobrar valores abusivos das secretarias estaduais de saúde quando o pedido era feito via Justiça. Uma caixa do remédio custava até 300% a mais nesses casos.

E nem é só isso: laboratórios se aproveitam para vender todo o seu repertório de produtos, mesmo se ele não funcionar tão bem assim. “O médico receita o que está convencido de ser o melhor. E, lamentavelmente, muitas vezes o que ele acha é o que as empresas farmacêuticas acham, e o que o marketing delas acha”, diz Reinaldo Guimarães, médico e vice-presidente da Associação Brasileira de Química Fina e Biotecnologia. Ainda que a lei exija que os casos de judicialização valham apenas para drogas com custo-eficiência comprovada, ela é sistematicamente ignorada – e, segundo Guimarães, não apenas os quimioterápicos entram na roda: pacientes vencem ações até para receber fraldas geriátricas.

A confusão toda é originada no próprio governo. Quem cuida da aprovação de novos medicamentos é a Comissão Nacional de Incorporação deTecnologias no SUS (Conitec). Inspirada no sistema britânico, a comissão precisa definir uma lista de remédios oferecidos gratuitamente pelo governo. Só que no exterior as coisas funcionam melhor. O órgão de lá avalia a relação custo-benefício dos medicamentos pela demanda do sistema público e pela indústria farmacêutica. E não permite que remédios muito caros e pouco eficientes sejam distribuídos a torto e a direito. O cenário aqui é bem diferente: o Ministério da Saúde mal sabe quais quimioterápicos são mais pedidos em vias judiciais. E esses dados deveriam ajudar a pautar as avaliações sobre incorporação de novos remédios – assim, o governo poderia comprá-los em larga escala, com preços bem menores.

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Isso sem contar a lentidão e falta de critérios da Conitec. Um estudo da Interfarma mostra que, recentemente, cinco solicitações de novas drogas foram negadas pela comissão – e quatro delas já foram aprovadas nos Estados Unidos e em vários países da Europa, Ásia e América Latina para tratamento de câncer de cólon, pulmão e rim. Para se ter ideia, o Trastuzumabe, aprovado em 1998 nos Estados Unidos, chegou ao SUS apenas em 2012. “E ainda com indicação restrita, aprovado apenas para tratamento coadjuvante, depois da cirurgia. Não está disponível nem para as pacientes com a doença metástica”, explica Felipe Ades, oncologista do Hospital Albert Einstein. O Nexavar, de Dadá e Alex, não foi sequer analisado pela Conitec – o mais surpreendente é que oncologistas do mundo todo o veem como o futuro do tratamento do câncer, por atacar apenas as células cancerígenas e preservar as saudáveis.

(Pedro Hamdan/Superinteressante)

Jogo da vida

É da falta de esperança com o SUS e do desespero dos pacientes que nascem os clubes de trocas de medicamentos. E, graças a eles, Ivan Veloso colheu boas notícias nos exames: 60% de redução dos lifonodos metásticos e do PSA, substância que indica a presença do câncer de próstata. Mas, até nas derrotas, o grupo ganha força. Parentes enlutados encontram nas doações um pouco de consolo. Ester del Vecchio, por exemplo, doou caixas de Temodal, um remédio para câncer no cérebro, após a morte do sogro. Nunca mais deixou de colaborar: agora organiza as trocas. “Às vezes recebo quatro caixas em um dia só e preciso decidir para quem doar. É como decidir quem vai viver. Faço um papel de Estado que não é meu”, conta. Eles não são de fato o Estado – e até caminham um pouco pela ilegalidade, já que as sobras dos remédios pagos pelo governo deveriam ser devolvidas.

Mas esses doadores clandestinos não estão sozinhos. Profissionais de saúde também tentam compensar as faltas do governo. A médica de Alex o orientou a guardar as caixas que sobraram. É ela quem indica a ele pacientes para receber as doações. O Banco de Remédios, um site online, presta um serviço parecido: organiza e distribui as doações entre os pacientes. Nesse caso, há um preço: R$ 20 por mês para ter o cadastro. Quase nada perto dos remédios de R$ 10 mil ou R$ 20 mil. Ou do desespero à espera da Justiça e dos medicamentos, que pelo SUS dificilmente chegarão.

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