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Como funciona uma terapia psicodélica

Depois de décadas de proibição, a medicina voltou a experimentar com drogas alucinógenas. Elas ajudam a lidar com traumas, ansiedade - e até o medo da morte

Por Maurício Horta, Karin Hueck
Atualizado em 3 nov 2020, 14h09 - Publicado em 20 jul 2017, 14h52

“Quem diabos você pensa que é? Eu não vou ser comida viva”, gritou Dinah Bazer, uma instrutora de esqui em seus 60 anos, contra uma massa amorfa e escura que aparecia abaixo das costelas – uma alucinação que representava o câncer de ovário retirado cirurgicamente meses antes. Depois da quimioterapia, a doença entrou em remissão. Mas, em vez de sentir alívio, Dinah ficou apavorada com o futuro. Passava horas em fóruns da internet, onde lia que a volta do câncer era “questão de tempo”. Ansiosa, passou a comer compulsivamente, e a indigestão se transformou no sintoma de uma recaída imaginária. O ápice do sofrimento vinha às vésperas das consultas de rotina com seu oncologista, na Universidade de Nova York (NYU). Numa dessas visitas aterrorizantes, em 2012, uma enfermeira contou-lhe que o psiquiatra Stephen Ross estava usando a psilocibina – substância psicoativa de cogumelos alucinógenos – para reduzir a ansiedade em pacientes com câncer. Depois de algumas sessões de aconselhamento psicológico, Dinah tomou a pílula, deitou-se no sofá do centro de pesquisas e, com fone de ouvido e olhos vendados, embarcou no renascimento da terapia psicodélica.

Os sintomas físicos do câncer e de outras doenças terminais causam grande sofrimento. Mas, em muitos pacientes, o que mais pesa é o sentimento de desamparo, a ansiedade e as questões existenciais trazidas pela ideia da morte. Enquanto a rotina se reduz à luta contra a doença, a vida definha. E isso tem impacto direto sobre a saúde. De cada dez pacientes com câncer, por exemplo, quatro desenvolvem algum transtorno de humor. Antidepressivos e ansiolíticos podem abafar a angústia, mas não mudam sua perspectiva desesperada.

Na última década, porém, um seleto grupo de cientistas, entre eles o dr. Ross, tem estudado se experiências místicas profundas induzidas por drogas psicodélicas são capazes de aliviar o sofrimento psicológico de quem tem câncer. Os resultados são surpreendentes. Passados quatro anos desde a viagem de Dinah, dr. Ross publicou em dezembro o resultado do estudo. Uma única dose de psilocibina reduziu significantemente, por pelo menos seis meses, o sofrimento psicológico de 80% dos 29 pacientes monitorados. Outro estudo com 51 voluntários teve resultados equivalentes.

Meia hora depois de tomar a pílula, Dinah foi arremessada num vazio infinito e escuro, aterrorizada. Viu-se presa no porão de um navio, sacodindo em meio à tormenta. “Estou respirando?”, perguntou-se. Com medo de sufocar até a morte, encheu os pulmões. Então, viu seu corpo a distância, manchado por aquela massa escura. Dinah reconheceu: era a manifestação do próprio medo. Tomou coragem, confrontou a massa e gritou a primeira frase desta reportagem.

Nesse momento, a mancha desapareceu, e Dinah começou a pensar em sua família. “Fui completamente banhada pelo amor de Deus”, relatou – apesar de ser ateia. “Eu senti como se não houvesse tempo, como se eu fosse parte de uma existência eterna. Foi a experiência mais maravilhosa que já vivi.” Desde então, Dinah não sentiu mais medo de que o câncer voltasse.

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Epifania sintética

Décadas atrás, a pesquisa com drogas psicodélicas não enfrentava grandes embaraços legais. Tudo começou nos anos 1930, quando cientistas isolaram pela primeira vez o ácido lisérgico, a partir de um fungo que parasitava o centeio. Foi a base para que o químico suíço Albert Hofmann, do laboratório Sandoz (atual Novartis), sintetizasse uma série de substâncias. Em 1938, obteve a 25a delas: a dietilamida de ácido lisérgico, ou LSD.

Hofmann não encontrou nenhum uso imediato para o LSD – até ingeri-lo sem querer, em 1943. “Fui tomado por uma notável inquietude, combinada com uma leve tontura”, escreveu. Em casa, viu “um fluxo ininterrupto de imagens fantásticas, formas extraordinárias com um caleidoscópio de cores”. No dia seguinte, tomou 250 microgramas da substância – sem saber que isso era mais do que dez vezes o suficiente para ter uma viagem. Primeiro, entrou em pânico; depois, em euforia, e, por fim, voltaram as formas e as cores. A Sandoz patenteou a substância – e, em 1947, colocou o LSD no mercado como droga experimental, sob a marca Delisyd.

Nunca tinha havido um momento melhor para lançar uma droga experimental. O pós-Segunda Guerra foi um salto histórico da psiquiatria, quando descobertas farmacológicas começaram a substituir a internação. Na busca por remédios eficazes, cientistas pesquisavam desde moléculas, como o LSD, até substâncias usadas por xamãs em sociedades tradicionais, como a psilocibina. Foi assim que drogas psicodélicas foram parar em sessões de terapia. Entre 1950 e meados dos anos 1960, foram feitos mais de mil estudos clínicos, discutindo 40 mil pacientes.

Na Sexta-Feira Santa de 1962, o psiquiatra Walter Pahnke reuniu 20 estudantes de teologia numa capela em Boston num experimento para seu doutorado em Harvard. Para metade, deu pílulas com psilocibina; para os demais, um placebo. Foi um choque. Dos dez que tomaram psilocibina, oito relataram uma vivência praticamente idêntica às experiências místicas clássicas: o sentimento de paz, prazer e amor, a capacidade de transcender o tempo e o espaço, a sensação de que todas as pessoas e coisas estão conectadas, a incapacidade de descrever com palavras o que se sente, e a aparente descoberta de uma verdade absoluta sobre o mundo. Os efeitos psicodélicos passaram, mas as memórias da experiência permaneceram vívidas, como a de uma revelação espiritual.

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O experimento de Pahnke inspirou um novo estudo no hospital Spring Grove: testar a terapia psicodélica em pacientes terminais com câncer que sofriam com a perspectiva de morrer. Monitorou 31 pacientes. Em 29% deles, observou uma “melhora drástica” no estado físico, emocional e espiritual; outros 42% tiveram “melhora moderada”. Não apenas sentiam menos depressão, ansiedade, tensão, insônia e isolamento social, como também mudaram sua relação com a morte.

Mas as descobertas promissoras foram enterradas com a eleição do conservador Richard Nixon. Em 1970, todos os alucinógenos foram classificados na categoria mais restrita de substâncias – a de drogas de “alto potencial de abuso” e “nenhum uso médico aceitável”. No ano seguinte, começava a “guerra às drogas”, e um ramo inteiro da pesquisa psiquiátrica foi enterrado.

Psicodelia arqueológica

No final da década de 1980, o pesquisador independente Rick Doblin decidiu escavar o campo arqueológico da terapia psicodélica. Foi atrás dos estudantes que tinham tomado psilocibina no Experimento da Sexta-Feira Santa; conseguiu encontrar e entrevistar sete deles. Todos disseram que a experiência de 1962 tinha moldado suas vidas de forma profunda e duradoura um quarto de século depois. Em 1991, Doblin publicou sua pesquisa – e ressuscitou o interesse da psiquiatria pelas drogas psicodélicas. Foi o psicofarmacêutico Roland Griffiths, um dos principais pesquisadores de drogas nos EUA, da Universidade Johns Hopkins, que – graças à sua reputação – conseguiu autorização para testar com o LSD.

Em 2002, dr. Griffiths reconstituiu o estudo de Pahnke, administrando doses de 30 miligramas de psilocibina a 36 voluntários para avaliar sua experiência mística – desta vez, com um controle metodológico muito mais rigoroso. Os participantes foram avaliados dois meses depois. Os resultados ressoaram os de Pahnke – dois terços afirmaram que aquela fora uma das cinco experiências mais significativas de suas vidas. Alguns chegaram a compará-la ao nascimento do primeiro filho ou à morte de um dos pais. Quatro a cada cinco relataram a melhora do bem-estar social e da satisfação com a vida depois da experiência. Ninguém relatou piora. Os resultados permaneceram consistentes 14 meses depois do experimento.

viagem como ela é

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Quando pacientes chegam ao quarto de terapia psicodélica, os pacientes do dr. Ross encontram uma sala de estar com iluminação baixa e decoração em tons de terra. Sobre o sofá de tecido marrom, várias almofadas com estampas étnicas. Na parede, fotografias emolduradas de amplas paisagens em preto e branco. Numa prateleira, livros de arte e de mitologia. Noutra, bibelôs místicos, incluindo uma estátua de Buda e esculturas de cogumelo em cerâmica e vidro.

A terapia psicodélica não é sem riscos. Por isso, são excluídos voluntários com histórico familiar de transtorno psiquiátrico grave. Por semanas, o paciente participa de encontros com uma dupla de terapeutas, com quem desenvolve confiança e ajusta suas expectativas sobre o tratamento. Então, no dia, os voluntários recebem a pílula de psilocibina no fundo de um cálice de cerâmica esmaltado, como num ritual místico tradicional. São convidados a vendar os olhos e usar um fone de ouvidos, com música contemplativa – Brian Eno, Philip Glass, Pat Metheny, Ravi Shankar. A droga começa a fazer efeito em meia hora. O efeito dura de 5 a 6 horas, com acompanhamento contínuo dos terapeutas.

Um dos voluntários do estudo da NYU foi Nick Fernandez. Em 2004, quando ainda estava no ensino médio, foi diagnosticado com leucemia. Depois de dois anos e meio de quimioterapia, teve remissão completa. A doença não deu mais sinais, mas, assim como acontecera com Dinah Bazer, Nick ficou mentalmente esgotado. Por anos, o terror do câncer voltava a cada resfriado ou dia em que se sentia cansado. Embora saudável, seu corpo havia se tornado seu inimigo.

A psilocibina começou a fazer efeito, e a escuridão na cabeça de Nick deu lugar a uma cascata de pontos brancos que se transformaram num caleidoscópio multicolorido. “Eu vou mostrar o que posso fazer”, disse-lhe uma voz, que o conduziu numa jornada até o próprio enterro, numa representação do inferno repleta de caveiras cheirando a morte. A dor era lancinante, e a agonia crescia até seu guia imaginário catapultá-lo a uma distância de centenas de anos-luz. A dor passou. De repente, o estudante viu-se na estação de trem Grand Central de Nova York, repleta de convidados em trajes de gala, dançando ao som de uma orquestra. Logo ele foi novamente catapultado para o topo do edifício Empire State. Lá, maravilhou-se com a luz do crepúsculo.

A voz levou Nick, finalmente, a uma caverna no meio de uma floresta. Lá, ficou frente a frente com o próprio corpo, pendurado como uma roupa à venda. “Dou voltas em torno dele, olhando, para decidir se vou levá-lo. Penso em todas as pessoas com quem esse corpo já fez sexo, toda a comida que já entrou nele, toda a quimioterapia que ele já fez e toda a merda que já saiu dele”, relatou à revista The Atlantic. “É como quando você sai para comprar um carro e dizem que ele já rodou 50 mil km, já esteve naquele acidente, e tal outra coisa já lhe passou. E eu, fora desse corpo, andava e pensava – `levo ou não levo?¿. No final das contas, decidi que sim. Então, quando entrei nele, senti-me como um super-herói vestindo sua fantasia. Foi a primeira vez que, desde a doença, me conciliei com meu corpo. Eu disse: `Este é o meu corpo e eu o aceito como o meu veículo nesta vida¿. Acho quea mensagem é que você não pode escolher. Ele é o que você tem. Use-o bem.”

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Bombardeando o ego

“É extraordinário que uma única exposição tenha produzido efeitos antidepressivos e ansiolíticos tão substanciais e persistentes”, diz dr. Griffiths, autor do recente estudo da Johns Hopkins com 51 pacientes com câncer. “Esse resultado, na verdade, é sem precedentes na psiquiatria.” Em seis meses, 78% dos participantes se disseram menos deprimidos e 83%, menos ansiosos. Dois terços relataram melhoras em sua atitude quanto à vida e suas relações sociais.

Ninguém sabe ao certo o que acontece no cérebro durante uma sessão psicodélica. Mas uma equipe de pesquisa liderada por Robin Carhart-Harris, no Imperial College de Londres, começa a colher pistas importantes sobre o que provoca essas experiências tão estranhas, vívidas e duradouras. A partir de imagens produzidas nos cérebros de voluntários, a equipe descobriu dois fenômenos simultâneos.

Por um lado, essas substâncias reduzem drasticamente a atividade na “rede neural em modo padrão”, circuito que corresponderia fisicamente à nossa consciência. Essa rede fica ativa principalmente quando não estamos fazendo nenhuma tarefa e entramos num diálogo interno, ruminando ideias, refletindo sobre nós e tentando adivinhar o que os outros pensam. É possível que a hiperatividade nessa rede provoque o padrão de pensamento rígido e insistente característico da depressão e da ansiedade.

Por outro lado, as drogas psicodélicas disparam livremente conexões entre partes do cérebro que, em condições normais, não costumam conversar entre si. “Normalmente, a comunicação é confinada a `comunidades¿ específicas do cérebro; assim, regiões visuais costumam conversar principalmente com outras regiões visuais”, diz dr. Carhart-Harris. “Já sob o efeito da psilocibina, há uma incrível conversa cruzada. Nesse estado, o cérebro opera de forma anárquica, tirando imagens das profundezas da mente, em vez de confiar nos estímulos sensoriais que chegam até ele.”

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Mesmo Stephan Ross ficou desconcertado ao entrevistar seus primeiros pacientes, que pareciam ter tirado suas falas de um velho baú hippie. Diziam coisas como “agora, entendo que o amor é a força mais potente do planeta”; “sei que minha consciência é maior do que eu”. Pessoas que estavam desesperadas com a perspectiva de morrer perderam seu medo de repente.

Os resultados são tão animadores que é inevitável pensar nos efeitos colaterais. Mais de 2 mil doses de psilocibina foram administradas em estudos clínicos desde os anos 1990. Até agora, não houve relato de problemas médicos ou psiquiátricos duradouros – apenas efeitos temporários, como paranoia, ansiedade, náuseas, pressão alta e dor de cabeça. “Não é que nenhum indivíduo tenha jamais sido prejudicado por psicodélicos”, afirma Matthew Johnson, professor de psiquiatria da Johns Hopkins, que analisou dados de 190 mil pessoas que tomaram alucinógenos. “Mas são casos raros.”

Ainda assim, é uma grande incógnita quando a terapia com drogas alucinógenas ultrapassará os ensaios para chegar às receitas médicas. Elas permanecem ilegais, o que torna a pesquisa lenta, burocrática e cara. E, como Richard Nixon já mostrou em 1970, legislação sobre drogas não é uma questão de ciência, mas de ânimo político. Até o ano passado, a progressiva descriminalização da maconha parecia estar relaxando a guerra às drogas. Mas, mais uma vez, a política entrou no meio. A eleição do imprevisível Donald Trump parece ter ressuscitado o espírito de um outro tempo.

Doce veneno

8 mil a.c.
Arqueólogos encontraram fósseis que indicam o uso de plantas psicoativas em cerimônias de 10 mil anos atrás.

1938
O suíço Albert Hofmann sintetiza o LSD. Cinco anos depois, toma a droga e descobre pessoalmente seus efeitos.

1953
O escritor Aldous Huxley usa mescalina.No ano seguinte, escreve As Portas da Percepção, no qual defende a psicodelia.

1960
O professor Timothy Leary experimenta cogumelos e concebe o Projeto Psilocibina de Harvard, para estudar o potencial terapêutico das drogas.

1962
O psiquiatra Walter Pahnke conduz o “Experimento da Sexta-Feira Santa”, em que conclui que a psilocibina causa efeitos equivalentes a experiências religiosas.

1966
É proibido o porte de LSD nos EUA.

1970
O presidente Richard Nixon classifica a maioria dos psicodélicos como drogas de alto potencial de abuso, sem uso médico aceitável.

1970
Timothy Leary é preso com maconha, enquanto se candidatava ao governo da Califórnia. Foge da prisão para Argélia, Suíça e Afeganistão, onde acaba preso. Segundo Nixon, era o “homem mais perigoso dos EUA”.

2016
Saem dois estudos separados que concluem o mesmo: a terapia psicodélica reduz o sofrimento psicológico em quatro de cada cinco pacientes com câncer diagnosticados com ansiedade ou depressão.

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