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Filhos do cárcere: a vida dos bebês criados em prisões femininas

Milhares de crianças vivem em cadeias brasileiras com suas mães condenadas. São inocentes presos – e a pena é severa.

Por Nana Queiroz
Atualizado em 7 nov 2020, 11h23 - Publicado em 4 jan 2016, 17h30

A mãe faz caretas e treme os lábios em barulhinhos divertidos. Entrega um brinquedo nas mãos do menino e o agita. Acaricia a barriguinha. Não adianta. Luca não sorri. A pediatra, Mara Botelho, está preocupada com seu desenvolvimento psicológico: “Ele não tem reações emotivas normais desde que apanhou da polícia, há dez meses”, ela desabafa. “Não ri, não chora, não se interessa pelas coisas…”

Aos três meses de vida, Luca apanhou da polícia nos braços da mãe, Tamyris*, uma goiana que foi pega transportando drogas para Belém do Pará. Tamyris nunca soube o quanto de intenção havia no ato, mas ela segurava o menino e o protegia com o corpo enquanto o policial a agredia. No meio da confusão, sobrou para Luca um golpe de algema de ferro no olho, que sangrou e inchou. O ferimento sarou, mas Luca nunca mais foi o mesmo. Prestes a completar 1 ano, ele cumpria pena com a mãe na Unidade Materno-Infantil da Penitenciária de Ananindeua, no Pará – sem sorrir.

Como Luca, quase 2 mil bebês e crianças cumprem pena ao lado das mães nas prisões do Brasil. São bebês ainda no período de amamentação ou crianças de até 7 anos que não têm parentes que assumam a guarda. Há também centenas de gestantes, detidas já grávidas. Ou seja, muitas crianças que já nasceram, ou nascerão, atrás das grades. Durante os quase cinco anos em que rodei as penitenciárias femininas do Brasil para escrever o livro Presos Que Menstruam, ouvi e presenciei situações chocantes a que esses bebês são sujeitados, que vão da tortura à fome. Aqui eu conto suas histórias.

O direito de estar preso

Por mais contraditório que pareça, o direito de estar preso com a mãe é uma conquista dos bebês brasileiros. Naturalmente, viver numa cadeia não é a infância ideal, mas especialistas têm debatido o tema por anos e concluído que é melhor nascer preso do que sem mãe.

Estudos conduzidos desde 2003 por pesquisadores da Escola de Amamentação da Universidade de Columbia, nos EUA, mostraram que crianças que são criadas pelas mães, mesmo dentro de presídios, têm vantagens no curto e no longo prazo. Liderados pela pesquisadora Mary Byrne, os especialistas acompanharam cem crianças que viviam em uma prisão de Nova York com as mães e descobriram que 73% tinham desenvolvido um senso de segurança e estabilidade comparável a crianças livres e bem cuidadas de classe média. Em contraste com bebês separados da mãe condenada pouco após nascer, eles sofriam menos de ansiedade e depressão. Mais: o índice de reincidência criminal das mães que puderam cumprir pena com os bebês naquele local foi de 0%.

Cristina Magadan, psicóloga que trabalha na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, no Rio Grande do Sul, explica: “Nos primeiros meses de vida, a relação do bebê com a mãe é simbiótica. E durante todo o primeiro ano de vida continua indispensável. Claro, eles perdem muito quando não têm familiares que possam levá-los para passear, mas, em geral, vemos que a convivência com a mãe ajuda esses bebês a serem relativamente calmos e saudáveis”.

Varia, no mundo inteiro, como os países lidam com isso. Apesar de todos esses indícios, a maioria dos Estados dos próprios EUA retiram o bebê das mães condenadas quase que imediatamente após o nascimento. Já outros países garantem até creche e educação para as crianças, como é o caso da Alemanha. No Brasil, a história era parecida com os EUA até 2009, quando foi sancionada a lei que assegura aos bebês de presas um período de amamentação de, no mínimo, seis meses.

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Seios de pedra

A indígena Glicéria Tupinambá já dormia há duas noites no chão de um cubículo superlotado no Conjunto Penal de Jequié, no sudoeste da Bahia, quando começou a sentir dores no seio. O peito empedrou e a pele começou a queimar em febre. Ela pediu ajuda às carcereiras, que disseram que não tinham pessoal para levá-la ao hospital. Enquanto a febre ardia mais alto, aumentavam também os gritos de fome de Eru, que já estava quase sugando pus junto com o leite da mãe. “Mal conseguia dormir. E o peito empedrado, que doía. Entrei em pranto”, lembra Glicéria. Poucos dias depois, ela começou a delirar. As presas e Eru berraram por ajuda e, junto com as carcereiras, organizaram uma coleta de leite em pó e mamadeiras. O torpor da mãe durou 15 dias, nos quais ela teve a sorte do corpo se curar sozinho. Até hoje, ela não sabe o que teve, pois ninguém a levou ao hospital.

São nas cadeias públicas, delegacias de polícia e presídios mistos, como aquele em que viveram Glicéria e Eru, que os bebês e gestantes passam as piores situações. Esses locais não são construídos para abrigar mulheres – e muito menos crianças. Não há berçários, enfermarias, vasos sanitários ou sequer camas. São celas pequenas e úmidas, que comportam o dobro de pessoas do que foram destinadas e por muito mais tempo do que o planejado. Nessas situações, muitas presas preferem devolver seus filhos à família ou entregar para adoção a vê-los vivendo em tais condições.

São nessas prisões improvisadas nos grotões do País que acontecem as piores violações de direitos humanos do Brasil. São comuns, por exemplo, os relatos de grávidas que sofrem tortura física e psicológica. Certa vez, em visita à Unidade Materno-Infantil de Ananindeua, no Pará, perguntei a cerca de 20 mães com seus bebês quem ali havia sido presa grávida e sofrido algum tipo de agressão. A metade delas levantou a mão. “Bater em grávida é algo normal para a polícia”, respondeu Aline, que cumpria pena com a filhinha de dez meses. “Eu apanhei horrores e tava grávida de seis meses. Um polícia ficou batendo na minha barriga com uma ripa. Nem sei qual foi a intenção desse doido, se era matar o bebê ou eu.” Outras presas confirmam o que disse Aline. Michelle, já de barrigão protuberante, apanhou de uma escrivã. Na hora da detenção, Mônica recebeu socos de um policial, que disse que filho de bandida tinha que morrer antes de nascer. Antes de vir ao mundo, essas crianças já enfrentam um ódio social intenso.

Valdirene Daufemback, diretora de Políticas Penitenciárias do Ministério da Justiça, afirma que adequar e construir presídios para crianças e gestantes está entre os objetivos do Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional e 16 novas unidades com creches e playgrounds já estão em construção. Mas o Ministério da Justiça enfrenta a própria sociedade brasileira para melhorar a situação dessas crianças. “O governo reflete o que a sociedade pensa sobre políticas públicas e, infelizmente, a população não prioriza esse setor”, diz. “As pessoas precisam entender que recuperar os presos e dar condições adequadas a seus filhos é algo feito para diminuir a violência no futuro.”

Recentemente, alguns ativistas têm sugerido que as mães de bebês de até 1 ano que não representam riscos à sociedade fiquem em prisão domiciliar, com tornozeleiras eletrônicas, enquanto amamentam. A sugestão se apoia nas estatísticas: apenas 10% das presas cometeram crimes contra a pessoa, ou seja, violentos. Assim, a criança viveria em um ambiente mais saudável, não perderia a vivência familiar e poderia passear com parentes e vizinhos. Ao fim do período, a mãe voltaria a cumprir pena em regime fechado, se assim determinasse sua sentença.

Uma preocupação, porém, é a de que esse benefício levasse as presas a engravidar propositalmente. Cristina ri da suposição: “Presas são mulheres abandonadas pelos companheiros. Elas iam engravidar como?”. De fato, o último levantamento feito sobre o tema pela Pastoral Carcerária, em 2007, comprova: cerca de 47% das detentas não recebem visitas ou as recebem menos de uma vez por mês. Até o fim dos anos 1990, eram proibidas visitas íntimas em presídios femininos e, ao longo de toda a minha pesquisa, não ouvi relatos de nenhuma mulher que engravidou na cadeia.

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A separação

Ser presa com o filho de outro condenado na barriga é, sem dúvida, um drama, mas Carolina queria tanto ter uma filhinha que aprendeu a curtir a experiência. Logo todos se afeiçoaram a Maria: uma bebê sorridente e iluminada. Carolina não podia trabalhar nas outras alas do presídio, já que não havia ninguém que cuidasse de seu bebê (não existem creches na maioria das prisões brasileiras) e acabou se tornando hipermãe em tempo integral. Quando chegou a hora de deixar Maria com a família, Carolina ficou deprimida. Comia ainda menos, dormia picadinhos. “Situações como essa são superproblemáticas no Brasil, onde as mulheres viram nada além de mães. Isso porque depois elas perdem todo o contato com os filhos”, comenta Raquel da Cruz Lima, coordenadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. “É muito prejudicial não ter a opção de trabalhar, tanto pela renda quanto pela possibilidade de reduzir a pena.”

A lei demanda que ao menos seis meses de amamentação sejam garantidos; depois disso, varia das condições do presídio e da presa quanto tempo ela ficará com a criança. Algumas crianças chegam a ficar até os 7 anos, mas a maioria se vai entre seis meses e um ano. O drama é ainda maior quando não existe família que acolha os pequenos. Os filhos das presidiárias vão parar no sistema de adoção e abrigos, onde acabam afastados para sempre das mães.

No caso de Carolina, a avó levou Maria para visitá-la uma única vez. A mãe não aguentou ver a pequena passar pela humilhação de ficar nua para ser revistada por estranhos, como se fosse uma transgressora. Carolina só verá a filha de novo quando sair da cadeia. Não quer mais que Maria pague pena junto com ela. Enquanto isso, os dias passam lentos, em constante atraso. Para as duas.

*Todos os nomes das presas foram alterados para preservar a identidade das crianças

 

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