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A nova arma do Google

Um gigantesco sistema de inteligência artificial, alimentado com todas as informações do mundo - e capaz de assumir o controle de várias partes da sua vida

Por Bruno Garattoni, de Mountain View
Atualizado em 17 mar 2021, 12h15 - Publicado em 1 ago 2016, 15h59

Reportagem originalmente publicada pela Super em 2016

 

– Ok Google, tô saindo.

– Lamento, mas o seu voo está atrasado.

– Ai, ai. Muda minha reserva do jantar? Coloca uma hora mais tarde.

– Sem problema. Ah, sabe aquele sapato que você anda namorando? Vi em oferta por R$ 149. Quer que eu compre?

– Aquele azul, né? Pode ser.

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– Feito. Ah, sugiro comprar um tênis de corrida também. O seu já tem 587 km de uso. O novo vai custar R$ 249.

– Tá, tudo bem.

– Você tem tempo livre na terça às 9h. (Seu terapeuta cancelou a consulta.) Posso marcar uma corridinha?

– Pode. Agora preciso ir. Me chama um carro?

(Três minutos depois…)

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– Bem-vindo ao Google Self-Driving Car. Chegaremos ao aeroporto em 32 minutos. Fique à vontade enquanto dirijo. Você tem 78 novos emails, dos quais três são importantes. Vou ler esses três e sugerir respostas, ok? A Cris do financeiro quer marcar reunião (sugestão: “espera eu voltar de viagem? bjo”), sua mãe pergunta o que você quer comer no domingo (“carne assada”), a Paula mandou uma foto…

Essa cena é uma simulação. Mas já poderia ser real: todas as tecnologias de inteligência artificial envolvidas nela já existem, e funcionam. Algumas foram lançadas, outras são protótipos em estágio avançado, que estão sendo desenvolvidos pelo Google e por gigantes como Apple, Microsoft, Amazon e Facebook – que, neste ano, fizeram da inteligência artificial sua grande aposta. Eu vim à sede do maior de todos (a convite do Google, passei três dias na cidade de Mountain View, no mês de maio) para descobrir o porquê.

Gato, cachorro e avião

“Quando eu estava na faculdade, nos anos 1990, os computadores não conseguiam diferenciar um gato de um cachorro”, conta o físico e neurocientista Greg Corrado. “Distinguiam um gato de um avião, mas não de um cachorro. É difícil, ambos são peludos e têm quatro patas”, explica. Algo banal para o cérebro humano, mas inatingível para as máquinas. Tanto que dois colegas de faculdade de Greg fizeram uma aposta. Um disse que os computadores demorariam pelo menos dez anos para aprender a distinguir gato e cachorro. O outro disse que seria rápido. Não levou uma década, mas também não foi rápido: aconteceu nove anos e seis meses depois. “Hoje, nosso software consegue olhar uma foto, reconhecer os elementos e até escrever a legenda”, diz Greg, criador e diretor do Google Brain, o centro de inteligência artificial (IA) do Google. Ele foi fundado em 2011 por apenas três pessoas, e era o que a empresa chama de “projeto 20%” – uma iniciativa paralela, a que os funcionários podem dedicar 20% do seu tempo. Hoje o Google Brain reúne mais de cem cientistas, com a missão de desenvolver a inteligência usada nos demais produtos da empresa – que, atualmente, tem nada menos do que 1.200 projetos envolvendo IA.

Imagem sem texto alternativo (Willian Santiago/Superinteressante)

Desde fevereiro, o diretor de buscas do Google é o engenheiro John Giannandrea, especialista em inteligência artificial. E, desde 2015 as pesquisas no Google são gerenciadas pelo RankBrain, um robô inteligente que aprende sozinho a interpretar buscas inéditas, que nunca foram feitas antes (cerca de 20% das pesquisas feitas a cada dia). O Google também já usa inteligência artificial para gerenciar a distribuição de anúncios online, sua grande fonte de receita. Em suma: está apostando tudo nisso.

Não está sozinho. O destaque do iOS 10, próximo sistema operacional da Apple, é a nova versão da assistente Siri, que agora vai conversar com os aplicativos do iPhone (e assumir muito do que hoje é feito via apps, de chamar táxi a pedir pizza). A Apple está seguindo a deixa da Amazon, cuja assistente virtual Alexa se comunica com mais de cem aplicativos – lê notícias, pede Uber e faz compras, entre diversas outras coisas. A Microsoft colocou uma assistente, a Cortana, no Windows 10, e está desenvolvendo softwares capazes de conversar em nível humano – coisa que o Facebook também persegue. É um movimento gigantesco, que tem sido comparado à primeira corrida do ouro da internet: a onda das “empresas ponto.com”, na década de 1990, que gerou a rede que temos hoje.

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Mas por que justo agora? Talvez você não saiba, mas a inteligência artificial não tem um retrospecto muito bom. Lançado em 1968, o clássico filme 2001 tem como protagonista o computador HAL, tão inteligente quanto uma pessoa. Naquela época otimista (o homem chegou à Lua um ano depois), isso parecia exequível. Mas não chegou nem perto. As décadas seguintes foram de impasses e frustrações, que deram à inteligência artificial uma fama ruim. Tanto que hoje os cientistas da área preferem usar outro termo: machine learning, ou seja, aprendizado de máquina. E a novidade está justamente nisso.

Em vez de tentar ensinar o computador, agora a jogada é fazê-lo aprender sozinho, usando as chamadas redes neurais artificiais. “No cérebro, os neurônios se conectam uns aos outros e trocam informações. No sistema artificial, é a mesma coisa. Só que no lugar dos neurônios nós temos uma coleção de funções matemáticas”, explica Greg. Quando você nasce, os seus neurônios já estão formados, mas não sabem trabalhar juntos. Conforme você cresce e aprende coisas, eles formam ligações semipermanentes (são as memórias) e aprendem a funcionar em conjunto.

Depois de décadas em marcha lenta, a inteligência artificial disparou nos últimos anos. Graças a uma nova tática: em vez de tentar ensinar as máquinas, deixá-las aprender sozinhas.

As redes neurais artificiais funcionam de um jeito parecido. Primeiro, o computador é alimentado com dados: a foto de um gatinho, por exemplo. Aí, cada grupo de “neurônios” avalia um aspecto daquela imagem. No nosso exemplo, pode ser a cor do objeto, se a textura é de pelo, se ele tem patas e olhos, etc. Dentro de cada grupo, os neurônios “votam”, ou seja, cada um dá seu parecer (se o objeto tem ou não olhos, pelos, etc.). A rede neural erra muito, literalmente milhões de vezes. Mas uma hora, por pura insistência, acaba acertando. Quando isso acontece, ela evolui: os neurônios que estavam certos desde o início ganham mais peso, e passam a ser copiados pelos demais. Ou seja, a rede neural aprende.

Dali em diante, toda vez que aparecer um gato, ela vai identificar no ato. E quando for aprender a analisar outra coisa (a foto de um cachorro, por exemplo), não vai sair do zero: deduzirá as semelhanças e diferenças daquilo com o que aprendeu antes (gato). Como não requer intervenção humana, esse processo pode ser executado infinitamente. E repetindo o processo muitas vezes, com muitas coisas – imagens, palavras, frases, perguntas, respostas -, e você vai acabar chegando a um computador hiperinteligente.

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Pelo menos essa é a ideia. Ela não é nova: as redes neurais foram propostas pela primeira vez em 1946. Mas só agora, com chips potentes e quantidades astronômicas de dados para treinar, estão decolando. Porque nada na história teve acesso a tantos dados quanto o Google. Além de indexar bilhões de páginas da internet, ele também é alimentado pelos próprios usuários. Quando você recebe um email no Gmail ou salva álbuns no Photos, por exemplo, o Google usa os seus arquivos para alimentar as redes neurais.

“Mostre 1 milhão de imagens de árvores para o computador, e deixe ele aprender sozinho”, explica o engenheiro Otavio Good. Árvores ou qualquer outra coisa – até placas de rua. Tímido, simpático e intensamente nerd, Otavio trabalhava fazendo games de PlayStation e Xbox antes de ir para o Google. Ele é filho de mãe brasileira, aprendeu um pouco de português na infância. E em 2010, para ajudar amigos que iriam visitar o Brasil, criou o WordLens: um app que traduz, em tempo real, o que está escrito em placas, cardápios, etc. Basta apontar a câmera do celular, e a tradução aparece no ato. É bem impressionante. O Google também achou, tanto que em 2014 contratou Otavio e comprou o app dele, que hoje é parte do Translate e funciona com dezenas de idiomas. Nas horas de folga, ele e a esposa (Zinaida Good, bióloga computacional da Universidade Stanford) organizam o que ele chama de festas de machine learning: recebem amigos, cada um com o respectivo laptop, e tentam bolar novos algoritmos de inteligência artificial. Divertido.

Imagem sem texto alternativo (Willian Santiago/Superinteressante)

Otavio está há dois anos no Google, mas ainda parece meio perplexo. “Quando eu fazia games, meu público era tipo 100 mil pessoas. Hoje é uma fração da humanidade inteira”, diz. Quando a conversa termina, pergunto onde fica determinado prédio do Google, onde a próxima entrevista está marcada.

E Otavio comete uma inconfidência: “Eu mostro, vou até lá fora. Não tenho nada para fazer agora”, confessa, rindo.

Conforme as máquinas forem se tornando mais inteligentes e assumindo mais funções, vai sobrar cada vez menos trabalho para as pessoas – inclusive as que trabalham no Google. Mas a tecnologia ainda exige muito suor humano. “Nós transcrevemos, manualmente, 33 mil horas de gravações”, conta a engenheira Françoise Beufays, responsável pelo reconhecimento de voz do Google. Um esforço monumental, que exigiu uma equipe de 600 pessoas. A rede neural do Google foi alimentada com o áudio e as transcrições, comparou as duas coisas e foi aprendendo a reconhecer vozes. Françoise trabalha com reconhecimento de voz há 25 anos, 11 no Google, mas não aparenta: baixinha e elétrica, ela fala excitadamente sobre diversos assuntos – até as gafes que, no processo de aprender e se aperfeiçoar sozinhas, as redes neurais acabam cometendo.

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“Os alemães inspiram antes de falar”, diz, ao contar um caso envolvendo as buscas de voz no Google alemão. Um belo dia, o software decidiu ignorar isso, e começou a entender a típica respiração germânica como se ela fosse um palavrão em inglês (fuck). “Às vezes, o sistema explode na nossa cara”, admite.

Em 2015, a nova-iorquina Jackie Alciné se revoltou ao ver a classificação dada pelo Google Photos a uma imagem na qual ela aparece com uma amiga: “gorilas” (ambas são negras). Por algum motivo, o software achou que essa era a resposta correta. “Nem todo erro é tão doloroso quanto esse. Mas alguns podem ser”, admite o engenheiro Tom Duerig, responsável pelo Photos. Loiro, surfista e típico californiano bicho-grilo, Tom perde a alegria ao falar sobre o caso. Ele lembra outro episódio do tipo, em que o Photos classificou como “baleia” a imagem de uma pessoa obesa na piscina. O algoritmo não é racista nem gordofóbico: simplesmente não tinha visto fotos suficientes de pessoas negras ou obesas.

Acabou sendo alterado, manualmente, para não comparar humanos a animais.

Microcozinhas e maximesas

A sede do Google fica em Mountain View, a uma hora de São Francisco. Recebe 30 mil funcionários e 3 mil estagiários por dia, que consomem de 35 a 50 mil refeições em dezenas de restaurantes e cafeterias e mais de 150 microcozinhas: áreas self-service com geladeiras, máquinas de café e todos os tipos de snack, do mais saudável e exótico (algas importadas da Coreia) ao mais trash – que o Google, propositalmente, coloca em prateleiras baixas e escondidas.

O complexo tem dezenas de prédios agrupados em blocos, lembra um campus de universidade americana. As construções são todas diferentes, sem nada em comum a não ser a altura (no máximo quatro andares), e os escritórios também não seguem um padrão. Uns são abertos, outros têm divisórias e até tendas individuais. Uns têm mesa de pingue-pongue e parede de escalada, outros não têm muita frescura. Muitos têm estandes com revistas e jornais (de papel mesmo). Uma coisa é comum a todos: são silenciosos, tranquilos e até meio vazios. Suas mesas são enormes, com o triplo do espaço normal, e nunca estão lotadas. Isso tem a ver com o tamanho do complexo (os prédios têm 290 mil m2), mas também com uma política: muitos dos funcionários podem trabalhar de casa, e só precisam vir à sede uma vez por semana. E isso não é um gesto de generosidade.

O Google está liberando seus algoritmos para que outras empresas usem e desenvolvam. É a mesma estratégia do Android – hoje presente em 80% dos celulares do mundo.

Mountain View tem 74 mil habitantes. É pequena, pacata, lembra a cidade de Marty McFly em De Volta para o Futuro. Mas, por causa do Google, virou um dos lugares mais caros dos EUA. Alugar uma casa custa US$ 4.000 por mês, e isso se você conseguir uma: a cidade tem déficit de 20 mil residências. Ou seja, acaba sendo meio inviável morar lá. A maioria dos funcionários do Google vive em cidades adjacentes, como San Jose e São Francisco, e vai de carro ou ônibus – o que gera congestionamentos monumentais. O Google quer dobrar o tamanho do seu campus, mas a prefeitura só deixa se a empresa também construir 10 mil casas (ao custo de US$ 6 bilhões). No impasse, a saída foi liberar o home office.

Outra possível solução são os carros autônomos, que podem andar quase colados uns aos outros, o que reduziria muito os congestionamentos. Mas já é meu segundo dia em Mountain View, e ainda não vi o carro do Google. É um protótipo extremamente ousado, sem volante nem pedais, que transporta engenheiros pelas ruas da cidade (único lugar do mundo onde é permitido).

Emails e dinossauros

“Seria bom não ter que digitar tanto”, conta o engenheiro Bálint Miklós, que cuida do Gmail. Pensando nisso, ele criou o que talvez seja o mais impressionante dos inventos de inteligência artificial do Google: o Smart Reply, um sistema que lê emails e responde sozinho. Bálint tem a expressão fechada e séria. Só de olhar, você jamais adivinharia o que fazia antes do Google – foi vice-campeão nacional de patinação artística na Romênia, sua terra natal. Ele só se anima ao falar sobre a inteligência do programa. “Às vezes o algoritmo entende até piadas”, conta. A novidade faz parte do Inbox, aplicativo que é uma espécie de versão experimental do Gmail, e já pode ser baixado na loja Google Play. Conforme você usa o app, ele vê com quem você mais conversa, os assuntos que comenta e até o estilo da sua escrita. Depois de alguns dias, começa a sugerir respostas curtas para os emails. Sempre apresenta três opções, para que você escolha a melhor (também dá para ignorá-las e escrever você mesmo). Funciona superbem. Mas, por enquanto, só em inglês.

A inteligência artificial do app Google Agenda, por outro lado, já funciona na versão em português. Você define uma meta, como fazer exercício ou estudar um idioma. Aí o robô encontra tempo livre na sua agenda – e vai ajustando isso de acordo com a sua rotina (ele deduz o que você fez ou deixou de fazer por meio do GPS do telefone). “Nós aprendemos os melhores horários para as coisas, que podem variar conforme a pessoa ou a profissão dela, por exemplo”, diz Jacob Bank, gerente do Google Calendar. “É uma mistura de inteligência artificial com ciência comportamental”, diz. Jacob ainda não alcançou a própria meta, aprender espanhol. “Nós vamos levar muitos anos até mudar a relação das pessoas com suas agendas”, admite.

No mundo da tecnologia, é uma eternidade. No Computer History Museum, a cinco minutos da sede do Google, estão os computadores mais importantes da história. São marcos tecnológicos incríveis, criados por empresas que pareciam imbatíveis. Mas foram aniquiladas ou viraram sombras do que eram. O Google sabe que não está imune a isso. Tanto é que seus fundadores, Larry Page e Sergey Brin, colocaram a réplica da ossada de um dinossauro, em tamanho natural, no meio do campus. A mensagem é clara: quem não evolui é extinto. Por isso o Google, mesmo no auge do sucesso, decidiu se reinventar.

Tem boas chances de conseguir. Além de investir pesado em inteligência artificial, está distribuindo os frutos: liberando boa parte do que desenvolve, numa plataforma de código aberto chamada Tensor Flow (o nome vem de uma operação matemática realizada pelas redes neurais). A ideia é que outros pesquisadores e empresas usem a Tensor Flow em seus próprios projetos. Se isso acontecer, o Google dominará esse mercado – como hoje o Android, que ele também distribui de graça, domina os smartphones.

No meu último dia em Mountain View, os carros autônomos finalmente dão as caras. Vejo um, dois, três, quatro rodando pela cidade. Ninguém dá bola, eles já fazem parte do cotidiano. Daqui a um tempo, talvez seja difícil imaginar a vida sem eles. Como é, hoje, impossível imaginá-la sem o Google.

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