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O exoesqueleto vira o jogo

Lembra do chute inicial da Copa no Brasil? Ele acabou ajudando a recuperar oito paraplégicos. E de um jeito inédito, que nem os cientistas imaginavam

Por Fabio Marton
Atualizado em 10 mar 2017, 11h24 - Publicado em 9 jan 2017, 17h46

Se você piscou, perdeu. As emissoras de televisão que transmitiam ao vivo a abertura da Copa do Mundo 2014 preferiram filmar o ônibus da seleção brasileira enquanto o pontapé inicial do evento rolava no Itaquerão. O chute foi dado por meio de uma das maiores inovações já capitaneadas por um cientista brasileiro: um exoesqueleto, traje robótico controlado pelo cérebro de seu passageiro. Este era Juliano Pinto, então com 29 anos, paralisado da cintura para baixo por causa de uma lesão na medula espinhal.

Uniformizado com a parafernália, Juliano deu um chute fraquinho, muito aquém da expectativa criada à época pelo neuroengenheiro brasileiro Miguel Nicolelis. O “técnico” do time de cientistas responsáveis pelo exoesqueleto BRA-Santos Dumont se defende das promessas que fez: “O que estávamos passando era uma mensagem de esperança”. Apesar do discurso, Nicolelis e a equipe do projeto Andar de Novo não esperavam o que estava por vir.

Chute certeiro

Após mais de dois anos de pesquisa, testando exoesqueletos com oito voluntários em São Paulo, os cientistas se depararam com um resultado que ninguém ousava imaginar no início do projeto: o uso contínuo dos aparelhos tem ajudado a recuperar os pacientes clinicamente.

Isso não quer dizer que eles saíram por aí caminhando com seus exoesqueletos. Significa que parte da comunicação interrompida entre os neurônios e a coluna vertebral foi restabelecida. Os pacientes passaram a sentir e controlar seus músculos – notavelmente, todos foram curados da incontinência urinária e intestinal que acomete os paraplégicos. Um deles passou a dirigir. Outra ficou grávida e, para sua grande emoção, “percebeu o bebê se movimentando dentro da barriga”, descreve a fisiatra (médica especialista em recuperação de traumas) Ana Rita Donati, que acompanha os pacientes desde o início.

E essas mudanças todas, Ana faz questão de ressaltar, incluem a vida sexual dos paralisados. “Eles vieram para mim e disseram: `olha, eu tive uma relação e senti… algo que não sentia antes¿. Alguns pacientes que já não namoravam começaram a experimentar esse tipo de relacionamento”, confidencia.

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O caso mais dramático foi o do paciente que deu passos com um andador, usando a força de suas próprias pernas, sem contar com ajuda do enfermeiro. “É algo que eu jamais esperaria, um paciente com uma lesão tão séria andar”, diz a fisiatra.

Não, os pacientes não estão batendo pelada por aí. Os oito voluntários da pesquisa em São Paulo deixaram de ser paralisados totais para se tornarem parciais. Eles ainda estão em recuperação, mas os cientistas não arriscam dizer que irão andar normalmente um dia. “Não posso dizer que eu tenha essa expectativa porque as lesões são muito graves e de muito tempo”, diz Nicolelis. “O trabalho continua, mas a gente não sabe até onde vai chegar”, completa.

Onde o milagre acontece

Jogada nada ensaiada

Talvez alguns desses avanços soem modestos para quem não é familiarizado com paralisia. Quem acompanha a condição de longe tende a focar nas dificuldades de mobilidade e ignorar outros obstáculos da vida de quem anda em cadeira de rodas.

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“Todos os pacientes tiveram melhoras e a magnitude delas varia de caso a caso”, diz Nicolelis. “Mas o maior impacto é o controle dos movimentos intestinais”, explica. Muitos paraplégicos têm incontinência em algum grau. Quem sofre com isso acaba obrigado a usar cateteres ligados a bolsas para drenar as excreções ou até mesmo fraldas – o que atrapalha bastante a vida social de uma pessoa. Os usuários do exoesqueleto, porém, têm se livrado de constrangimentos como sujar uma fralda em público. “Um dos nossos pacientes foi a um evento e percebeu que precisava ir ao banheiro”, conta Ana. “E ele conseguiu segurar por uma hora e meia”, conta.

Ir ao banheiro como todo mundo tem um impacto bem maior do que parece. Significa que os oito pacientes estão livres do aspecto mais nefasto da paralisia: infecções. “Essa é a maior causa de mortalidade e morbidade em pacientes paralisados”, diz Nicolelis. “Um deles tinha muitas infecções urinárias e passou um ano inteiro sem ter nenhuma”. Doutora Ana dá um contexto: “por causa das infecções, paralisados têm uma expectativa de vida entre 10 a 20 anos menor”.

Um tipo de infecção particularmente maligna são as escaras: necroses causadas por falta de circulação. Sem irrigação sanguínea, partes do corpo morrem e se decompõem, abrindo rombos que chegam até os ossos. Paraplégicos têm escaras porque não percebem quando estão na mesma posição por tempo demais, cortando a circulação. Em pessoas com mobilidade normal, a falta de circulação é notada por uma sensação de dormência – ao senti-la, é só se movimentar para fazer o sangue correr. Nos paralisados, a parte de baixo do corpo está sempre dormente. Assim, eles não se movem para evitar as escaras.

Pernas e nádegas são as partes do corpo mais afetadas por esse tipo de necrose. Junte a isso o fato de serem regiões em contato com fraldas geriátricas e a equação é letal: um rombo profundo e emporcalhado pode causar infecção generalizada e morte. Assim morreu Christopher Reeve, o Superman dos anos 1980, que ficou tetraplégico após cair de um cavalo.

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Se o feito de colocar pacientes em pé por conta própria ainda não veio, o Andar de Novo já deu a eles uma vida melhor. Talvez, até mais longa. E já tem mais gente sendo tratada. “Testamos outro grupo de pacientes, e teremos resultados divulgados em breve. As pessoas ficarão chocadas”, promete Nicolelis. Resta conferir se a diferença entre expectativa e realidade será a mesma do chute inaugural da Copa.

Lutando contra o cérebro

“Não teve um primeiro caso, isso veio espontaneamente de todos os pacientes”, conta Ana Donati. “Eles começaram a falar em pequenas sensações, queimações, formigamentos, sentir temperatura. Ficamos totalmente céticos no começo, claro… Mas, então, um fala, outro fala… Pensamos: `Epa! Tem alguma coisa acontecendo aqui¿. E aí começamos a observar alguns pacientes fazendo movimentos.”

Foi um choque inclusive para os pacientes. “Nos primeiros meses eles não acreditavam. A gente teve de mostrar filmagens para convencê-los que eram eles mesmos”, conta Nicolelis. O choque generalizado ocorreu porque os relatos de recuperação não deveriam estar acontecendo. Isso porque o sistema nervoso central sabota as próprias tentativas de recuperação. Quando ocorre dano na comunicação cérebro-coluna, é criada uma cicatriz glial – uma camada de células da glia, estrutura de suporte do cérebro, que impede a criação de conexões nervosas. Esse mecanismo existe para impedir que infecções destruam todo o resto, mas, como consequência, também impede completamente a recuperação de pacientes com lesão medular.

Em caso de dano cerebral, é possível recuperar, ao menos parcialmente, funções avariadas, já que o cérebro é plástico e outras partes podem assumir novas funções. Quem sofre dano na medula não tem a mesma sorte. Ela é um cabo de nervos que sai da cabeça, leva os comandos do cérebro para os músculos voluntários e traz de volta a resposta do ambiente às ações. Se a medula é interrompida por uma cicatriz glial, nada passa.

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O que teria acontecido, então? Para Nicolelis, foi efeito da intensa imersão nas fases de treinamento. “São vários os fatores que determinam os resultados positivos, mas o principal é que os pacientes estão engajados mentalmente no processo de recuperação, usando a habilidade cerebral o tempo todo para controlar um corpo virtual ou robótico e recebendo um feedback tátil realista”, explica. “A conjunção entre os feedbacks virtuais e táteis potencializou um processo de plasticidade cerebral. Quando esse processo se expandiu, provavelmente o cérebro encontrou formas de transmitir essa informação por meio de resquícios de nervos que tenham sobrevivido.”

Essa é a hipótese. O fato, porém, é que ainda são necessárias pesquisas clínicas, talvez de anos, para confirmar os resultados. “Estamos tentando demonstrar isso com exames de imagem”, diz Nicolelis.

O caminho da recuperação

Novo jogo

Na tentativa de criar um robô, o Andar de Novo está melhorando a vida das pessoas com lesão na medula. O que vem a partir de agora? “Nós estamos passando para o terceiro protótipo do exoesqueleto”, afirma Nicolelis. “A recuperação de funções passou a ser o foco. Descobrimos um filão de ouro que não dá para deixar de lado. E isso se tornou a prioridade”, completa.

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Os promissores resultados despertaram novos interesses. “Temos vários colaboradores que começaram a desenvolver outras aplicações para o exo”, conta o cientista. “Um colega nosso na Suíça está desenvolvendo uma versão para pessoas idosas. Várias linhas de pesquisa se abriram, e a gente vê aplicações no futuro para outras doenças neurológicas. Nosso exoesqueleto é instrumentado para dar sensação tátil. Isso muda muito o jogo porque faz com que o cérebro assimile o esqueleto como parte de seu ser.”

O que virá, ninguém sabe dizer. A pesquisa abriu uma vereda não só para a melhora imediata de paraplégicos, como para uma miríade de aplicações envolvendo a indústria de exoesqueletos e a conexão entre cérebro e máquinas. Esqueça, enfim, o 7×1. A Copa 2014 começou com um pontapé que poucos assistiram ao vivo, mas que muitos ainda poderão ver balançar as redes.

 

 

Currículo

“A recuperação de funções passou a ser o foco. Descobrimos um filão de ouro que não dá para deixar de lado. E isso se tornou a prioridade.” (Tomás Arthuzzi/Superinteressante)

Este paulistano de 55 anos é neuroengenheiro e fanático pelo Palmeiras – não necessariamente nesta ordem. Na Universidade Duke, EUA, Miguel Nicolelis comanda um laboratório de pesquisa de interface entre cérebro e computador.

Em 2004, conseguiu que um macaco movesse um membro robótico com seus pensamentos, o que lhe rendeu no mesmo ano a menção como pesquisador mais importante na engenharia biomédica pela revista Scientific American.

Em 2013, fez dois ratos se comunicarem por uma interface de computador. O projeto Andar de Novo, sua iniciativa de reabilitação motora com o exoesqueleto, começou em 2012. Nicolelis também criou o Centro Internacional de Neurociência, em Natal.

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