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Vida fora da Terra: o planeta dentro de uma redoma

Encerrados em uma perfeita réplica do planeta, quatro homens e quatro mulheres preparam-se para viver dois anos isolados do mundo.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h31 - Publicado em 31 dez 1990, 22h00

Encerrados em uma perfeita réplica do planeta, quatro homens e quatro mulheres preparam-se para viver dois anos isolados do mundo.

O sonho de colonizar os planetas geralmente evoca uma vida de desconforto e monotonia num ambiente frio e artificial. Se depender da empresa americana Space Biospheres Ventures (SBV), no entanto, os pioneiros do cosmo mal sentirão a ausência de casa. E, para provar isso, ela construiu o que imagina ser um modelo da futuras colônias em Marte ou em outros mundos. Trata-se de uma requintada réplica da Terra, reduzida às proporções de um quarteirão e selada dentro de uma redoma de vidro e aço tão alta quanto um prédio de oito andares. Denominada Biosfera II, para diferenciá-la da Biosfera I æ a própria Terra æ , é difícil lembrar de alguma coisa que os projetistas tenham esquecido de instalar no seu interior. A começar pelos seres humanos, já que neste início de ano oito corajosos cientistas, quatro mulheres e quatro homens, devem trancafiar-se nesse planeta modelo para tentar viver dois anos desconectados do mundo.

Seria uma lúgubre perspectiva, se aí não encontrassem a riqueza paisagística e a vida dos principais habitats terrestres. Entre outras coisas, podem banhar-se em um pequeno oceano, chacoalhado por ondas artificiais e recortado por um recife de coral. Como alternativa, a poucos metros da praia, contam com a sombra de uma minifloresta tropical. Inspirada na Amazônia e muito úmida, ela situa-se em posição oposta a um terceiro ambiente, um deserto, necessariamente seco e quente. Entre esses dois pólos, além do mar, há ainda um pântano e uma savana. “A Biosfera é uma ponte entre a ciência espacial e a ecologia”, aposta um dos diretores da SBV, Mark Nelson. No total povoam a redoma 3 800 espécies de animais e plantas com as mais variadas aptidões. Algumas delas servem para recortar os ambientes, como uma cortina de bambus tolerantes ao sal, providencialmente disposta entre o mar e a floresta. As plantas do deserto também têm um papel prático, pois florescem no inverno, quando as outras espécies vegetais estão em fase de dormência. Assim, a vegetação do deserto assume a tarefa essencial de absorver o gás carbônico, constantemente expirado pelos animais, e reemitir oxigênio. Essa reciclagem é tão importante, que impôs limites ao tipo e tamanho dos animais que podiam ser enclausurados.

Outro fator limitante, relacionado com esse, são as necessidades calóricas: animais que comem muito ficam de fora. Em vista disso, a maior parte dos bichos é composta por peixes, répteis e anfíbios, cujo organismo é mais lento e apresenta menor demanda energética. Os maiores mamíferos presentes, de fato, não passam de três gálagos, macacos quenianos de apenas 20 centímetros de comprimento. Isso, é claro, sem contar os humanos e suas presas, isto é, os animais domésticos incluídos como fonte de alimento. Mesmo nesse caso, porém, houve o cuidado de selecionar espécies pequenas, como um miniporco vietnamita, responsável pelo suprimento de carne, uma minicabra africana produtora de leite e minigalinhas japonesas, boas poedeiras.

Além disso, a contribuição desses animais para o cardápio restringe-se à variedade, ou um complemento à dieta básica. Da mesma forma, espera-se que pelo menos uma refeição por semana contenha frutos do mar, tais como ostras, mariscos, caranguejos e polvos. Mas nenhum desses itens compete em quantidade com as tilápias: elas fornecem o grosso das proteínas consumidas. Em seguida, vêm cinqüenta tipos de plantas cultivadas, como arroz, milho e legumes. Entre os vegetais, a variedade virá das frutas: até 85 por cento das espécies florestais são frutíferas e não haverá um único dia sem que pelo menos uma planta esteja frutificando.”Os biosferianos terão a melhor dieta do mundo”, opina o médico-chefe do projeto, Roy Walford, que vai ainda mais longe. Ele espera aumentar a expectativa de vida dos candidatos a colonizadores do espaço. Para isso, conta com uma fórmula que reduz o número de calorias e amplia a qualidade nutritiva das refeições. “Ratos submetidos a essa receita têm vida bem mais longa que a média da espécie”, argumenta. Pode ser. Mas os verdadeiros desafios do projeto são outros. Aparentemente triviais, são muito difíceis de resolver.

Basta pensar na respiração. Ninguém se preocupa com o gás carbônico que exala ao respirar, porque as plantas o reconvertem continuamente em oxigênio. Num ambiente fechado, porém, o volume de gás carbônico cresce, em detrimento do de oxigênio, e mais cedo ou mais tarde acaba sufocando as pessoas e os animais presentes. O problema é tão sério, que na prática inviabiliza os vôos espaciais de longa duração. Os americanos, por exemplo, não podem ficar mais que dez dias em órbita, porque têm de levar consigo uma grande quantidade de oxigênio. Os cálculos mostram que cada astronauta precisa de pelo menos 5 quilos diários de alimentos, água e ar. Apenas em ar, o consumo alcança 3 quilos por dia, 60 por cento do peso total da mochila básica (os alimentos pesam 750 gramas e a água, 850 gramas).

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Para que os astronautas não sufoquem, todos os dias é preciso recolher o gás carbônico gerado pela respiração e injetar nova cota de oxigênio nas cabines. Tudo isso, é claro, ocupa grande espaço no Shuttle, o principal veículo americano para operações em órbita, e custa caro — cada quilo de suprimentos sai pela pequena fortuna de 10 000 dólares. Diante desses números, fica fácil imaginar as dificuldades da grande estação orbital que os americanos planejam estacionar no espaço, em futuro próximo. Num projeto dessa envergadura, é preciso pensar em suprimentos para quatro ou cinco pessoas, em média, e durante um prazo de dois ou três anos. Nesse caso, a carga de provisões pode chegar a 20 toneladas, analisam os especialistas da NASA, a agência espacial americana.

Portanto, há razão de sobra para se pensar numa instalação auto-suficiente, isto é, que não exija novos suprimentos da Terra. É exatamente isso que se pretende com a Biosfera: estudar um meio ambiente fechado capaz de viver de si mesmo, como a Terra. Como é extremamente bem selada, tanto pode servir de suporte à vida no espaço, flutuando em órbita, como no solo hostil de um planeta vizinho. A redoma montada pela firma SBV, de fato, é capaz de reter o mesmo volume de ar, sem perdas significativas para o exterior, durante nada menos que 100 anos. Ao longo desse período, pelo menos em princípio, o oxigênio consumido seria reposto pelas plantas, em um sistema contínuo de reciclagem. Por outro lado, as fezes e a urina dos animais e do homem, seriam usadas para realimentar o solo e manter a produção vegetal em bom nível.

Algo semelhante já foi feito na União Soviética, no Instituto de Biofísica de Krasnoyarsk, onde três cientistas sobreviveram seis meses apenas com o ar reciclado por plantas. Também obtinham uma parte pequena de sua alimentação em hortas cultivadas. Apesar disso, os próprios soviéticos ainda encaram esse tipo de sistema como simples experiência e não o empregam em sua estação orbital Mir. Quando ela está ocupada, às vezes durante quase um ano, os astronautas têm que receber novas provisões regularmente. O fato é que não é brincadeira criar um sistema fechado, explica o biólogo Joe Hanson, do Laboratório de Jatopropulsão da NASA.Ele próprio imaginou uma experiência singular, mais pretensiosa do que simplesmente repor o ar com ajuda das plantas. Para isso, fabricou um globo de vidro, do tamanho de um melão, cheio de água e hermeticamente fechado, no qual encerrou um conjunto de bactérias, algas e camarões. Os camarões alimentavam-se de algas, respiravam oxigênio dissolvido na água e exalavam gás carbônico. Os seus dejetos, degradados pelas bactérias, serviam de alimento para as algas que, durante a fotossíntese, ao absorver gás carbônico, devolviam oxigênio à água. De maneira geral, o mecanismo funcionou, mas Hanson percebeu rateios perigosos em sua marcha. A reciclagem dos resíduos gasosos, por exemplo, não era constante, de modo que seu volume, em certos momentos, aumentava muito acima da média.

Essas flutuações não liquidaram os camarões porque eles toleram bem o excesso de gás carbônico. Mas os riscos aumentam muito quando se trabalha com organismos mais exigentes, afirma o cientista. “Ainda não foi possível manter vivo um vertebrado, como um peixe, por mais de dois meses.” O projeto da Biosfera surgiu como uma ousada alternativa a esses resultados. Os seus autores argumentam que, quando se fala em reciclagem, talvez seja um erro tentar simplificar. Num ambiente onde vivem apenas camarões, algas e bactérias, perde-se a visão global e a grande variedade dos sistema reais. O ideal, segundo esse raciocínio, é montar habitats diversificados, como a própria Terra, e monitorá-los com precisão. Assim, os porões da Biosfera contêm um avantajado computador — o “sistema nervoso” do mundo artificial.

Ligado a 3 500 sensores espalhados pela redoma, ele é capaz de registrar dezenas de dados essenciais ao desempenho da experiência. Os sensores podem avaliar não apenas a quantidade de gases presentes na atmosfera, mas também o seu volume, já que o ar pode expandir-se ou contrair-se de acordo com a temperatura. A temperatura, por sua vez, também pode elevar-se devido ao excesso de gás carbônico, o qual retém calor por meio do temido efeito estufa. A umidade do ar é outro fator decisivo no desenvolvimento dos vegetais — uma das ousadias da Biosfera foi reunir, sob o mesmo teto, ambientes tão diferentes quanto um deserto e uma floresta tropical. O computador está preparado para ativar um sem – número de válvulas, ventiladores e bombas hidráulicas. Esse equipamento será responsável pelo controle de fenômenos como a chuva e o regime dos ventos, e também para corrigir falhas eventuais no curso dos acontecimentos. Certamente, é impossível prever o destino de um ambiente tão complexo. O oceano serve de ilustração, pois, por ser pequeno, rapidamente acumula resíduos orgânicos que absorvem oxigênio e ameaçam os corais e outros habitantes marinhos. Para que isso não aconteça, a água flui constantemente entre a superfície e o subsolo da redoma, onde passa por uma limpeza em regra. A operação, inteiramente automatizada, é feita por mais de trinta espécies de algas, que, em tanques especiais, devoram os resíduos orgânicos.

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Na verdade, não há sequer garantia de que as plantas cultivadas vão sobreviver, ou se sua produção será suficiente para alimentar os humanos. Também não se sabe se os animais selvagens se adaptarão às novas circunstâncias. A maioria, num total de 45 espécies, é composta por insetos e foi escolhida por ser útil. Alguns deles revolvem o solo, outros servem de alimento para animais maiores e outros, enfim, contribuem para a reprodução das plantas, pois espalham as sementes e fazem a polinização. Resta saber se vão concretizar as expectativas.Mas as incertezas não preocupam os criadores da Biosfera. Para eles, mesmo se a reciclagem falhar, valerá a pena, pois será possível aprender com os defeitos. “A idéia é justamente essa”, avalia o botânico inglês GhIllean Prance, consultor do projeto. “Preferimos reunir um grande número de espécies e observar quais delas se saem melhor. Estou preparado até para ver algumas sucumbirem à extinção.” Confortavelmente instalados em apartamentos privados, os pesquisadores encerrados na Biosfera terão a tarefa de observar, em primeira mão, o desenvolvimento de seu micromundo.

Além de uma reunião informal para distribuir tarefas, realizada todos os dias, eles pretendem dedicar as manhãs à agricultura, deixando os trabalhos de pesquisa para a parte da tarde. Entre uma coisa e outra, podem ver televisão, ouvir música, ou mesmo fazer música, como é o caso do engenheiro eletrônico Taber MacCallum, autorizado a levar uma bateria para a Biosfera. A única exigência é que ele toque num quarto à prova de som, para não perturbar o trabalho — ou mesmo o descanso — dos outros. Talvez a principal diversão da equipe seja simplesmente passear em seu paraíso. Alguns dos escolhidos já haviam passado por experiência semelhante, em redomas menores construídas pela própria SBV, e estão agora encantados com o espaço disponível. É o caso da ecologista Linda Leigh, que viveu vinte dias em um módulo 300 vezes menor que a Biosfera. “Só o fato de poder me mover em três dimensões, me dá grande sensação de liberdade.”Essa declaração revela uma perspectiva otimista que nem os mais ferozes críticos da experiência querem desabonar. Muitos cientistas duvidam da eficácia do projeto, em parte devido ao seu elevado preço — 180 milhões de dólares, financiados por um excêntrico bilionário americano, Edward Bass. Além disso, acredita-se que ele é complexo demais para ser monitorado, ou para, algum dia, ser enviado ao espaço. Mas a comunidade científica sempre simpatiza com a ousadia. É o que pensa, por exemplo, o especialista Arthur Galston, da Universidade Yale, para quem as perspectivas científicas são frágeis, na Biosfera. “Mesmo assim, ela abre caminho para uma região que nunca havia sido explorada antes.”

Para saber mais:

Ascensão e queda de uma utopia verde

(SUPER número 8, ano 9)

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