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Por Alexandre Versignassi
Blog do diretor de redação da SUPER e autor do livro "Crash - Uma Breve História da Economia", finalista do Prêmio Jabuti.
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O ódio ingênuo contra as doações dos bilionários para a Notre Dame

Não, os ultra-ricos não teriam como acabar com a pobreza no mundo se quisessem. Mas isso não significa que o nível de desigualdade de hoje seja tolerável.

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Atualizado em 24 abr 2019, 00h39 - Publicado em 18 abr 2019, 17h03

As doações relâmpago para a reconstrução da Notre Dame viraram motivo de raiva.

Normal. É difícil entender como é que bilionários e empresas da França surgem com 800 milhões de euros do nada para salvar uma construção, ainda que uma tão importante, enquanto há tanta pobreza, tanta tragédia humana (nos próprios arredores de Paris, inclusive).

Pior: quem está pagando a conta da Notre Dame é o contribuinte francês, já que a grana das doações será dedutível de impostos lá na frente. Na prática, os 800 milhões de euros são só um adiantamento. E vale lembrar que o contribuinte não vai ganhar nome da plaquinha.

Também vale lembrar como o sistema funciona – goste-se ou não dele. Os 800 milhões de euros não estavam em caixas fortes esperando pelo dia em que seriam trocados por iates e aviões particulares.

Pela lógica do sistema financeiro, boa parte estava emprestada para o governo. Para vários governos, na verdade: o da França, o dos EUA (a maior parte), um pouco para o do Brasil, até.

É onde fica o dinheiro do seu fundo de renda fixa – emprestado só para o governo do Brasil. Quem tem mais grana deixa em fundos com títulos de mais países, já que um bilionário prevenido vale por dois.

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Voltando aos governos: o Estado usa esse dinheiro emprestado para pagar aquilo que gasta além do que arrecada. Ou seja, para cobrir seus “déficits”. Todo país gera déficit de vez em quando. Economistas à esquerda, como o Nobel Paul Krugman, até sugerem que eles deveriam gerar déficit de vez em sempre, que todo governo tem de gastar mais do que arrecada todos os anos, e seguir pegando emprestado com você e com os bilionários para cobrir os buracos.

Esse esquema de refinanciamento, de qualquer forma, às vezes dá pau. Existem momentos em que ninguém quer emprestar para uma país – ou seja, em que ninguém quer comprar títulos do “tesouro direto” dele, por medo de calote. Quando isso acontece o tal país quebra – foi o que aconteceu com a Grécia, com a Argentina, com o Zimbabwe.

Seja como for, os déficits seguem firmes, principalmente no mundo desenvolvido. O do Reino Unido é de 40 bilhões de libras por ano. A França vai gastar 75 bilhões de euros a mais do que arrecada em 2019. Os EUA, US$ 900 bilhões. Em 2022, estima-se, eles irão operar um déficit de US$ 1 trilhão por ano.

O do Brasil será de R$ 139 bilhões, caso não haja surpresas.

Quando você ou algum endinheirando precisam de dinheiro, seja para pagar as contas, seja para salvar uma igreja medieval, vocês estão vendendo seus títulos de dívida para algum banco. Dentro do banco, os títulos vão servir de lastro pros fundos DI e de renda fixa dos clientes. Por isso que o seu dinheiro cresce nesses fundos: é o governo pagando para você com dinheiro que pega emprestado dos outros vendendo mais títulos.

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Parece uma zona. E até é. Mas o fato é que o dinheiro das grandes fortunas também faz parte das veias e artérias que irrigam os gastos públicos no planeta.  E também é fato que, sem esse sistema, o século 20 basicamente não teria acontecido. Alguns de nós estariam plantando beterrabas. Os menos sortudos estariam morrendo por falta de antibióticos básicos.

Vale lembrar que o país que mais produz bilionários é comunista: a China. Deng Xiaoping, o líder que abriu o país, nos anos 70, justificou a troca do sistema planificado por uma economia razoavelmente livre dizendo que “pobreza não é socialismo”. Ele sabia que só uma realidade que permitisse o acúmulo de riquezas traria os investimentos necessários para melhorar o padrão de vida da população como um todo. Hoje, a China tem 476 bilionários em dólar, quase o mesmo número do EUA. Os socialistas raiz certamente não veem mérito nisso. Mas provavelmente vejam no fato de que 700 milhões de chineses saíram da pobreza por conta do mesmo movimento que produziu uma casta de super-ricos.

Mas claro: não é humano ignorar as desigualdades. Os 200 milhões de euros que a família Arnault, dona da Möet Henessy Louis Vouiton, doou mal roçam no patrimônio de 80 bilhões de euros dos caras. É o equivalente a você ter uma poupança de R$ 50 mil e doar R$ 125. Ironia: como você vê pelo nome da empresa, trata-se de uma fortuna criada não tanto pelo comércio produtos, mas pela venda de status.

Os 200 milhões de euros que a família Arnault, dona da Möet Henessy Louis Vouiton, doou mal roçam no patrimônio de 80 bilhões de euros dos caras. É o equivalente a você ter uma poupança de R$ 50 mil e doar R$ 125.

Não que isso seja um problema. Na Roma Antiga, a posse de certos produtos que só serviam para dar status era punida com pena de morte. Era o caso das túnicas chinesas de seda púrpura, que atravessavam meio Sistema Solar (em valores métricos de hoje) para chegar ao seu público. Sem uma autorização por escrito do imperador em pessoa você não podia ter uma. Mesmo assim, o artigo aparecia em tabelas de preços para o público geral – custava o mesmo tanto de uma bolsa Louis Vuitton de hoje: mais de R$ 200 mil em dinheiro de hoje. Sempre que houver alguém interessado em comprar status, haverá comércio de status. Sorte do pessoal da Louis Vuitton.

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Existem 2.153 bilionários em dólar no planeta. Isso não enche metade dos 4 mil lugares do Estádio da Rua Javari, casa do Juventus da Mooca.

Existem 2.153 bilionários em dólar no planeta. Isso não enche metade dos 4 mil lugares do Estádio da Rua Javari, casa do Juventus da Mooca.

Esse clube (não o Juventus, o dos Tios Patinhas da vida real) detém US$ 8,7 trilhões. Em reais, 34 trilhões. De acordo com a Oxfam, uma ONG britânica, só a fortuna dos 26 mais ricos equivaleria à riqueza da metade do planeta.

Estatísticas como essa da Oxfam, baseada em dados do Credt Suisse, não são exatamente confiáveis. Ela só contabiliza como “riqueza”imóveis e ativos financeiros (não conta eletrodomésticos, celulares e outros de consumo duráveis). Por esse cálculo, então, você só sai da miséria absoluta a partir do momento que possuir casa com escritura, ações, fundos de investimento.

Mesmo assim, não há como negar a existência da desigualdade. Atravesse o Túnel Rebouças no Rio ou algumas das pontes da Marginal Tietê, em São Paulo, e seja transportado em cinco minutos da Bélgica para a Índia.

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É ingênuo, porém, imaginar que bastaria força de vontade do hiper-ricos para “acabar com a pobreza no mundo” ou coisa que o valha. A dívida somada de todos os governos é de US$ 164 trilhões. Corte as cabeças dos bilionários, confisque tudo o que eles acumularam, e você verá essa dívida cair para US$ 154 trilhões. Fuén.

A dívida somada de todos os governos é de US$ 164 trilhões. Corte as cabeças dos bilionários, confisque tudo o que eles acumularam, e você verá essa dívida cair para US$ 154 trilhões. Fuén.

A solução mais apontada para reduzir a disparidade é a criação (ou o aumento) dos impostos sobre grandes fortunas. Todo fã sério dos Beatles sabe como funciona. Na Taxman, de 1966, um George Harrison de 23 anos reclama da taxa de 95% que britânicos hiper-ricos como ele deveriam pagar quando atingiam um certo patamar de ganhos. “One for you”, diz o cara dos impostos na música, “nineteen for me”. Ou seja: 95% para o leão, 5% para o pobre George.

A instituição desse tipo de taxa criou um êxodo de milionários. Os Rolling Stones se diziam moradores do Caribe para não enfrentar a taxação britânica – nem a americana; nos anos 70, Jagger e Richards moravam efetivamente em Nova York, mas declaravam residência no Caribe para pagar perto de zero em seus paraísos fiscais.

Os ultra-ricos de hoje preferem estabelecer residência em lugares como Suíça e Singapura. Além do IDH alto, afinal, ambos são tão paraíso fiscal quanto as casas dos chefes do tráfico da favela da Rocinha – ninguém aparece lá para encher o saco com esse negócio de imposto.

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Suíça e Singapura são tão paraíso fiscal quanto as casas dos chefes do tráfico da favela da Rocinha – ninguém aparece lá para encher o saco com esse negócio de imposto.    

Não fica só nisso, claro. Você, bilionário, pode muito bem morar na Lagoa Rodrigo de Freitas e ter parte de sua fortuna em bancos com sede no Caribe, ou na Suíça, ou em Singapura. Lembra aqueles “trusts” do Eduardo Cunha? Então. É isso: uma tramoia financeira para deixar seus ganhos longe dos olhos do leão – ou da polícia mesmo, no caso de Cunha, e de tantos outros.

No fim do dia, a única forma completamente de instituir um imposto sobre grandes fortunas é criminalizar os paraísos fiscais. Só tem um problema: não existe um “governo da Terra”. Não dá para ligar 190 e mandar uma viatura para fechar a Suíça.

A solução? Se eu tivesse respostas simples e lacrantes para questões tão complexas, não estava aqui escrevendo artigo. Estaria escolhendo em qual trust deixar os meus milhões.

 

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