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Bruno Garattoni Por Bruno Garattoni Vencedor de 15 prêmios de Jornalismo. Editor da Super.
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Inédita no mundo, acusação da Anvisa contra a Sputnik gera polêmica

Agência negou autorização para a vacina no Brasil e afirmou que ela contém vírus replicante, uma falha de segurança grave; russos dizem que decisão foi política e pedem ação do STF para liberar o imunizante, aprovado em 62 países; controvérsia está ligada a diferença entre norma russa e americana

Por Bruno Garattoni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 29 abr 2021, 09h01 - Publicado em 27 abr 2021, 15h19
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    “Verificamos a presença de adenovírus replicante em todos os lotes. Isso é uma não-conformidade grave e está em desacordo com o desenvolvimento de qualquer vacina de vetor viral. A presença de um adenovírus pode ter impacto na nossa segurança”, declarou Gustavo Santos, gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos da Anvisa, durante a assembleia de ontem à noite (dia 26 de abril) em que a agência negou a autorização de importação da Sputnik V

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    É uma acusação grave, e inédita no mundo: até o momento, a Sputnik recebeu autorização para uso emergencial em 62 países, sem que nenhuma outra agência regulatória tenha apontado problema similar. 

    A Sputnik V foi desenvolvida pelo Instituto Gamaleya, na Rússia, e é uma vacina de vetor viral – mesma tecnologia usada na vacina da Universidade de Oxford e na da Johnson & Johnson. As vacinas desse tipo usam um vírus inofensivo como veículo: ele transporta uma “carga” para dentro do corpo humano. Tanto na Sputnik quanto nas vacinas de Oxford e da J&J, essa carga é um conjunto de genes – que fazem o organismo produzir a proteína spike, principal elemento do coronavírus. Quando isso acontece, o sistema imunológico reconhece a proteína spike, cria anticorpos contra ela, e a pessoa fica protegida contra o Sars-CoV-2. 

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    A Sputnik usa dois vetores, os adenovírus humanos Ad26 e Ad5: eles estão contidos, respectivamente, na primeira e na segunda dose. Ela é diferente da vacina de Oxford, que usa o mesmo vetor viral nas duas doses – o ChAd, um adenovírus que infecta chimpanzés. A vacina da Johnson & Johnson usa apenas um vetor, o Ad26. 

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    O uso de dois vetores torna o processo de desenvolvimento bem mais complexo (é quase como criar e produzir duas vacinas diferentes), mas tem uma recompensa: aumenta a eficácia da vacina. Isso porque, após a exposição a um vírus, o organismo desenvolve resistência parcial a ele – o que reduz a potência da segunda dose das vacinas de vetor viral. Também é possível que parte da população já tenha sido exposta ao Ad26 ou ao Ad5 (que normalmente causam sintomas leves de resfriado), o que pode reduzir a ação da vacina. 

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    Ao usar dois vetores, a Sputnik dribla esses potenciais problemas. Ela alcançou 92% de eficácia geral nos testes – bem acima de sua congênere de Oxford, que atingiu 63%, e da vacina da Johnson, também de vetor viral, com 66%. Todos os números foram revisados por cientistas independentes, e publicados em jornais científicos de prestígio. 

    As vacinas de vetor viral possuem um mecanismo de segurança importante: seus vetores, os vírus, são modificados geneticamente para que não consigam se replicar no corpo humano. O Ad26 e o Ad5 desenvolvidos pelos russos, bem como o Ad26 da Johnson e o  ChAd criado pelos ingleses, não possuem os genes necessários para se reproduzir. Eles só conseguem se replicar na presença de “células complementares”, que também foram modificadas – e carregam esses genes. Veja no exemplo abaixo:

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    gráfico
    Replicação viral em “célula complementar”, que expressa genes necessários ao vírus, e não-replicação em célula humana normal. O exemplo considera uma versão não-replicante do HSV (vírus da herpes) desenvolvida em laboratório. (Harvard Medical School/Reprodução)

    É assim que os vetores são fabricados: usando “células complementares” geradas em laboratório. Pois é nelas, e somente nelas, que esses vírus modificados conseguem se reproduzir. 

    Mas a Anvisa diz ter encontrado algo totalmente diferente na Sputnik: vetor viral replicante, ou seja, capaz de se multiplicar. “As vacinas [de vetor viral] são projetadas para não possuir vírus replicantes, ou seja, quantidade nula de vírus que se replica. Isso é o ideal. Quando há replicação viral, não se sabe em quais órgãos esses vírus irão se acumular e atuar, e se haverá danos a esses tecidos e órgãos”, declarou Antonio Barra Torres, diretor-presidente da agência.   

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    Autoridades russas reagiram à decisão, acusando a Anvisa de agir sob pressão política  e pedindo o envolvimento do STF. Governadores de Estados do Nordeste, que pretendem importar a Sputnik, também atacaram a agência. No ano passado, a Anvisa sofreu críticas relacionadas a supostas pressões, como quando autorizou o uso de testes de Sars-CoV-2 fora do prazo de validade, que haviam sido comprados e esquecidos pelo Governo Federal. 

    Deixando a política de lado, há uma possível explicação científica para o caso. A Anvisa pode estar dando peso exagerado a um fenômeno normal, de pouca importância – e que também afeta a vacina de Oxford. Vamos lá. 

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    TRANSCRIÇÃO X REPLICAÇÃO

    Para que a Sputnik contivesse vetor replicante, seria necessária uma contaminação de grandes proporções, com mistura de cepas virais totalmente diferentes, no Instituto Gamaleya. Isso parece pouco provável, por uma razão simples: se acontecesse, provavelmente já teria ocorrido em outros lotes, e sido detectado por algumas das 62 outras agências regulatórias que liberaram o uso emergencial da vacina russa pelo mundo. 

    Existe uma segunda hipótese, mais plausível. É possível que a Anvisa tenha aplicado um teste extremamente sensível, que insere o vetor viral em células humanas isoladas e vê se elas reproduzem o vírus ou fragmentos dele. Esse fenômeno, como constatou um estudo realizado pelas universidades de Oxford e Bristol, acontece com a vacina inglesa, que provocou “níveis muito baixos de expressão de genes adenovirais”. 

    O estudo demonstrou que houve transcrição, ou seja, o vetor viral de Oxford conseguiu reproduzir alguns dos seus genes em células humanas. Percebeu? Tecnicamente, de forma bem restrita, ele foi “replicante”. Mas isso não significa que seja capaz de se reproduzir integralmente, gerar descendentes completos e viáveis, em escala relevante e/ou dentro do corpo humano, sob pressão imunológica.

    Há um oceano de diferença entre as coisas. Tanto é assim que o fenômeno foi considerado “normal” pelo estudo. Talvez a Sputnik produza um efeito similar, similarmente inofensivo. E a Anvisa, por algum motivo, esteja dando peso demais a ele. 

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    Para elucidar o caso, é essencial que a Anvisa forneça a documentação na qual se baseou. A Super procurou a agência na tarde de hoje (27 de abril), solicitando os relatórios ou planilhas em que ela tenha registrado a presença de vetor replicante nas amostras de Sputnik V. Se os documentos forem apresentados, este texto será atualizado. 

    Update 17h35: no voto do relator do processo, enviado pela Anvisa à Super (e disponível no site da agência), o caso fica um pouco mais claro.

    Segundo o documento, os vetores replicantes contidos na Sputnik “são gerados durante o processo produtivo, quando o vírus adquire a capacidade de se replicar (reproduzir) novamente, após troca genética com a célula onde ocorre a sua replicação”. De acordo com a Anvisa, estaria ocorrendo a chamada reversão. É um fenômeno indesejado, mas previsto – e, por isso, sujeito a um nível de tolerância. Segundo a agência, os russos estariam trabalhando com limites muito superiores ao estabelecido pela FDA americana. Veja no trecho a seguir:

    “Apesar dos guias internacionais estabelecerem que vírus replicantes não devem estar presentes nas vacinas, a empresa [produtora da Sputnik V] definiu o limite de de 1 x 103 RCA [adenovírus capaz de replicação] por dose de 1×1011 partículas virais, o qual está consideravelmente acima dos limites de partículas em guia da agência americana FDA que trata de terapias gênicas de 1 RCA a cada 3×1010 partículas virais.”

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    Os americanos estipulam um limite de 1 vírus replicante a cada 30 bilhões de partículas virais. Os russos aceitam, como limite, aproximadamente 300 replicantes a cada 30 bilhões. Segundo a Anvisa, não se sabe se a maior presença de RCAs pode causar eventos adversos, como tromboses. Os russos negam esse risco, afirmando que houve “zero casos de trombose cerebral entre adultos que tomaram a Sputnik”.

    Vale lembrar que, embora a diferença entre os limites americano e russo seja enorme, eles tratam de máximos teóricos – não significam que a vacina realmente tenha essa quantidade de vírus replicante. A Super perguntou à Anvisa qual foi o nível de RCAs detectado pela agência nas amostras da Sputnik. Este texto será atualizado assim que a informação estiver disponível.

    Update 28/6: acompanhe a continuação do caso: Anvisa não testou a presença de replicantes virais na vacina Sputnik

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