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Por Bruno Garattoni
Vencedor de 15 prêmios de Jornalismo. Editor da Super.
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Se Manaus havia alcançado a “imunidade de rebanho”, por que teve uma nova explosão de casos?

Por Bruno Garattoni Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 20 jan 2021, 19h04 - Publicado em 20 jan 2021, 18h15

Em 2020, estudos estimaram que 66% a 76% da população da cidade já teria sido exposta ao Sars-CoV-2. Mas isso não foi o suficiente para evitar, agora, nova alta de infectados e mortes. Como explicar a discrepância entre uma coisa e outra? Veja três hipóteses. 

Em setembro de 2020, um estudo publicado por cientistas da USP estimou que 66% dos manauaras já haviam sido infectados pelo novo coronavírus – e, portanto, a cidade teria alcançado a chamada imunidade de rebanho (situação em que o vírus já infectou a maior parte de uma população e passa a ter dificuldade em encontrar novos hospedeiros, desacelerando a pandemia). E agora outro estudo, publicado esta semana no jornal científico Science, estima que 76% da população de Manaus já havia sido exposta ao vírus em outubro. Mas aí, em novembro, o número de casos e mortes por Covid-19 começou a subir e não parou mais, chegando ao colapso da falta de oxigênio nos hospitais da cidade. Ué, mas Manaus não estava em imunidade de rebanho? Como explicar a nova onda?  

Gráfico
Porcentagem da população de Manaus supostamente infectada pelo novo coronavírus. Fonte: “Three-quarters attack rate of SARS-CoV-2 in the Brazilian Amazon”. L Buss e outros, 2021. (Science Magazine/Reprodução)

Hipótese 1: os estudos estavam errados.

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Esses dois estudos, citados acima, não foram os únicos a estimar a porcentagem de contaminados na população. Em São Paulo, por exemplo, o Laboratório Fleury e o Ibope realizam a pesquisa SoroEpi MSP, que está começando sua quinta etapa e irá visitar 1.280 residências, cujos moradores terão o sangue coletado e testado (a última rodada da SoroEpi, em outubro, estimou que 26,2% dos paulistanos já haviam sido infectados). Mas esse tipo de trabalho tem uma limitação crítica, que pode distorcer os resultados.

Na pesquisa paulistana, por exemplo, os pesquisadores sorteiam 160 “setores censitários” da cidade -uma divisão territorial criada pelo IBGE, que inclui 250 a 350 residências- e vão até eles, visitando oito casas em cada um. E é justamente aí que está o problema: o vírus não se espalha de modo uniforme, o que pode acarretar grandes diferenças em áreas relativamente pequenas. O prédio onde você mora, por exemplo, pode não ter nenhum caso de Covid-19 – mas o edifício ao lado pode ter vários. Talvez toda a família do seu vizinho tenha pego o vírus (espero que eles estejam bem), mas a sua não. E vice-versa.  

Essas variações são impossíveis de prever, dificílimas de mapear (pois seria necessário testar muito mais gente), e podem distorcer totalmente os dados. É possível que os estudos feitos em Manaus tenham superestimado a porcentagem de pessoas infectadas, criando a ilusão de imunidade de rebanho. Além disso, os testes de Sars-CoV-2 dão falso negativo em até 15% dos casos, e os pesquisadores ajustam os dados para compensar isso – o que também pode ter ajudado a inflar a estimativa de infectados.

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Hipótese 2: a imunidade de rebanho requer mais infectados.

O conceito de imunidade de rebanho ganhou força em 1932, quando o epidemiologista A.W. Hedrich publicou um estudo analisando a evolução do sarampo em Baltimore, nos EUA, durante três décadas – e demonstrou que, nos anos seguintes a surtos da doença, os casos despencavam. Isso acontecia, segundo ele, porque após os surtos havia muita gente imune, o número de pessoas suscetíveis caía, e o vírus tinha dificuldade em encontrar novos hospedeiros. Veja no gráfico:  

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Gráfico
Porcentagem de adolescentes suscetíveis ao vírus do sarampo (linha de cima) e incidência da doença (linha de baixo) em Baltimore, 1899-1931. Fonte: “Monthly estimates of the child population susceptible to measles, 1900-1931, Baltimore, MD”. AW Hedrich, 1932. (A. W. Hedrich/Reprodução)

 

Ao longo das décadas seguintes, o conceito foi sendo testado e refinado, até se transformar numa fórmula: 1-(1/R0). Você pega o “R0”, que é o número de pessoas que cada infectado contamina em média, coloca nessa equação, e chega ao percentual necessário. Cada pessoa com sarampo, por exemplo, infecta 12 a 18 outras. Portanto, a imunidade de rebanho contra essa doença requer que 92% a 95% da população tenha sido infectada ou vacinada. 

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Ninguém sabe ao certo qual é o R0 do novo coronavírus. No começo da pandemia, falava-se em 1,6 a 4,1 (o que exigiria 38% a 76% de infectados para imunidade de rebanho). Além dessa incerteza já considerável, ao longo de 2020 foram surgindo novas cepas do vírus, algumas das quais se revelaram mais transmissíveis – o que joga para cima o percentual de infectados necessário à imunidade de rebanho. 

No fim de dezembro, o imunologista Anthony Fauci, diretor do NIAID (Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA) e principal consultor do governo americano para coronavírus, estimou que 90% da população precisaria ter sido infectada ou imunizada para alcançar imunidade de rebanho. O número espalhou preocupação nos EUA e Fauci o atenuou, passando a falar em “70% a 90%”. 

Seja como for, a imunidade de rebanho não encerra uma epidemia. E o próprio Hedrich mostrou isso. Dê mais uma olhada no gráfico acima. Está vendo as ondas? A cada 1 ou 2 anos, havia novos surtos de sarampo em Baltimore – mesmo com a imunidade coletiva se expandindo. A doença só foi controlada nos anos 1960, com a vacinação em massa.

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Hipótese 3: uma nova cepa, mais transmissível, mudou tudo. 

No final de 2020, cientistas descobriram uma nova cepa do Sars-CoV-2 em Manaus. Ela se chama P.1 e possui 17 mutações. Entre elas, a mutação N501Y, que também está presente na cepa inglesa (que se chama B.1.1.7 e foi descoberta em outubro) e na cepa africana (a 501.YV2, detectada em dezembro). 

Nessa mutação o aminoácido 501, dentro da proteína spike, é trocado de asparagina (N) por tirosina (Y). Simulações de laboratório sugerem que a mudança melhora a conexão do vírus às células humanas – e supostamente o torna até 70% mais transmissível. A nova cepa de Manaus tem isso. Se ela realmente for mais contagiosa, com R0 mais alto, será necessário ter mais gente infectada ou vacinada para alcançar a imunidade de rebanho. 

Outro ponto é a possibilidade de reinfecção. Um artigo publicado ontem por cientistas da Fundação Oswaldo Cruz relata o caso de uma mulher de 29 anos, moradora do Estado do Amazonas, que havia sido contaminada pela cepa B.1 do novo coronavírus em março de 2020 – e agora pegou a nova cepa P.1. As reinfecções não são exclusividade do Sars-CoV-2 (há casos envolvendo sarampo, por exemplo), e costumam ser raras. Mas não podem ser descartadas – especialmente com a proliferação de cepas diferentes pelo mundo.    

A explicação para o que está acontecendo em Manaus provavelmente é uma combinação das três hipóteses. Os estudos superestimaram o número de infectados, a imunidade coletiva é mais difícil de alcançar do que se imaginava, e as mutações do vírus introduziram novos elementos no jogo. 

A imunidade de rebanho é um conceito científico elegante, mas não pode ser usada como ferramenta para tentar controlar a pandemia. Inclusive porque, como a OMS já alertou, ela não será alcançada em 2021, pois a produção de vacinas não chegará nem perto da quantidade necessária para cobrir a população mundial. Há uma luz no fim do túnel; mas primeiro temos de atravessar o túnel para chegar até ela. Com cuidado, de máscara, mantendo o distanciamento social. Não há uma saída mágica, puramente matemática, para a pandemia. Isso vai exigir qualidades mais difíceis de resumir em gráficos: esforço, paciência e disciplina.

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