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Histórias esquecidas sobre os assuntos mais quentes do dia a dia. Por Felipe van Deursen, autor do livro "3 Mil Anos de Guerra"
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A Croácia é fascista? Entenda essa e outras polêmicas da Copa

Croácia ou para a França: qual país tem mais "maldades" no currículo? Por que Ucrânia e Kosovo viraram notícia? Veja o contexto histórico dessas tretas

Por Felipe van Deursen Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 15 jul 2018, 11h14 - Publicado em 13 jul 2018, 16h42

Uma Copa realizada em tempos de refugiados em massa na Europa em uma Rússia cujo líder resgata ares czaristas. Um país-sede que está envolvido em guerras em diferentes continentes, que tem rusgas, traumas e tretas gigantescas no passado e que tem uma atrasada política em relação ao direitos humanos, com acusações até de campos de concentração para gays em uma de suas repúblicas, a Chechênia, região que recebeu a delegação do Egito.

Não é de espantar que a Copa de 2018 suscitasse algumas polêmicas geopolíticas. Estranho seria se isso ficasse apenas no campo das brincadeirinhas históricas, como “Mais uma vez a Alemanha fracassa no território russo” (22º lugar no Mundial, eliminada na primeira fase. Foi a pior Copa da Alemanha desde 1950, quando ela nem jogou por estar banida da competição por causa de um certo austríaco de bigode).

AMÉRICA LATINA (“incluindo a Argentina”)

A então campeã do mundo Alemanha começou mal sua campanha. Dentro do campo, o México arrancou uma vitória histórica por 1×0. Fora, a torcida mexicana insistiu no manjado e tosco grito homofóbico contra o goleiro adversário, comum nas canchas e campos latino-americanos. A lista de vergonhas do continente aumentou com os vídeos patéticos de torcedores brasileiros, argentinos, colombianos, peruanos e chilenos (mesmo com o Chile desclassificado nas Eliminatórias) assediando estrangeiras, além dos xingamentos racistas de brasileiros a Fernandinho e Gabriel Jesus após a eliminação nas quartas-de-final. E o Brasil se despediu de mais uma Copa sendo motivo de piada, mesmo jogando bem e sem levar de 7.

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EX-IUGOSLÁVIA, PARTE 1 – Sérvia e Kosovo

Mas, no campo político, a coisa esquentou mesmo quando tinha eslavos em campo. Sérvia e Suíça fariam o jogo que poderia definir o segundo lugar do grupo em que o Brasil ainda era um franco e absoluto favorito. Nas arquibancadas, alguns torcedores sérvios estampavam na camiseta o rosto de Ratko Mladić, criminoso de guerra bósnio-sérvio condenado à prisão perpétua pelas atrocidades que comandou durante a Guerra da Bósnia, nos anos 90. Em campo, a Sérvia abriu o placar, mas a Suíça virou nos acréscimos graças aos gols de dois jogadores de sangue imigrante, Granit Xhaka e Xherdan Shaqiri. Xhaka é filho de albaneses e Shaqiri nasceu no Kosovo. Ambos comemoraram seus gols com o gesto da águia de duas cabeças, símbolo nacionalista da bandeira da Albânia (e, bem menos importante, da marca Cavalera).

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O ato tem peso por diversos motivos. Quando a Iugoslávia se desmanchou em guerras, como a citada no parágrafo acima, a população de origem albanesa do Kosovo lutou para conquistar a independência da Sérvia. Albânia e Sérvia têm uma rixa de séculos por causa do Kosovo. Albaneses muçulmanos habitam a nação há mais de 300 anos e são a maioria da população. Já os sérvios, cristãos ortodoxos, a veem como o berço de sua nacionalidade. Em 2008, o Kosovo declarou independência. Muitos países a reconheceram (inclusive a Fifa – a seleção participou das Eliminatórias da Copa). Mas a Sérvia, evidentemente, não quis saber. E teve o apoio da Rússia, aliada histórica com quem divide etnia, religião e alfabeto. Como a Rússia tem poder de veto, o Kosovo segue sendo um país não reconhecido pela ONU. Por isso o gesto dos jogadores, diante de uma torcida russa, foi tão polêmico e emblemático.

EX-IUGOSLÁVIA, PARTE 2 – Croácia

A Croácia chegou à Rússia com um time bom e maduro, mas que não deveria passar das quartas-de-final, no máximo. Quando emplacou um sonoro 3×0 em uma trôpega e mal gerida Argentina, ela começou a ganhar confiança e a chamar a atenção. Terminou a primeira fase com uma das melhores campanhas e os elogios da imprensa especializada. Mas os jogadores foram notícia além dos cadernos de esportes. Após aquele jogo, o zagueiro Dejan Lovren comemorou a vitória entoando uma música dos tempos da guerra de independência do país: “Bojna Cavoglave”, da banda de heavy metal croata Thompson. O grupo gerou polêmica nos anos 2000 por supostamente promover a Ustaše (pronuncia-se “ustashe”) . E aí precisamos voltar à Segunda Guerra, quando a Iugoslávia era um reino e foi invadido pela Alemanha. Os nazistas permitiram que a Ustaše tomasse o poder e colocasse em prática sua agenda. Nacionalistas radicais, eles queriam implementar uma Croácia pura, católica, livre de sérvios, ciganos e judeus. Em cinco anos, exterminaram 300 mil sérvios. Até hoje o nome “Ustaše” dá calafrios e é popular entre jovens de extrema-direita, que usam arquibancadas de estádios para expressar sua cólera. Para piorar, “Bojna Cavoglave” foi adotada como hino da extrema-direita na Croácia atual, que, como tantos outros países hoje, encara o combo de crise econômica com crescimento de nacionalismo e xenofobia. O Thompson nega a promoção do grupo fascista e os jogadores tentam se esquivar de implicações políticas, mas o tema é delicado.

Futebol sempre foi um terreno político durante e depois dos tempos iugoslavos. Não é de hoje que a seleção croata se envolve em polêmicas do tipo. O ex-jogador da seleção Josip Šimunić chegou a entoar cânticos da Ustaše em um jogo de 2013 e a seleção foi punida pela Uefa porque havia uma suástica desenhada no campo em um jogo.

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Milicianos da Ustaše executam prisioneiros em campo de concentração nos anos 1940 (Autor desconhecido/Wikimedia Commons (CC BY-SA 4.0))

 

RÚSSIA E UCRÂNIA

Continuemos debruçados sobre a toalha de mesa croata. Quando o time arrancou a vitória dos surpreendentes anfitriões russos após prorrogação e pênaltis nas quartas-de-final, o zagueiro Domagoj Vida, um dos heróis da partida e ex-jogador do Dínamo de Kiev, gravou um vídeo em ucraniano cantando “Glória à Ucrânia!”. Trata-se de uma música de resistência nacionalista ucraniana dos tempos de domínio soviético. O canto voltou à tona com os protestos que tomaram o país em 2014 e derrubaram o presidente Viktor Yanukovich, pró-Moscou. Historicamente, a Ucrânia é dividida entre os pró-Ocidente e os que defendem uma aproximação da Rússia. À crise política seguiu-se um conflito no sudeste da Ucrânia, de maioria russa, e a anexação da Crimeia por Vladimir Putin. Trata-se de uma península estratégica e com uma história própria que vai além da rivalidade entre ucranianos e russos . A anexação causou sanções à Rússia e a afastou ainda mais do Ocidente.

Vida gravou o vídeo, provocou manifestações contra e a favor e depois se desculpou, dizendo que era apenas um grito comemorativo (até Bill Clinton também disse “glória à Ucrânia” quando visitou o país como presidente dos Estados Unidos). O problema é que entre os manifestantes que protestaram contra o ex-presidente da Ucrânia havia grupos nacionalistas xenófobos, assim como na resistência aos comunistas nos anos 30 havia simpatizantes de Hitler. Então entoá-lo sempre levanta, sem querer ou não, a suspeita fascista. Como sempre, tudo é sempre mais complicado do que os RTs apressados do Twitter levam a crer.   

Em todo caso, os russos não gostaram das declarações e, na semifinal contra a Inglaterra, em que a Croácia garantiu a inédita classificação à final, toda vez que Vida pegava na bola recebia sonoras vaias do estádio. Uma elemento a mais para apimentar a gloriosa campanha croata, que incluiu momentos como este:

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EX-IUGOSLÁVIA, PARTE 3 – A presidenta croata

Kolinda Grabar-Kitarović é uma das grandes personagens das arquibancadas da Copa. Ela ganhou a simpatia de muita gente ao ser vista torcendo para valer pela sua seleção, com camisa quadriculada e tudo, em vez dos protocolares e sóbrios cumprimentos de chefes de Estado engravatados. Primeira mulher a ser eleita presidenta do país, ela vem sendo acusada de usar o sucesso do time como trampolim político e divide opiniões. Seu partido conservador já flertou com extremistas simpatizantes da Ustaše, embora ela seja de uma ala mais moderada. Mesmo católica fervorosa, já disse que aborto é uma decisão que cabe à mulher e que apoiaria os filhos caso fossem gays. Também se mostrou favorável ao uso medicinal de maconha. 

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PARA QUEM TORCER NA FINAL?

A final entre França e Croácia é o típico embate entre peixe grande e pequeno. As diferenças entre os dois países são muito mais gritantes fora do que dentro do campo. A França é uma potência global com 67 milhões de habitantes e o 7º PIB do mundo. A Croácia é um pequeno país de 4,1 milhões de pessoas que, por mais que tenha mil anos de história, só virou um Estado moderno (e ganhou uma seleção) nos anos 90. Então o normal é que os dálmatas ganhem a simpatia da maioria, já que tendemos a torcer para o lado mais fraco. 

Mas os vídeos polêmicos e as associações com grupos de extrema-direita que eles causaram, exageradas ou não, enfraqueceram um pouco a torcida pela Croácia. O problema, meu amigo e minha amiga, é que, se você for investigar o passado de qualquer país para decidir se simpatiza com ele ou não, tem grandes chances de se decepcionar. Até o Tibete e o Butão já entraram em guerra. A ONU é uma convenção de boys lixo tentando se redimir.

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Se a ideia é comparar França e Croácia para decidir por quem torcer com base nas inclinações políticas gerais dos dois países, vamos resumir o país dos Bleus com este mapa:

Territórios que a França invadiu, colonizou, ergueu assentamentos ou travou guerras. (carolusmegamagnus/Reprodução)

 

Detalhe irônico: o mapa, que circulou no Reddit, está INCOMPLETO. Usuários do fórum lembraram eventos como o bloqueio do Rio da Prata, na Argentina, as tropas em território líbio na Segunda Guerra e a ocupação de Malta e das Ilhas Maurício.

A Croácia também não escapou, como o mapa mostra. Napoleão invadiu o país quando ele pertencia ao Império Austro-Húngaro.

Melhor então torcer para os jogadores individualmente. Escolha quem quiser. Dos 23 convocados croatas, só um nasceu após o fim da guerra. Todos os outros tiveram que encará-la de um jeito ou de outro em diferentes fases da infância. Dos 23 franceses, três não nasceram no “Hexágono”: Umtiti é de Camarões, o goleiro reserva Mandanda é da República Democrática do Congo e o meia Lemar é do território ultramarino francês de Guadalupe. Outros 15 têm origens em diversos países: Guiné (Pogba), Mali (Kanté, Sidibé e Dembélé), Angola (Matuidi), Marrocos (Rami), Argélia e Camarões (Mbappé), Senegal (Mendy), RDC (N’Zonzi e Kimpembe), Togo (Tolisso), Argélia (Fekir), Filipinas (Areola), Espanha (Hernández) e Martinica, outro território ultramarino francês (Varane). Reflexo de um país colonialista que se tornou um polo de imigração, gostando ou não. Talvez goste mais quando a seleção vai bem.

No fim das contas, toda a Copa do Mundo é isso. Um grande circo que mostra o melhor da humanidade, mas também as idiossincrasias, os absurdos e as atrocidades que construíram nosso mundo. Por isso ela é incrível.

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