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Histórias esquecidas sobre os assuntos mais quentes do dia a dia. Por Felipe van Deursen, autor do livro "3 Mil Anos de Guerra"

Geralt, de “The Witcher”, entende mais de aborto do que os políticos da Polônia

ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS DO JOGO “THE WITCHER 3: WILD HUNT”. Se você não jogou e nem pretende jogar, já que videogame não é a sua, pode ler mesmo assim, porque não é um texto só sobre videogame. Você está à procura, desesperado, de sua filha adotiva. Durante a jornada, conhece um sujeito bêbado e asqueroso, […]

Por Felipe van Deursen
Atualizado em 4 set 2024, 11h17 - Publicado em 6 out 2016, 22h07

ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS DO JOGO “THE WITCHER 3: WILD HUNT”. Se você não jogou e nem pretende jogar, já que videogame não é a sua, pode ler mesmo assim, porque não é um texto só sobre videogame.

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Protagonista anda quilômetros por terras devastadas pelos horrores da guerra.

Você está à procura, desesperado, de sua filha adotiva. Durante a jornada, conhece um sujeito bêbado e asqueroso, conhecido naquela terra arrasada do pós-guerra como Barão Sangrento. Ele garante ter informações do paradeiro da garota, mas só contará se você ajudá-lo a encontrar a mulher e a filha dele, também desaparecidas.

A história se desenvolve até que você descobre o que já desconfiava: elas não foram raptadas, mas fugiram do abusivo homem. Motivos não faltavam. Antes de fugir, Anna, a esposa, foi espancada quando o barão havia descoberto que ela estava tendo um caso enquanto ele lutava na guerra. Acabou perdendo o filho.

Só que não foram os socos do pesado e deprimente marido que a fizeram abortar. Anna havia feito um pacto com três bruxas que viviam em um pântano. Elas lhe deram uma poção abortiva em troca de um ano de trabalho. Daí o sumiço dela. Porém, sem saber dos detalhes do contrato, Anna de repente se transformou, literalmente, em uma velha carcomida escravizada pelas horrendas bruxas.

Quanto ao feto, ele se tornou um botchling. Trata-se de um bebê zumbi, condenado por não ter tido um enterro nem um nome dado pelos pais, a engatinhar pela noite à procura de grávidas de quem pudesse sugar a energia de bebês em gestação. E cabe a você, ao controlar Geralt,  decidir se dá fim ou não à maldição imposta ao feto.

Criatura inspirada em lenda eslava com boas doses de religiosidade e sexismo
Criatura inspirada em lenda eslava com boas doses de religiosidade e sexismo
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A história grotesca é uma das tantas que se passam diante de Geralt, o protagonista da série “The Witcher”, em sua terceira edição, lançada no ano passado. “The Witcher 3″ é um fenômeno. Não só foi eleito o melhor jogo de 2015 como se tornou o título mais premiado da história dos videogames. Adorado pela crítica, ainda por cima vende que nem água. Em apenas um mês e meio, chegou a 6 milhões de cópias vendidas. A trilogia já passou dos 20 milhões.

Tamanha popularidade fez Geralt ser o símbolo da crescente indústria criativa do país onde foi criado, a Polônia. A ponto de Donald Tusk, ex-primeiro ministro polonês, ter presenteado Barack Obama com um jogo da série. É como se, durante a visita do presidente americano ao Brasil, em 2011, Dilma desse a ele um disco do Michel Teló, no auge da fama, para mostrar como a indústria cultural do país estava à toda.

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Só que muito mais. Primeiro, o jogo é baseado em uma série de livros criada por Andrzej Sapkowski bastante famosa na Polônia. Depois, porque os personagens, as paisagens e os enredos são muito baseados ou inspirados na história e na mitologia polonesas. O bisonho botchling, por exemplo, é uma versão mais pesada do drekavac, criatura originada de bebês que morreram sem ser batizados, na mitologia eslava.

Mas, se “The Witcher” é o símbolo de uma Polônia progressista, moderna, que colocou o ex-país comunista no primeiro mundo da multibilionária indústria dos videogames, a realidade em Varsóvia hoje é diferente. Em 2015, o partido ultraconservador Lei e Justiça venceu as eleições. O novo governo da primeira-ministra Beata Szydlo se opõe à União Europeia e aos imigrantes e prega a identidade nacional fundada em seus ideais cristãos. O ministro das Relações Exteriores, Witold Waszczykowski, chegou a declarar que sua missão é acabar com “a Europa apodrecida de vegetarianos e ciclistas. Para ele, os cidadãos de bem e patriotas andam de carro e comem salsicha.

Em 23 de setembro, o Parlamento da Polônia admitiu o projeto de lei que proíbe o aborto, com penas de prisão para as mulheres e até investigação de casos de aborto natural. O povo não ficou calado. Em 3 de outubro, milhares de polonesas e poloneses foram às ruas de várias cidades protestar contra a lei. O dia está sendo chamado de Segunda-Feira Negra.

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Na internet, “The Witcher 3″ movimenta dezenas de textões. O jogo seria uma metáfora da sangrenta história da Polônia, seria uma manifestação ogra e medieval de puro machismo ou, por outro lado, um jogo com certa dose de feminismo, com personagens femininas importantes, poderosas, complexas e, sim, sensuais. Em outra passagem, Geralt se depara com um grupo de mulheres que estavam sem os maridos e comenta que nada mudou, a vida seguiu igual. Levou um fora como resposta: “Mulheres não precisam que homens tomem conta delas.” Toma essa, bruxo.

Quanto à triste saga de  Anna, que fugiu do marido e procurou ajuda, Geralt não toma partido e, dependendo das suas decisões, pode até complacente com o violento barão. Mas o enredo do jogo evidencia uma prática antiga e comum: realizar um aborto – queiram ou não os donos das leis, os líderes tribais ou até o bruxos poderosos, sempre aconteceu, no mundo todo.

Se “The Witcher” reflete a história da Polônia, a Polônia contemporânea, dos xenófobos que querem lacrar o país para refugiados sírios e dos coletivos feministas que mobilizam milhares de pessoas nas principais cidades, é um retrato da polaridade que aflige tantos cantos do mundo.  Ultimamente, jogar videogame está melhor do que entrar em discussão por aí.

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