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Trítono: o diabo na música

Conheça o intervalo musical que, reza uma lenda falsa, foi proibido pela igreja – e entenda sua relação com o blues, a matemática e as folhas de papel A4

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 16 jul 2020, 18h54 - Publicado em 30 jun 2017, 17h15

Você já ouviu essa história: o músico Robert Johnson vendeu sua alma para o demônio. Em troca, ganhou talento e sucesso. A negociação ocorreu em uma encruzilhada no interior do Mississipi – até hoje, garantem crentes e céticos, cruzamentos são um ótimo lugar para fazer comércio com o coisa ruim.

Bem, se o pai do blues fez mesmo a transação arriscada, não adiantou muita coisa. Ele foi um artista itinerante, que andava de cidade em cidade tocando em esquinas, espeluncas e clubes decadentes nos sábados à noite. Pouco foi valorizado como artista em vida, e morreu em 1938, aos 27 anos – segundo a versão mais aceita, após um gole de uísque envenenado por um dono de boteco, que morria de ciúmes de sua esposa e achava que ela tinha um caso com o músico.

O mito de Johnson nasceu, na verdade, em outra encruzilhada, da cultura americana com a cultura alemã: é o mito de Fausto. Na mesma época em que o músico negro – pobre e filho ilegítimo – fundava um dos gêneros mais importantes da música popular dos EUA, o autor alemão Thomas Mann começava a idealizar sua obra-prima: o romance Doutor Fausto, história de um compositor que (adivinha só!) vende a alma para o tinhoso em troca da máxima realização artística.

Ambos são versões, uma erudita e uma popular, da história de um alquimista que viveu na Alemanha no século 15. Dá para passar mais um tempão falando de todas as encarnações do mito fáustico – como o 100% brasileiro Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa – mas não será tão legal quanto explicar o demônio na música do ponto de vista matemático: será que há mesmo algo de demoníaco no blues (ou em qualquer outro tipo de música)?

Um lenda urbana popular entre músicos diz que há, e dá uma explicação 100% matemática para isso. Corre por aí a história de que um determinado intervalo musical, chamado trítono, é o próprio som do inferno, tão dissonante que não podia (por um decreto assinado pelo Papa em pessoa!) aparecer nas partituras de música sacra durante a Idade Média.

Um intervalo musical é, em bom português, uma combinação de duas notas diferentes. Você pode testar vários deles mesmo se não souber tocar nenhum instrumento: vá a um piano de estação de metrô, escolha duas teclas aleatórias (não muito distantes entre si) e toque ambas ao mesmo tempo. Algumas dessas combinações vão soar super bem. Outras, nem tanto.  

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O trítono é o intervalo que você ouve na abertura da música Black Sabbath – que está no álbum Black Sabbath, da banda Black Sabbath. Quem achar o metal em questão heavy demais também pode ouvir o trítono no comecinho de Purple Haze, de Jimi Hendrix. Ou na abertura dos Simpsons (ouça as notas mais graves do piano no segundo 0:16). O bichinho aparece até em Garota de Ipanema – mas aí ele dá as caras em uma substituição de acordes que não é tão óbvia, então vamos passar batido.

São todas músicas muito diferentes entre si – e com exceção da do Black Sabbath, nenhuma soa particularmente demoníaca. Isso acontece porque, na música, não existem intervalos do céu e do inferno, só intervalos mais consonantes e intervalos mais dissonantes. Os primeiros são simpáticos e bonitinhos. Os segundos são tensos, criam desequilíbrio. Um usa camisa polo e tênis Lacoste, o outro é repleto de tatuagens. E ambos são úteis em qualquer música.

O trítono, no caso, é um líder punk anarquista. E isso é mesmo culpa da matemática. Acontece o seguinte: você sabe se um intervalo é rebelde ou não olhando as frequências das duas notas que o compõe. Dá para fazer um trítono, por exemplo, com um dó (C) e um fá sustenido (F#). O dó tem 261,6 Hz. O fá sustenido, 369,9 Hz.

Agora é só dividir o maior pelo menor e você chegará a aproximadamente…

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Que, você aprendeu na escola, são os primeiro dígitos de um número infinito chamado…

Ou seja: a relação entre as duas frequências é um número tão quebrado que sequer tem fim – um irracional, semelhante ao Pi (π). 

Agora faça a mesma coisa com um intervalo que é consonante, como dó (C) e sol (G), que tem 391.9 Hz. A divisão vai dar um inocente 1,5 (3/2). Um número comportado, com finitude. Uma fração bom moço (por dissonante que soe a discordância de gênero aqui).

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Isso é uma regra: quanto mais louco o resultado da divisão, mais o intervalo machuca os nossos ouvidos. Agora vamos fazer um exercício mais maluco ainda: transferir as proporções acima para uma referência visual. No caso, dimensões de folhas de papel.

A folha do trítono parece familiar? Não é coincidência. Acontece que a relação entre as frequências que formam esse tipo de som é exatamente a mesma que rola entre os lados de uma folha de papel A4.

O que deixa no ar uma pergunta: porque esse intervalo, que na forma sonora é tão incômodo, assumiu o formato de uma folha de papel e tomou conta do mundo? A explicação é simples: ele pode ser dividido no meio, e o resultado serão duas folhas menores, mas de proporções idênticas à original. A ilustração abaixo explica bem, mas você pode ver mais detalhes aqui, em outra matéria da SUPER.

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O trítono é o único intervalo capaz de dividir uma oitava (a famosa sequência ‘dó, ré, mi etc.”) em duas partes exatamente iguais do ponto de vista matemático.

E ele também pode ser dividido ao meio mais uma vez: dois trítonos sobrepostos formam um acorde chamado diminuto. Por incrível que pareça, essa dupla não tem o som do apocalipse: dá para perceber direitinho quando um fá sustenido diminuto aparece em What a Wonderful World. Preste atenção em 1:31, momento exato em que ele aparece. Ele nada mais é que uma transição, que empurra a canção para outro acorde, mais estável.

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O blues tem uma característica curiosa: todos os seus acordes têm sétimas menores, o que significa, na língua dos leigos, que todos eles carregam um trítono. É isso que dá ao estilo parte de sua angústia característica – nada mais adequado para expressar a dor dos escravos americanos no século 19. Não havia nada de demônio em Robert Johnson, portanto: ele só transformou em música a história de gerações de trabalho forçado.

Outros estilos de música popular, é claro, também têm acordes com um trítono. A diferença é que eles não aparecem o tempo todo.

Quanto à igreja, bem, não há registro histórico de que ela realmente tenha proibido essa combinação. De fato, o músico Adam Neely tirou do fundo do baú uma canção de mosteiro do auge do feudalismo em que o dito cujo dá as caras sem medo de ser feliz.

Segundo ele, um dos primeiros registros do termo latino diabolus in musica aparece só no século 18, pelas mãos do teórico Johann Fux. Ele não se referia ao trítono – na verdade, desaconselhava arranjadores a colocarem duas vozes cantando notas muito próximas entre si (no caso, mi e fá). A razão não era religiosa, apenas prática: além da combinação ser desagradável aos ouvidos em certas situações musicais, também é muito difícil acertar o tom de sua própria nota quando outros membros de um coral estão cantando notas muito próximas.

De fato, o trítono (assim como a segunda menor formada por mi e fá) é um intervalo incômodo de cantar e tem potencial para desafinar, então é mesmo bem provável que ele não tenha sido recomendado por especialistas ao longo da história da música – tudo se resume a um problema técnico, sem participação do tinhoso. Pode tocar Black Sabbath à vontade: você não vai para o inferno.

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