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1 + 2 = 2 – 1 + 2 = Bastante – Bastante + Bastante = Bastante

Eles não sabem contar, não diferenciam cores, não conhecem arte ou mitos, não entendem ficção. Os pirarrãs são apenas 350 índios escondidos no meio da selva amazônica. E, mesmo assim, colocam em risco a linguística moderna.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 31 out 2007, 22h00

Texto Rita Loiola

Entre as coisas que separam os homens dos outros animais estão as sutilezas da linguagem. Os bichos até são capazes de transmitir mensagens simples – em geral relacionadas a comida, sexo ou disputa de território –, porém não conseguem encaixar uma mensagem dentro de outra. Por exemplo: um gorila bem treinado pode dizer “o menino veste uma camiseta vermelha” ou “o menino está nadando no rio”, mas nunca “o menino de camiseta vermelha está nadando no rio”. Esse é um atributo exclusivamente humano que os linguistas batizaram de recursividade – que, salvo casos de deficiência mental, é considerado um denominador comum a todos os indivíduos da nossa espécie. O que aconteceria se um grupo humano não dominassse essa ferramenta? Essas pessoas seriam menos humanas que as outras?

Esse é o vespeiro que o pesquisador americano Daniel Everett cutucou ao dizer que o povo pirarrã, da Amazônia brasileira, é desprovido de recursividade. Ele nunca afirmou que esses índios são a fronteira entre humanos e animais. Boa parte da comunidade de estudiosos da linguagem, contudo, crê que essa é uma conclusão lógica das idéias que Everett defende. Para complicar mais o cenário, a teoria dele contraria o pensamento do maior peso pesado da linguística atual: o também americano Noam Chomsky.

Mas vamos aos fatos. Os pirarrãs são uma tribo de caçadores-coletores que vivem à beira do rio Maici, no Amazonas, na divisa com Rondônia. Eles vivem em cabanas feitas de 4 paus cobertas de palmeiras e não são aqueles índios coloridos que fazem artesanato de penas descansando na rede: os pirarrãs dormem no chão, sobre ramos de árvores, e não têm cultura artística, segundo os relatos de Everett. Não cultivam terras ou guardam alimentos. O pesquisador aponta na língua 8 consoantes, 3 vogais e uma imensa quantidade de tons e comprimentos de sílabas. O sistema fonético – menu de sons que, combinados, formam as palavras de uma língua – é diferente para homens e mulheres: elas falam uma consoante a menos que eles. As índias são detentoras do “menor sistema fonético do mundo”, nas palavras do pesquisador. Os pirarrãs contam as coisas em 1, 2, bastante e, ainda de acordo com os dados colhidos pelo linguista por quase 30 anos, eles não nomeiam cores, não possuem mitos de criação, ficção nem têm memória individual ou coletiva que ultrapasse duas gerações.

Mas é a falta da tal recursividade que pôs Everett em conflito com seus colegas linguistas. Foi justamente Noam Chomsky, principal nome de uma corrente da linguística chamada gerativismo, quem chegou à conclusão (num trabalho co-assinado por dois outros pesquisadores) de que recursividade é a diferença principal entre a linguagem humana e a comunicação dos animais. Como se não bastasse, Everett diz que os pirarrãs não se encaixam no pilar do pensamento chomskiano, a Teoria da Gramática Universal. Segundo essa teoria, o cérebro de todos os seres humanos já vem equipado com a estrutura necessária para a aquisição de linguagem. Vamos usar computadores como comparação: segundo Chomsky, nascemos todos equipados com um editor de texto padrão, como o Microsoft Word­; segundo Everett, saímos da fábrica sem esse programa, e os pirarrãs optaram por um editor de texto mais barato.

Ele diz que os índios não são recursivos pelo que chamou de “Princípio da Experiência Imediata”. O nome é mais complicado do que a coisa em si: os pirarrãs só vivem e falam do aqui-agora. Fazem apenas sentenças relacionadas ao momento em que estão falando, aos fatos vistos por eles. “As sentenças dos pirarrãs contêm somente situações vividas pelo falante ou testemunhadas por alguém vivo durante a vida do falante”, define Everett em um de seus artigos. Por isso, o problema com as abstrações e tudo o que resulta delas: cores, números, mitos, ficção e a bendita recursividade. Também é isso que faz com que os pirarrãs, ao contrário de todas as outras comunidades linguísticas já estudadas, não aprendam a contar em outro idioma. “Eles não querem saber de nada que esteja fora do seu mundo”, afirma Everett.

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O pesquisador chegou à tribo, na década de 1970, como um missionário cristão com a missão de converter os índios. Nunca conseguiu. Everett fazia parte de uma organização internacional que espalha a palavra de Deus por meio da tradução da Bíblia para línguas sem escrita. Trabalhando arduamente para entender a língua da comunidade, o então pregador entrou na Unicamp, em 1978, e descobriu os estudos de Noam Chomsky. Isso mudou sua vida.

Everett tornou-se um fervoroso adepto das idéias chomskianas e, em 1983, defendeu a primeira tese sobre a tribo na própria Unicamp. Mas, para ele, alguns pontos da língua ficaram sem explicação. Começou, então, a questionar os princípios da gramática universal e destrinchar o pirarrã. “Por muito tempo, achei que, se fosse mais a fundo, explicaria tudo e preencheria os ‘buracos’ da língua”, diz. “Mas, depois de 30 anos, não sei como me aprofundar mais.” Desiludiu-se também com o cristianismo. Voltou para os EUA e, em 2005, publicou na revista Current Anthropology um artigo que ateou fogo entre os acadêmicos. “Acho que a gramática universal foi uma boa hipótese preliminar. Mas não funciona e nem é necessária”, afirma.

Os linguistas rebatem dizendo que Everett entendeu tudo errado. “A contagem ‘1, 2, bastante’, por exemplo, é típica de vários outros indígenas”, afirma Maria Filomena Sândalo, linguista da Unicamp que fez sua dissertação de mestrado sobre a tribo. “Isso não quer dizer que eles não reconheçam quantidades. Eles simplesmente fazem recortes diferentes da realidade, como qualquer outra língua.” A professora argumenta que, enquanto esteve com os pirarrãs, encontrou uma linguagem tão complexa e recursiva como qualquer outra. “É muito esquisito que alguns pesquisadores vejam a recursividade na língua e Everett não a enxergue”, diz Cilene Rodrigues, linguista da Unicamp. Ela interessou-se pela questão pirarrã e, junto com dois outros pesquisadores do MIT e de Harvard, analisou os dados colhidos por Everett. Em março deste ano, o grupo publicou um artigo concluindo que a língua é normal. “Ela não é inexplicável ou especial. É tão interessante quanto uma língua de qualquer outro lugar do mundo. Não tem essa história de experiência imediata ou falta de recursividade”, diz a professora.

O maior interessado na briga toda não quer nem ouvir falar dos pirarrãs. Chomsky pede com paciência a todos que o questionam sobre o assunto que leiam o artigo de Cilene. “Não trabalhei tão a fundo na questão e não tenho interesse em jogar lenha numa fogueira que nem sequer deveria estar ardendo”, diz. O intelectual argumenta que os pirarrãs não são um “contra-exemplo” à gramática universal – nada mais que o nome usado no último século para a teoria do componente genético que habilita os humanos a se comunicar. E, como os pirarrãs não são diferentes geneticamente do resto da humanidade, não há nada de extraordinário aí. “Estamos falando de ciência, não de religião. As teorias sempre mudam com as novidades empíricas e o desenvolvimento de outras visões teóricas.”

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O gerativismo, inclusive, não é a única forma de explicar a aquisição de linguagem. Existem pelo menos 4 correntes de estudos que tentam decifrar como os seres humanos conseguem se comunicar entre si. Uma delas, o estruturalismo, forte até o final dos anos 60, apregoa que a linguagem não é um item de fábrica, mas um opcional: ela é aprendida social e culturalmente. “As análises de Everett nos mostram que o estruturalismo ainda está vivo”, diz Roberto Baronas, linguista da Universidade Federal de São Carlos. “Everett simplesmente defende uma coisa diferente da gramática universal, afirmando que os pirarrãs aprendem a língua de acordo com sua cultura e não fazem a recursividade.” Ele critica o pensamento monobloco da academia: “Como Chomsky é considerado o grande linguista do último século e ficou 50 anos sem que ninguém o enfrentasse, essa ‘bomba pirarrã’ está causando convulsões”.

O que deixou os profissionais de linguagem de cabelo em pé foi o modo como Everett tratou seu objeto de pesquisa. “Ele só fala de gaps e lacks, de falta e mais falta nessa língua”, afirma Esmeralda Negrão, da USP. “É o seguinte, se essa língua só tem faltas e buracos, significa que existem outras mais ricas e complexas. Se existem outras línguas mais completas, então essa comunidade é pior que outras. O que me assusta é que esse argumento já foi usado para legitimar preconceitos, por exemplo, contra os negros americanos na década de 1960.” É claro que Everett nunca escreveu isso. “Mas o modo como ele redige seus artigos leva a interpretações assim”, argumenta a professora.

Everett afirma que jamais pensou em sugerir que os pirarrãs sejam menos evoluídos que outros povos ou tenham qualquer falha na capacidade de aprender. “Há linguistas que já disseram a mesma coisa que eu sobre diversas línguas e ninguém os chama de preconceituosos”, afirma o pesquisador, que volta e meia ainda leva seus colegas para visitar a tribo e estudá-la. Mas, quase sempre, volta sem novidades. “A falta de recursividade na língua não diz nada a respeito da capacidade mental de um povo.” O que Everett brada aos quatro ventos é que os linguistas estão tentando tomar uma postulação de Chomsky como parte da definição de ser humano. “É um exagero acreditar que alguém que se opõe à gramática universal não seja um bom cientista e, ainda por cima, seja racista. Aliás, é bem ridículo.”

 

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Para saber mais

A Língua Pirarrã e a Teoria da Sintaxe

Daniel Everett, Unicamp, 1991.

 

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