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A água não vai acabar. Mas vai.

Toda a nossa água veio do espaço, de carona em cometas. E não vai fugir daqui: as mesmas moléculas de H2O que você toma hoje já pasaram pela goela de algum dinossauro, já que a água é quase indestrutível. Apenas uma coisa pode acabar com ela: a burrice.

Por Alexandre Versignassi
Atualizado em 8 mar 2024, 15h35 - Publicado em 5 dez 2015, 18h06

Tem mais água por aí do que parece. É tanta água que até no fogo tem água. Isso contraria Sidney Magal, que afirmava serem cinco os elementos da natureza (o fogo, a terra, a água, o ar e a paixão). Mas nem Magal, nem e os filósofos pré-socráticos que propuseram a existência de quatro elementos sabiam de algo fundamental: a água pode ser filhote do fogo.

Quando você liga o fogão de casa, a faísca do acendedor quebra as moléculas do gás que sai do bocal. Isso solta moléculas de hidrogênio no ar. E prova que Sidney Magal acertou: a paixão é, sim, um dos elementos básicos da natureza: o hidrogênio se arrasta de amor pelo oxigênio. Logo que o hidrogênio sai do bocal, já se junta com o oxigênio do ar, sem pensar duas vezes, e forma molécula de H2O. Água, ainda que na forma de vapor.

O sexo entre o H e o O (ou ménage, porque sempre tem dois O’s na parada) libera energia. Essa força se manifesta para nós na forma de fogo, e contagia o resto da boca do seu fogão. Num nanosegundo, o fogo das primeiras reações vai quebrando mais moléculas de gás, soltando mais H’s, que se juntam com mais O’s, formando mais H2O’s. Esse vapor d´água vai direto da sua cozinha para a atmosfera, ajudando a formar chuva no sistema de represas que abastece a sua cidade. E é isso: uma parte da água que sai da torneira da sua pia nasce justamente no seu fogão, ali do lado. Mas não se trata de tanta água assim, claro. A quantidade de H2O que nasce das combustões por aí é irrelevante. Só 0,001% da água está na forma de nuvens, e uma porcentagem menor ainda dentro desse conjunto nasceu em eventos que envolviam fogo.

O 1,3 bilhão de trilhão de litros que forma o estoque de água da Terra nasceu de combustões que aconteceram fora da Terra. O calor das estrelas e o forno das supernovas agitaram H’s e O’s espaço afora, formando H2O vaporizado. Nuvens, em suma, iguais as que pairam sobre as nossas cabeças.

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O Sistema de Abastecimento do Universo conhecido é a galáxia APM 08279+5255. Esse corpo celeste com nome de número de telefone consiste basicamente de um buraco negro gigante circundado por uma nuvem maior ainda de vapor d’água, que não congela graças ao calor que o centro da galáxia emite. Trata-se de uma nuvem que, se condensada, produziria uma quantidade de água líquida 140 trilhões de vezes maior do que toda a água que existe na Terra.

Bom, a estimativa é que haja “só” 4 bilhões de planetas parecidos com a Terra na Via Láctea (provavelmente boa parte deles habitado por formas de vida tão dependentes de água tanto quanto nós). Isso posto, só o reservatório da APM não-sei-mais-o-quê bastaria para fornecer água doce para 28 milhões de galáxias.

Mas infelizmente ainda não dá para fazer um gato de encanamento e roubar água do espaço profundo. Então o jeito é se virar com a água cósmica que veio parar aqui. 

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Cósmica mesmo. Quando a Terra se formou, há 4,5 bilhões de anos, não havia água nessa região do Sistema Solar. A ignição do Sol causou uma explosão cataclísmica, que expulsou as moléculas mais leves (caso das de H2O) para os confins do Sistema. Mas essa água, felizmente, voltou. Veio de carona em cometas, que são basicamente bolas de gelo.

Nos primeiros millhões de anos de vida da Terra, era tanto cometa caindo que a nossa caixa d´água encheu rápido. Há 3,8 bilhões de anos, já tínhamos os 1,3 quintilhão de litros d’água de hoje. Olhe para um copo de água e você estará vendo um extraterretre, que só pousou por essas bandas depois de um tour para além da órbita de Netuno. Seu corpo, que é 65% de água, pode ser visto da mesma forma. Uma vaca (75%) mais ainda. Um tomate ou um chuchu (95%) têm pouca coisa além de H2O.

Trata-se de uma molécula virtualmente indestrutível. Por mais que todo mundo já tenha ouvido que a água “é o petróleo do futuro”, “que as guerras do próximo século serão por água doce”, a frase não faz sentido. A água potável não está acabando, porque não é um recurso finito. Ela é eterna. Petróleo, obviamente, não. Você queima um tanque de gasolina e já era. Não existe mais gasolina. Vira tudo fumaça e pronto, acabou. Com água não. Ela não se decompõe, não apodrece e, quando vira fumaça, desce de novo na forma de gotas.

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Tanto é assim que o H2O que você bebe hoje, seja na forma de água pura, de cerveja ou de picanha, quase certamente já foi bebido por um dinossauro. E talvez tenha alimentado a banheira de Cleópatra, ou a privada de Hitler. Até o nosso xixi eventualmente volta para as nossas boca na forma de água potável – despoluída pela evaporação do mar. Ou acaba exportado, até, caso o esgoto pelo qual o xixi passe desemboque no mar e vire chuva em outro canto do planeta, de carona com as correntes marítimas.

Um xixi feito na rodoviária de Fortaleza, por exemplo, cai no Atlântico e pega a Corrente Equatorial Norte. De lá, vai até o Caribe. Com sorte, segue viagem até a Europa, via Corrente do Golfo. Dependendo de onde o H2O do xixi evaporar, ele pode virar garoa em Londres. Uma parte dessa chuva londrina cai no Sistema Lee Valley, o Cantareira deles. Depois dessa escala, a água do xixi cearense pode até acabar num copo de cristal do Palácio de Buckinghham, e escorregar pela goela da Rainha da Inglaterra. Lá dentro do sistema digestivo da dona Elizabeth, a água volta rapidamente para a forma com que saiu do Ceará. E o ciclo começa outra vez.

Os xixis do Sudeste preferem outros destinos.  A urina que reflete ao pôr-do-sol no Arpoador tende a seguir para ao sul. E depois que a Argentina acaba, ela pode entrar numa fria: cair na forma de neve em algum canto da Antártida. Aí é fim de festa. A água do xixi vai terminar esse capítulo da vida dela exilada, talvez por vários milênios. A única chance de escapar dessa Alcatraz de moléculas de água e voltar ao mar (e eventualmente para a nossa vida) é virar cocô de pinguim, ou derreter no verão. Mas, mesmo com os esforços para preservar as populações de pinguins e o aquecimento global, a chance da H2O congelada escapar ainda é pequena.  Tão pequena que agora mesmo existe três vezes mais água doce na forma de gelo do que de líquido.

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Mas a dinâmica da Terra não ajuda no abastecimento de água. Nem a do mar. Evaporação à parte, ele ainda teima em manter 97% da água do mundo na forma de um veneno conhecido como ”água salgada”. Um veneno que você bebe sempre que toma um caldo de uma onda, mas que mata mesmo que ingerido em quantidades frugais.

Dos 3% que, neste momento estão sob a forma de água tomável, quase tudo mora debaixo da terra, num grande pré-sal aquático, pouco acessível. Só 0,26% do total planetário de H2O está aí dando sopa em rios, lagoas e represas para consumo imediato. Mas fontes do naipe do Rio Tietê, da Lagoa Rodrigo de Freitas e da represa Billings entram nessa conta, que dá 3,3 milhões de trilhões de litros. E se você consumir a água desses esgotos com nome bonito, o que vai ter de imediato mesmo é uma diarréia.

Mesmo assim ainda dá para segurar a bronca. Outro dia mesmo, em 2010, o problema do Sistema Cantareira era o excesso de água. A capacidade dos reservatórios (1,5 trilhão de litros), já estava a 98%, e perigava alagar o povo que mora em volta do complexo de represas. Alguns desses reservatórios transbordaram de fato. De lá até 2015 passou a chover menos nesse pedaço do planeta, provavelmente por cortesia do aquecimento global, que tem pirado o clima no planeta todo. O governo paulista, que nunca contou com a hipótese de faltar chuva no Cantareira, não fez nada para tornar a capital do Estado menos dependente dele. E a décima cidade mais rica do mundo, que produz um quarto do PIB do Brasil, sofreu uma seca histórica.

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Não que fosse impossível ter pensado algo lá atrás. Jundiaí, que fica tão perto de São Paulo quanto um átomo de hidrogênio gostar de ficar de uma molécula de oxigênio, se programou e construiu reservatórios extras para guardar água nas épocas de chuvas gordas. Quando o padrão de chuvas mudou, a cidade continuava a ter água para aguentar até a próxima era glacial.

Outro exemplo de engenhosidade vem do Nordeste. Boa parte dos sertanejos passou a guardar em cisternas a água de chuvas que caem de vez em nunca. E hoje os litros de água pluvial que eles mantêm em estoque está na casa das dezenas de bilhões de litros. Um sistema de captação de chuvas assim em São Paulo, mesmo que instalado às pressas, teria ajudado em 2015 – e em outras secas que ainda podem estar por vir. Mas não: os paulistanos não têm como aproveitar chongas da água das tempestades que caem sobre seus telhados. Chuva mesmo só vale se cair bem no alvo, em cima de meia dúzia de represas.

Aí só dá para tirar uma conclusão: para os inteligentes, não vai faltar água, como os nordestinos e pessoal de Jundiaí deixam claro. Mas para os burros não tem jeito.

Leia mais:
A crise da água
A era da falta d’água

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