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A crueldade dos testes de cosméticos

A terrível história dos testes Draize: procedimentos usados para saber se uma substância é tóxica.

Por Salvador Nogueira
Atualizado em 12 jun 2020, 11h35 - Publicado em 8 jun 2020, 11h35
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Muitas agressões desnecessárias já foram feitas ao longo dos milênios em nome da beleza – as roupas de pele, por exemplo, que só caíram de moda nas últimas décadas, levaram muitos animais à morte. Mas nada parece tão atroz quanto o que a indústria dos cosméticos promoveu durante tantos anos. Por trás dessa imposição de sofrimento, estavam os testes Draize. Eles foram criados em 1944 pelos toxicologistas John H. Draize e Jacob M. Spines, do FDA (agência americana de fármacos e alimentos) para medir toxicidade aguda de substâncias – de início, principalmente cosméticos.

Os testes eram realizados em coelhos. Mas nada moderado, como injetar alguma coisa em bichos anestesiados. Nada disso. Os animais eram mantidos conscientes e presos a uma estrutura que impedia qualquer movimento e deixava apenas a cabeça de fora. Então a substância a ser testada – podia ser uma xampu, maquiagem ou até tinta – era colocada num dos olhos do coelho.

O método usual era puxar a pálpebra inferior e colocar a substância ali, como se fosse um copinho, e então fechar o olho. Em alguns casos essa aplicação acontecia diversas vezes, e os coelhos eram monitorados diariamente para que se verificasse o nível de irritação nos olhos – que podia ir de inchaço a sangramento. Veja uma descrição fria e calculista presente num dos relatórios de pesquisa de uma grande companhia química: “Total perda da visão por ferimentos internos sérios na córnea ou na estrutura interna. O animal mantém o olho fechado com urgência”. O texto também inclui informações de como lidar com o coelho ao tirá-lo do suporte. “Pode grasnar, arranhar o olho, saltar e tentar escapar.” Outra modalidade de teste envolvia a exposição da pele do coelho – que precisava naturalmente ser raspada antes – às substâncias testadas, com os mesmos efeitos deletérios. A pele pode sangrar, formar bolhas e descascar.

Os resultados não eram perfeitos, mas bastante razoáveis para estimar a segurança. Em 1971, cientistas da Universidade Carnegie Mellon avaliaram o quanto o uso dos testes Draize acertavam ou erravam na avaliação de substâncias. Descobriram que a chance de uma substância potencialmente perigosa passar no teste como segura era praticamente nula – no máximo, 0,01%. Já a chance de um irritante suave passar como seguro era maior: 3,7% a 5,5%. Por fim, a chance de um irritante perigoso ser originalmente classificado como um suave era significativa: 10,3% a 38,7%. Isso reflete as diferenças entre um coelho e um humano – nem sempre o que observamos nos olhos e na pele de um é o que acontecerá nos do outro. Mas a grande questão mesmo é: não havia testes alternativos, ou mesmo protocolos alternativos, que pudessem diminuir o número de animais utilizados e o grau de sofrimento a que eram submetidos? E outra: produtos cosméticos são o tipo de produto que justifica o uso indiscriminado de outros seres vivos?

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Coelhos imobilizados para servirem de cobaias em testes, em 1950. (Fox Photos/Getty Images)

Até a década de 1970, ninguém questionava muito isso – a noção de que os animais deviam ser vistos como autômatos, à la Descartes, ainda estava bem disseminada. Mas aí livros como o de Peter Singer começaram a levantar essa lebre. E os animais, não têm direitos? Não deveríamos proteger seu bem-estar ou, pelo menos, não puni-los com nossos empreendimentos fúteis? Em 1980, um movimento nos Estados Unidos sugeriu que a companhia Revlon, maior fabricante americana de cosméticos, investisse 0,1% de seu lucro em pesquisa de alternativas ao teste Draize.

Quando a empresa recusou a sugestão, o grupo publicou um anúncio de página inteira no New York Times com letras garrafais: “Quantos coelhos a Revlon cega em nome da beleza?” Pressionada, a empresa resolveu alocar os recursos. E outras companhias de cosméticos, como Avon e Bristol-Myers, seguiram o exemplo. Ao final da década de 1980, os resultados já eram palpáveis. Em 1989, a Avon anunciou que havia desenvolvido um material sintético chamado Eytex que podia servir de substituto para o teste Draize. Em junho daquele ano, a empresa divulgou que não usaria mais animais no desenvolvimento de seus produtos. Oito dias depois, a Revlon fez o mesmo anúncio. A batalha pelo fim da crueldade animal no ramo dos cosméticos estava praticamente ganha.

E o movimento, evidentemente, também trouxe benefícios claros para animais usados em outros tipos de pesquisa em toxicologia, que passaram a usar com maior frequência cultura de células em laboratório, materiais sintéticos e simulações de computador. Trata-se de um exemplo de como se pode, com engenhosidade e aplicação, reduzir bastante o tanto de sofrimento que impomos egoisticamente a outras criaturas. Mas e quando o teste não é só para ver quanto mal uma substância pode causar, mas o bem que ela pode trazer no tratamento de doenças que afligem incontáveis seres humanos?

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