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A lógica do zoologico

A diferença monstruosa é que, no caso dos trombudos, essa calefação natural vem de 7 toneladas de células.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 26 abr 2023, 16h17 - Publicado em 30 set 2001, 22h00

Rafael Kenski

Você já reparou como os elefantes africanos são esquisitos? Para começar, seu peso é, no mínimo, duas vezes maior que o de qualquer outro animal terrestre – além de exibirem as orelhas mais gigantescas que já se viu no planeta. O pescoço, em compensação, é curtíssimo – mas da cabeça sai uma tromba que chega a 3 metros de comprimento.

Visualmente, o conjunto pode não ser muito harmonioso, mas cada uma dessas características prova que a natureza segue uma lógica rígida. Em primeiro lugar, esses traços são coerentes com as enormes dimensões do animal. O pescoço, por exemplo, tem de ser curto para sustentar o peso da cabeça, que, muitas vezes, ultrapassa 1 tonelada. A tromba provavelmente evoluiu só para trazer alimento até a boca – solução engenhosa para o problema de descer uma cabeça localizada a 3 ou 4 metros de altura até o chão, onde estão a maioria dos vegetais de que o elefante se alimenta.

A necessidade de manter a temperatura constante regula outras tantas características do design do bichão. Pelo menos em um aspecto os elefantes são iguais aos seres humanos: seu corpo precisa estar sempre a 36ºC, calor gerado pelas reações químicas em seu organismo. A diferença monstruosa é que, no caso dos trombudos, essa calefação natural vem de 7 toneladas de células. Somada ao clima tórrido das savanas africanas, ela facilmente levaria ao superaquecimento. Assim, fica fácil entender por que o couro do animal é todo careca: possuir pêlos, cuja função essencial é esquentar o corpo, não seria uma boa idéia. Isso explica também o tamanho das orelhas e o fato de serem repletas de vasos sangüíneos. Elas funcionam como o radiador de um carro: ao serem abanadas, o sangue que por elas circula perde calor para o ambiente e retorna mais frio para o corpo.

É possível, assim, explicar boa parte do físico dos elefantes apenas por meio da temperatura do corpo e de suas dimensões. Segundo Chris Lavers, paleontólogo da Universidade de Nottingham, Inglaterra, e autor do livro Why Elephants Have Big Ears? (Por que os elefantes têm orelhas grandes?, ainda inédito no Brasil), esses dois fatores regem todo o mundo animal. “Cada bicho explora o ambiente que o cerca de acordo com seu peso e com a fonte de energia que ele usa para se aquecer – e essas diferenças determinam as características de cada espécie”, afirma Lavers.

A temperatura do corpo também explica por que só algumas classes de animais sobrevivem nas regiões mais frias do planeta. O Ártico possui 40 espécies de mamíferos e oito de aves, mas nenhum réptil ou anfíbio. Independente de sua classe, todo animal precisa se aquecer, uma vez que as reações químicas que movimentam sua musculatura só ocorrem com a agilidade necessária entre 35ºC e 45ºC. Répteis e anfíbios, entretanto, teriam maior dificuldade para cumprir essa tarefa nos pólos. Eles são animais de sangue frio, ou seja: em vez de produzirem calor com as próprias células, dependem de um bom banho de sol, algo impossível numa região onde a temperatura chega a 60ºC negativos e não se vê luz solar durante meses. Abaixo de 20ºC, o metabolismo de um réptil grande se torna tão lento que ele não consegue digerir a comida em seu estômago – se o frio piorar muito, a morte é certa.

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Mamíferos e aves, ao contrário, são animais de sangue quente. Além de gerar calor próprio, desenvolveram diversas formas de conservá-lo até mesmo nas situações mais extremas. A mais evidente é a cobertura de pêlos, gordura e penas. Se, por exemplo, cortarmos uma foca do Ártico ao meio, veremos que mais de 50% do seu diâmetro é composto de gordura. Mas como as patas dos animais não podem ser cobertas por camadas tão espessas e estão sempre em contato com a neve é muito fácil o calor escapar por aí. Para resolver esse problema, bichos do Ártico, como huskies e caribus, desenvolveram uma rede especial de veias e artérias. O sangue que sobe das patas, resfriado pela neve, passa bem próximo dos vasos sangüíneos em que o sangue aquecido vem descendo. Assim, a diferença de temperatura faz com que o sangue esfrie antes mesmo de atingir os membros e esquente antes de voltar para o corpo.

Outra fonte de aquecimento da maioria dos animais polares é a pele escura, que conserva melhor o calor. Até mesmo o urso polar, todo branco em sua perfeita camuflagem, não é exceção à regra: seu pêlo é composto de fios ocos, que funcionam como fibra óptica dirigindo os raios solares diretamente para o couro – este sim, preto.

As mesmas estratégias dos animais do Ártico são utilizadas por muitas espécies que vivem no deserto. Elas também usam a cor da pele como controle térmico, obviamente ao inverso: predominam os tons claros, que não absorvem tanto calor. Os pêlos do camelo, por exemplo, ajudam a refletir os raios solares e a evitar a transpiração. O truque utilizado nas patas do caribu também é encontrado no órix, um antílope do deserto que, apesar de quase nunca beber água, consegue passar horas sob escaldantes 45ºC. O animal simplesmente esquenta até atingir essa temperatura e, para evitar que o calor lhe danifique o cérebro, utiliza uma rede de vasos sangüíneos semelhante à dos animais do Ártico, mas no sentido contrário: o sangue que desce para o corpo é resfriado pelo vento nas narinas, passando junto aos vasos sangüíneos que sobem para a cabeça. Assim, ele evita que o calor atinja os neurônios.

A temperatura do corpo também ajuda a entender por que algumas classes de animais são grandes e outras pequenas. Enquanto os maiores bichos nos oceanos ou em terra firme são os mamíferos, os ambientes de água doce são dominados por répteis como crocodilos com mais de 80 quilos, tartarugas gigantes e cobras de 9 metros de comprimento. Os únicos mamíferos volumosos exclusivamente fluviais são o peixe-boi e quatro espécies de botos. A razão desse desvio de padrão é que os ambientes fluviais – ao contrário dos oceanos – são muito instáveis, sujeitos a secas, enchentes e mudanças na composição da água. Além disso, cada rio é isolado dos outros por grandes faixas de terra, que impedem a fuga dos animais no caso de uma tragédia. Esses obstáculos são especialmente difíceis para animais de sangue quente, que, para se manterem aquecidos, precisam ter sempre à disposição uma grande quantidade de comida.

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Um mamífero gasta até dez vezes mais energia que um réptil só para se manter em repouso – qualquer fator que diminua quantidade de comida na água significa a morte. Por isso, os grandes mamíferos de água doce só são encontrados em rios caudalosos e constantes, como os da Amazônia.

Os crocodilos, por sua vez, conseguem se enterrar na areia e esperar anos se sua comida acabar. Sua resistência é tão impressionante que permitiu a eles sobreviver mais de 200 milhões de anos sem grandes modificações. O fato de dominarem os rios durante tanto tempo também dificultou a ocupação desse espaço pelos animais de sangue quente. Os mamíferos atuais todos se desenvolveram a partir de pequenos animais que só conseguiram crescer depois da extinção dos dinossauros, há 65 milhões de anos.

Se os répteis são os maiores animais de água doce, por que não existem animais de sangue frio tão altos quanto um elefante? Desta vez, a razão está no metabolismo de cada espécie. Animais de sangue quente possuem coração e pulmões acostumados a gastar muita energia e conseguem manter atividades pesadas durante longos períodos de tempo. Já os répteis, que sobrevivem com pouco alimento e, portanto, não têm um organismo acostumado a gastar energia, enfrentariam muitas dificuldades para agüentar esse peso. Eles possuem músculos fortes e um bom desempenho em exercícios curtos, mas logo falta oxigênio e combustível, o que os obriga a descansar.

Um bom exemplo de como um réptil grande se comporta é o dragão de Komodo, um lagarto que chega a 3,1 metros de comprimento e 166 quilos de peso. Ele jamais conseguiria correr atrás de mamíferos como javalis, cabras ou cervos – portanto, seu estilo de caça consiste em esperar próximo de uma trilha e dar o bote no animal que passar. O ataque pode matar a presa na hora ou causar muitas feridas, que infeccionam rapidamente graças à enorme quantidade de bactérias que vivem na boca do lagartão. Após o ataque, tudo o que ele precisa fazer é seguir lentamente o cheiro de carne em decomposição e devorar o seu almoço.

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Mesmo com esses truques do dragão de komodo, é improvável que um réptil pudesse ser muito maior que ele. Bichos gigantes não conseguem se esconder e dependem de força e resistência para atacar e se defender. Se um animal de sangue frio pesasse algo como 2 toneladas não agüentaria se locomover sem descansar a cada poucos metros. Seu coração e seus pulmões teriam de crescer na mesma medida que o resto do corpo, mas, a partir de um certo ponto, o seu metabolismo teria se alterado tanto que ele não poderia mais ser considerado um típico réptil. Animais grandes de sangue frio teriam também enorme dificuldade para levantar pela manhã, quando ainda não estivessem aquecidos. Esses argumentos reforçam a idéia de que os dinossauros eram diferentes dos répteis de hoje. “Eles provavelmente tinham um metabolismo mais acelerado”, afirma o paleontólogo Reinaldo Bertini, da Unesp, em São Carlos, SP.

Outro fator que ajuda a entender os padrões animais é a relação entre suas medidas de altura, área e peso. Ela explica por que um animal de sangue quente dificilmente se tornaria tão pequeno quanto uma mosca. Pelas leis da geometria, ao reduzirmos a altura de um objeto qualquer sua área externa se reduz em maior proporção e o volume diminui ainda mais. Por exemplo, se o diâmetro de um melão for reduzido à metade, sua casca diminuirá quatro vezes e seu peso, oito vezes. Quando aplicamos essa lei aos animais, vemos que qualquer diminuição de tamanho implica em uma enorme redução do número de células que ele possui para se aquecer – mas essa mudança não é acompanhada na mesma proporção pela superfície, que é por onde o calor se dissipa. O organismo precisa, então, fazer um esforço maior para compensar essa perda de temperatura.

O musaranho etrusco, uma das menores espécies de sangue quente do mundo, consome, por dia, cerca de 1,3 vez o peso do seu corpo, que é de cerca de 2 gramas. Mesmo em repouso, ele precisa bombear sangue 1 200 vezes por minuto – só para comparar, o ser humano em repouso apresenta entre 60 e 80 batidas cardíacas por minuto. Dificilmente o coração de um animal agüentaria bater a uma velocidade maior que essa, por isso o musaranho parece estar no limite de tamanho para um animal de sangue quente.

Pelo mesmo motivo não existem animais de sangue quente com formas alongadas. Um mamífero que fosse semelhante a uma cobra teria uma enorme porcentagem do seu corpo em contato com o ambiente e perderia calor demais. Os lemingues, os mamíferos mais compridos do mundo, precisam comer duas vezes mais que um animal mais compacto e do mesmo tamanho.

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A proporção entre peso e área de superfície também explica por que não existem pássaros muito grandes. O planeta conta com mais de 9 700 espécies de aves, mas apenas o avestruz, a ema e três tipos de casuares da Austrália pesam mais de 50 quilos. Nenhuma das cinco é capaz de voar porque, ao crescer, o peso de um animal aumenta muito mais rapidamente que a superfície da asa. A partir de um ponto, o esforço sobre os órgãos de vôo se torna tão grande que decolar é impossível. Qualquer ave com mais de 20 quilos deve, portanto, contentar-se em viver no chão – o que significa abdicar de vantagens como movimentar-se rapidamente sem gastar muita energia, migrar para regiões mais agradáveis, escapar de predadores, enchentes e incêndios e obter acesso à copa das árvores e ao topo das montanhas. A maioria das aves que perderam a capacidade de vôo são nativas de ilhas oceânicas, onde não é importante fazer viagens longas e onde predadores presos ao chão são raros.

“Pássaros gigantes não existem pelo simples motivo de que trocar o vôo por uma grande massa corporal não é um bom negócio”, diz Chris Lavers.

Por fim, a temperatura do corpo e suas proporções de peso e superfície estabelecem vários padrões no mundo animal, mas não são os únicos fatores em jogo. “A evolução só leva uma espécie a crescer se houver uma conjunção de condições favoráveis”, afirma Bertini. Uma delas é a existência de nichos ecológicos vagos. As lulas gigantes, que chegam a mais de 7,5 metros de comprimento, só cresceram depois de se adaptarem à vida em ambientes marítimos a centenas de metros de profundidade, onde os predadores são raros e o alimento, abundante. Outro fator importante é a sorte, pura e simples. Os mamíferos só conseguiram crescer graças ao meteoro que exterminou os dinossauros. Do contrário, é provável que ainda hoje não passássemos de pequenos roedores.

Existem também muitas características que nada têm a ver com esses parâmetros. As listras da zebra são um bom exemplo. Se os animais de ambientes quentes tendem a ter cores mais claras, e os de ambientes frios, cores mais escuras, como se explica a zebra? O mais provável é que as listras evoluíram para confundir seus predadores. Os leões não conseguem identificar cores e se confundem ao ver uma zebra em movimento: se atacarem um bando, talvez nem saibam onde começa e onde termina cada animal.

Apesar de explicarem muitos fenômenos da vida na Terra, esses padrões não são leis físicas imutáveis. Eles resultam simplesmente da forma como cada animal explora seu ambiente. É possível, apesar de improvável, que um dia evoluam répteis gigantescos ou pássaros imensos. Esses fatores esclarecem muitos dos segredos da natureza, mas sempre existe a chance de que uma alteração ambiental leve a novos padrões e a novas características. Como diz Reinaldo Bertini, “a biologia é muito simples e, ao mesmo tempo, incrivelmente complexa.”

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