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A revolução invisível

Para aumentar a eficácia dos tratamentos médicos, a aposta da ciência está na manipulação de partículas na escala de bilionésimos de metro.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 31 jul 2003, 22h00

Reinaldo José Lopes

Pode perguntar a qualquer biólogo ou médico: no organismo humano ou no de outros seres vivos, as coisas realmente acontecem no nível do infinitamente pequeno. Na prática, isso significa que as boas e velhas células, tão importantes naqueles livros de biologia do colégio, são só a parte menos refinada da história. Quem manda mesmo são as moléculas: elas é que, na forma de DNA, armazenam as instruções para construir as células ou o organismo inteiro; na forma de glicose, são o combustível para aquela maquinaria toda funcionar; na forma de anticorpos, barram os intrusos. E tudo isso acontece na escala do bilionésimo de metro – para os cientistas, um nanômetro. Por que, então, quando algo dá errado nessas engrenagens minúsculas (leia-se: uma doença), não ir direto à fonte do problema?

Essa pergunta já deu origem a algumas das idéias mais mirabolantes da nanotecnologia, a disciplina que busca manipular objetos (átomos e moléculas) na escala nanoscópica. Que o diga o engenheiro americano Eric Drexler, que publicou o visionário livro Engines of Creation (Motores da Criação) em 1986, quando ainda era do respeitado MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Para o pesquisador (que hoje é presidente da organização sem fins lucrativos Foresight Institute), o futuro da medicina estaria nas mãos de nanorrobôs guiados por computador, capazes de se multiplicar dentro do organismo do doente e de consertar problemas molécula por molécula, enquanto monitoram a façanha em tempo real com nanocâmeras.

Nem é preciso dizer que as promessas de Drexler não se realizaram. “Aliás, a reputação profissional do Drexler não anda das melhores. Essas idéias de ficção científica são vistas hoje como pouco prováveis, pelo menos no prazo de várias décadas”, diz o físico especialista em nanotecnologia Cylon Gonçalves da Silva, do LNLS (Laboratório Nacional de Luz Síncrotron), em Campinas, interior de São Paulo. Os pesquisadores estão deixando de lado a idéia de povoar as suas artérias e veias com nanossubmarinos como o do filme Viagem Insólita, de 1987, e investindo em ferramentas nanométricas mais simples, mas não menos eficientes.

“Existem duas grandes áreas aí, a de diagnósticos e a terapêutica”, avalia Silva. “O grande sonho é realizar a convergência entre as duas: chegar o mais próximo possível da detecção de problemas e da autocorreção deles em organismos vivos. É importante essa convergência porque, se você pensar bem, o corpo humano não faz as coisas separadamente. Um bom exemplo são as células que produzem insulina: ao mesmo tempo elas detectam o excesso de glicose no sangue e secretam a insulina para corrigir isso”, diz o físico brasileiro.

É precisamente esse ajuste refinado que falta na imensa maioria dos medicamentos que somos obrigados a engolir hoje. Para começo de conversa, a dosagem que aparece na bula corresponde àquilo que se consideraria adequado que o “indivíduo médio” doente consumisse. Acontece, porém, que cada pessoa responde de um jeito diferente à mesma dose de medicamento, graças a fatores como idade, sexo ou grupo étnico. Além disso, como o remédio enfrenta obstáculos do sistema digestivo (se for engolido) ou das células de defesa do sangue (se for injetado), a dose recomendada é sempre um pouco mais alta para conseguir chegar ao alvo. Resultado: haja paciência para agüentar os efeitos colaterais e a falta de eficácia em diversos casos.

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Por tudo isso, drogas mais inteligentes, como as que a nanomedicina promete, são consideradas um investimento e tanto: “A estimativa da Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos é de que a nanotecnologia gere um mercado de US$ 31 bilhões de dólares na área de saúde nos próximos dez anos”, diz Barbara Baird, coordenadora de um centro de nanobiotecnologia na Universidade Cornell, nos EUA.

Os precursores desses remédios inteligentes já estão sendo desenvolvidos por pesquisadores do Brasil e do mundo, e na maior parte dos casos consistem em esferas de tamanho nanométrico, que servem de embalagem para a molécula de medicamento. Não parece espetacular, mas esse tipo de sistema pode diminuir drasticamente tanto a dose necessária de remédio quanto seus efeitos adversos, além de levá-lo mais diretamente ao alvo que se quer atingir. Essas nanoesferas são quase sempre feitas com polímeros (moléculas de cadeia comprida, formadas por várias unidades menores que se repetem).

“Nosso trabalho é mais intenso com nanocápsulas de 200 nanômetros, em forma de pó, enquanto o mais comum é que esse tipo de estrutura seja preparado na forma aquosa (líquida)”, diz Sílvia Guterres, da Faculdade de Farmácia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). As cápsulas, feitas com um polímero biodegradável, conseguem impedir a irritação da mucosa do estômago causada por antiinflamatórios, barrando o contato direto entre o remédio e a parede do órgão quando um comprimido é engolido. Essa proteção também permite que o medicamento circule por mais tempo – o que faz com que uma dose bem menor surta o mesmo efeito.

Uma estrutura parecida está ajudando a aumentar a eficácia de uma vacina de DNA feita para combater a tuberculose. Um dos responsáveis por desenvolver a esfera, que lembra um pouco os sentinelas robóticos da série Matrix, é José Maciel Rodrigues, do Departamento de Bioquímica e Imunologia da FMRP-USP (Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto). Dentro dela, o fragmento de DNA, que é a vacina propriamente dita, está recoberto por moléculas de um glicolipídeo (um açúcar associado a uma gordura) e o espaço entre essa estrutura e a parede da esfera fica recheado com um polímero. Enquanto esse recheio impede que o DNA seja digerido pela célula antes de fazer seu papel, o glicolipídeo ajuda a estimular o sistema de defesa do organismo a combater a bactéria que causa a tuberculose.

A experiência tem dado tão certo que Rodrigues já está virando empresário: “Estamos criando uma empresa, a Nanocore, que já conta com sete pesquisadores, como plataforma para produzir essas estruturas”, afirma. Outro potencial produto é uma cápsula (em forma de copo sem fundo) feita com uma molécula chamada ciclodextrina, capaz de carregar insulina em forma inalada – evitando, assim, as injeções que tanto incomodam os diabéticos.

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ÍMÃS CONTRA O CÂNCER

Ainda mais engenhosa é a estratégia do físico Paulo César Morais e de sua colega, a bióloga Zulmira Lacava, ambos da UnB (Universidade de Brasília). Imagine que, depois de extrair um tumor do seio, por exemplo, uma mulher vá fazer uma consulta de rotina para saber se apareceram as temidas metástases, ou seja, o reaparecimento do câncer em outras regiões do corpo. No lugar das técnicas imprecisas e complicadas de hoje, ela poderia receber uma injeção repleta de ímãs com apenas 5 nanômetros de comprimento, capazes de localizar o novo tumor quando ele ainda tem menos de 1 milímetro de diâmetro e de eliminá-lo (veja infográfico).

A equipe da UnB já deu passadas largas na direção desse objetivo. O primeiro grande problema foi desenvolver nanoímãs que não causassem uma bela reação contrária quando entrassem no organismo, conta Morais: “Você precisa de um material magnético que não seja tóxico e que seja quimicamente estável (pouco suscetível a reações com outras substâncias)”. Os pesquisadores optaram pela magnetita, um óxido de ferro. Os ímãs nanoscópicos receberam também uma capa de moléculas orgânicas, como açúcar e ácido cítrico, para evitar reações indesejáveis do organismo. Para poder ser injetado, o construto foi transformado num colóide, ou seja, num líquido cheio de partículas em suspensão, que ganhou o indigesto nome de fluido magnético biocompatível.

Nesse estágio, já daria para pensar nos nanoímãs como armas contra o câncer: sabendo onde está o tumor, bastaria dirigi-los até o local e aplicar sobre eles uma corrente magnética alternada, gerando uma espécie de chacoalhada muito rápida. Esse movimento acelerado iria elevar a temperatura das células cancerosas e implodi-las. A equipe já provou que isso é possível em camundongos. “O problema é que esse sistema ainda é grosseiro, porque células saudáveis podem ser destruídas ao mesmo tempo”, ressalva Morais.

É por isso que o próximo passo é acoplar aos nanoímãs anticorpos capazes de reconhecer os diferentes tipos de tumor e se ligar a eles. Assim, apenas as células tumorais é que iriam para o espaço depois da chacoalhada magnética. De quebra, esse tipo de estratégia poderia também atacar vírus, como o da aids: bastaria acoplar anticorpos que se liguem a esses vírus e depois “limpar” a corrente sangüínea recolhendo os nanoímãs e sua presa, mais ou menos como se faz numa hemodiálise hoje. Morais, pelo menos, se diz otimista com a possibilidade: “Pelo que estamos vendo da viabilidade e das condições técnicas, vai dar tudo certo”.

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PÂNCREAS MICROSCÓPICO

Se a equipe da UnB está louca para pôr a mão nos anticorpos, a pesquisadora Tejal Desai, da Universidade de Boston, nos EUA, quer é distância deles. Explica-se: ela desenvolveu uma maneira de transplantar células produtoras de insulina de outros animais, como ratos e porcos, para seres humanos, evitando que os anticorpos do nosso organismo detonem as células estrangeiras (veja infográfico). Esse truque foi conseguido graças a uma caixa microscópica, feita de silício – o mesmo material que compõe os chips de computador -, cuja tampa tem poros de apenas 25 nanômetros. A caixinha está cheia de ilhotas de Langerhans, as células do pâncreas que monitoram o nível de glicose no sangue e produzem insulina caso este esteja alto demais.

São os nanoporos os responsáveis por controlar o que entra e o que sai da caixa de Desai. Seu tamanho é suficiente para deixar que a glicose do sangue chegue até as células e as avise se estiver acima do normal, e também deixa passar tranqüilamente a insulina que elas produzem. Mas os poros são pequenos demais para deixar passar os anticorpos humanos, que não podem atacar as ilhotas de Langerhans de outros animais e causar rejeição. Por enquanto, as caixinhas foram testadas com sucesso em camundongos diabéticos, que receberam células de ratos – tão diferentes deles, do ponto de vista do sistema imunológico, quanto nós somos diferentes de um bugio. Se os testes avançarem mais, os diabéticos do futuro poderão nunca mais precisar de injeções de insulina.

Não que elas já não estejam próximas de deixar de ser um incômodo: pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos EUA, criaram microagulhas (com alguns micrômetros de comprimento, ou seja, cerca de mil vezes maiores que um nanômetro) que podem injetar insulina através da pele sem que a pessoa sinta nada, já que são pequenas demais para afetar as terminações nervosas.

DESTRUINDO SUPERBACTÉRIAS

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Por sua vez, usando pequenas cadeias de aminoácidos (os “tijolos” que formam as proteínas), outro cientista está realizando de forma inusitada um dos velhos sonhos nanotecnológicos de Drexler: a capacidade de criar estruturas que se montem sozinhas no interior das células – e o melhor, usando essa propriedade para combater bactérias resistentes a antibióticos. O autor da façanha, Reza Ghadiri, do Instituto de Pesquisas Scripps, na Califórnia, usou um tipo especial de peptídeo (um trecho de proteína) que contém de seis a oito aminoácidos, organizados na forma de um anel.

Graças à sua estrutura molecular, esses peptídeos são atraídos por membranas celulares com carga elétrica negativa, como a das bactérias, ao mesmo tempo em que não causam dano a células cuja membrana é eletricamente neutra, como as nossas. Ao colocar esses anéis em contato com linhagens de bactérias que já tinham desbancado qualquer antibiótico, Ghadiri quase deu pulos de alegria ao ver que eles se dirigiam para as membranas e se juntavam, formando nanotubos. Essas estruturas agiram como lanças moleculares: perfuraram a membrana das bactérias e fizeram com que o conteúdo celular simplesmente vazasse para fora, matando micróbios tão terríveis como o Staphylococcus aureus (principal causador da infecção hospitalar) ou o Streptococcus pneumonieae (como o nome diz, responsável pela pneumonia).

Se a estratégia se mostrar eficaz em novos testes, será possível dar uma rasteira num dos problemas mais sérios da medicina atual, a resistência constante das bactérias aos antibióticos. Além do mais, Ghadiri espera que seja mais difícil que os micróbios evoluam de modo a escapar de suas nanolanças, já que isso envolveria uma mudança radical de forma na estrutura da membrana celular, e não apenas alguma modificação bioquímica, como acontece no caso dos antibióticos atuais.

BARREIRAS DO NANOMUNDO

Que os robozinhos cheios de hélices, alavancas e garras não são uma expectativa realista (pelo menos por enquanto), todo mundo já sabe. Mas será que não há jeito de criar outro tipo de nanomáquinas, que sejam mais fiéis ao funcionamento das próprias moléculas dos organismos vivos? É nisso que estão trabalhando Carlo Montemagno e seus colegas da Universidade da Califórnia em Los Angeles, grupo que inclui o pesquisador brasileiro Hércules Neves. “O nosso trabalho em nanotecnologia é mais genérico, apesar de sempre termos aplicações médicas em mente”, diz Neves.

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Uma das façanhas da equipe foi construir um motor molecular cujo combustível é ATP (sigla em inglês para trifosfato de adenosina), a molécula que armazena energia nas células vivas. Os outros componentes são uma proteína da bactéria Escherichia coli presa a um eixo e a um propulsor feitos de níquel, com alguns milímetros de diâmetro. Conforme a proteína “digere” ATP, ela gira em sentido anti-horário, propelindo o sistema todo. Os pesquisadores conseguiram até prender ao sistema todo um “barril” de níquel de 100 nanômetros, que poderia carregar a droga que eles desejam administrar às células a bordo do motor.

Esse tipo de protótipo pode até ser interessante, mas está na cara que ainda falta muito para conseguir nanomáquinas eficazes e, sobretudo, controláveis. “É preciso desenvolver uma intuição para esse tipo de fenômeno. Seria uma máquina num meio aquoso em que as moléculas estão colidindo aleatoriamente o tempo todo”, diz Cylon da Silva. Trocando em miúdos: qualquer candidato a nanossubmarino sofreria tanto das limitações quanto das vantagens de seu tamanhinho, já que teria de navegar em meio a uma verdadeira avalanche de moléculas quase tão grandes quanto ele, trombando o tempo todo. “É como movimentar uma bolinha num vaso de mel: se você pára de empurrar, ela também pára”, resume o físico. “Entender como isso funciona não exige nenhuma lei nova da física, mas uma aplicação das mesmas leis em circunstâncias distintas”, afirma.

O que não é motivo para deixar o otimismo de lado: “O que está sendo feito, principalmente na área de transporte de fármacos, demonstra um grande avanço”, diz Nelson Durán, pesquisador do Instituto de Química da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e do Centro de Pesquisas Bioquímicas da Universidade de Mogi das Cruzes. “Estamos no estágio de tentar tudo”, afirma Silva. “Algumas coisas não dão certo, mas estamos aprendendo muito”, diz o cientista.

 

Pâncreas de bolso

Nanocápsula pode acabar com as injeçõesde insulina

GLICOSE

Essas moléculas são pequenas o suficiente para atravessar a membrana da nanocápsula. Quando estão em excesso no sangue, chega a hora de começar a produzir insulina

INSULINA

A overdose de glicose estimula a produção do hormônio, que também consegue atravessar a membrana de 25 nanômetros de diâmetro e diminui a quantidade de açúcar no sangue

ANTICORPOS

Grandes demais para atravessar as aberturas da nanocápsula, eles não causam reações adversas e permitem que o sistema continue funcionando sem risco de rejeição

CÉLULAS PRODUTORAS DE INSULINA

Tiradas do pâncreas de porcos ou ratos, elas substituem o sistema de regulação de glicose que os diabéticos não têm e são protegidas da rejeição pelo tamanho dos nanoporos

 

Bomba inteligente

Nanoimãs podem ser a arma ideal contra o câncer

1. Os ímãs, com apenas 5 nanômetros de diâmetro, são injetados no sangue, trazendo consigo anticorpos específicos para o tipo de câncer que se quer combater

2. Graças aos anticorpos, eles são atraídos pelas células cancerosas e se acoplam a elas, deixando de lado as células saudáveis e minimizando os efeitos colaterais

3. Usando um aparelho desenvolvido especialmente para a tarefa, os cientistas aplicam um campo magnético alternado que chacoalha os nanoímãs e as células nas quais eles grudaram

4. O chacoalhão causado pelo campo magnético aquece as células cancerosas e finalmente as faz implodir, eliminando o tumor sem afetar as células saudáveis vizinhas

 

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