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Água, malte, lúpulo: como ingredientes simples criam cervejas complexas

Uma fórmula com poucos ingredientes pode se transformar em cervejas tão distintas quanto uma pilsen, uma IPA, uma stout. Entenda a mágica.

Por Mariana Weber
Atualizado em 8 jun 2018, 16h47 - Publicado em 8 jun 2018, 16h41

São quatro ingredientes básicos e muitas combinações possíveis – dezenas de estilos, com incontáveis receitas produzidas dentro de cada um deles. Mude a origem do lúpulo, o tipo de levedura, a composição da água, a duração de cada etapa do processo de fabricação ou qualquer outro fator e você terá uma cerveja diferente. Acrescente na equação ingredientes como frutas e especiarias e as possibilidades se multiplicam. Mas vamos por partes.

água
(Tomás Arthuzzi/Superinteressante)

Água

O guia da Paulaner, na cidade alemã de Munique, tira onda ao apresentar aos visitantes um dos poços que abastecem a cervejaria: “É água da última Era Glacial. Tem mais de 10 mil anos”, diz. Segue-se uma explicação sobre o porquê de cavar 200 metros em busca de água, quando um rio passa logo ao lado: a água do subterrâneo tem a dureza (concentração de sais como cálcio e magnésio) perfeita para produzir uma cerveja suave, enquanto a da superfície, mais dura, provê um amargor indesejável. Só é usada pela fábrica em algumas cervejas escuras.

Certo, cerveja é 90% água, portanto a qualidade dessa matéria-prima importa. Mas o acesso a uma boa fonte natural já não é tão importante quanto era em 1634, quando monges começaram a fabricar a bebida na Paulaner. Até o século 19, esse recurso natural era um dos fatores que determinavam os estilos possíveis de produzir em uma localidade. Em Munique e em Dublin, por exemplo, o uso de maltes escuros, ácidos, foi a solução encontrada para lidar com a água calcária e alcalina dessas regiões. Sem sua água “mole” (com poucos minerais), dificilmente a cidade tcheca de Plzen teria inventado a pilsen.

Hoje, se não tem um poço com água pura de 12 mil anos no quintal, você apela para tratamentos químicos, físicos e biológicos. Com a tecnologia disponível atualmente, até o mar, dessalinizado, pode virar cerveja. Mas há custos envolvidos nesse processo, e, se puderem, as cervejarias vão se instalar em uma área que exija o mínimo de gastos nessa etapa da fabricação.

A água carrega minerais que contribuem para o gosto do produto final. Além disso, seus íons interferem na manufatura. O cálcio, por exemplo, estimula a ação de enzimas e o metabolismo das leveduras. Já o ferro pode ser tóxico para esses fungos, prejudicando a fermentação. Além disso, dá um gosto metálico, de sangue, que ninguém quer na cerveja, e ainda favorece as reações de oxidação.

Um dos principais inimigos da boa cerveja é o oxigênio diluído na água. Em níveis adequados, ele é essencial para a fermentação, mas, em excesso, causa problemas que vão de alterações no paladar e no aroma à oxidação da tubulação da cervejaria. Na cerveja embalada, ele acelera a deterioração. Água subterrânea, como a do pátio da Paulaner, costuma ter menos oxigênio dissolvido, além de menos contaminação por micro-organismos e materiais em suspensão, já que o solo age como um filtro. O abastecimento por represas, rios ou lagos geralmente exige um tratamento mais intensivo para sua aplicação como água cervejeira.

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Mas nem toda água que entra na fábrica vira cerveja. O líquido também é usado em processos como limpeza de tanques, tubulações e recipientes, refrigeração e produção de vapor. Gastam-se, em média, 6 litros de água para fazer um litro de cerveja (isso sem falar no que se consome no cultivo dos ingredientes e na produção do malte). Da próxima vez que vir uma camiseta com os dizeres “Economize água, beba cerveja”, lembre-se: a piadinha, além de infame, é desinformada.

malte
(Tomás Arthuzzi/Superinteressante)

Malte

É a cevada ou outro grão, como trigo, centeio e aveia, que passou por um processo chamado de maltagem – que transforma um cereal comum em algo docinho, muito semelhante ao Ovomaltine do milk-shake do Bob¿s. Como é esse açúcar que vira álcool na fermentação, deve-se em grande parte à maltagem a diferença entre uma cerveja e um suquinho de cevada. Mas a contribuição do malte vai além do efeito inebriante. Ele afeta o sabor, o aroma, a cor, a espuma e o corpo da cerveja.

Para vender 85 variedades de malte, a Weyermann, instalada na cidade alemã de Bamberg, funciona como uma espécie de vitrine do ingrediente. Prateleiras no centro de visitantes expõem rótulos de clientes espalhados por 135 países, enquanto uma cervejaria própria, feita para testar receitas, produz 120 tipos diferentes da bebida por ano.

Fundada em 1879, essa maltaria teve um salto de crescimento a partir dos anos 1990, junto com o movimento da cerveja artesanal. Percebendo uma tendência de busca por sabores únicos, especializou-se na diversidade de malte, que inclui versões orgânica e kosher. De 20 funcionários, passou para 180. Hoje, 80% da sua produção anual de 90 mil toneladas vai para fora da Alemanha, parte dela armazenada em sacos de 25 quilos, tamanho considerado amigável para o pequeno cervejeiro.

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A diferenciação entre os maltes na fabricação se dá por variações de temperatura, duração de cada etapa e grau de umidade, entre outros fatores. O processo começa na seleção dos grãos – por critérios como tamanho, umidade e teor de proteína. Comprada de cerca de 500 fazendeiros da região que fazem a colheita por volta de agosto, a matéria-prima fica estocada para uso ao longo do ano.

Em tanques com temperatura controlada, os grãos são molhados e revolvidos constantemente para germinar. Quando isso acontece, a planta transforma o amido da semente em açúcar para alimentar o embrião; mas o germe é morto por secagem antes que comece a comer. A partir daqui, os grãos serão secos, torrados ou caramelizados, em uma etapa essencial para a formação de diferentes sabores e cores. Temperatura baixa pode levar a um malte suave e adocicado, como o da dourada pilsen. O malte pale ale, feito em temperatura um pouco mais alta, dará o sabor de biscoito e a cor mais escura das ale inglesas. Quando o malte chega a carbonizar, lembra café na aparência e no gosto. Se os grãos com bastante umidade são submetidos a altas temperaturas, sem passar por uma secagem gradual, eles caramelizam.

No geral, quanto mais torrado o grão, mais escura a bebida que resulta dele. Mas muitas cervejas misturam diversos tipos de maltes. Há ainda a possibilidade de adição de corante, como o que a Weyermann produz a partir de um concentrado de cerveja (a fábrica mantém uma cervejaria só para fazer esse item). Também podem entrar na receita outros grãos – maltados ou não, de acordo com a legislação brasileira. Mas, para ser chamada de cerveja, a bebida precisa ter pelo menos 20% de malte de cevada. Usada para produzir cerveja há 10 mil anos, a cevada é o cereal favorito dos cervejeiros por uma série de características, como ter uma boa reserva de amido, teor elevado de enzimas e casca dura, que protege o interior durante a maltagem e depois vira um filtro natural para o mosto (caldo de malte e água).

lúpulo
(Tomás Arthuzzi/Superinteressante)

Lúpulo

Se depois de um copo de cerveja você quer outro, pode culpar o lúpulo. Essa florzinha delicada dá o amargor que equilibra a doçura do malte, tornando a bebida mais refrescante e menos enjoativa. Fornece também sabores e aromas que são a marca de alguns estilos de cerveja. Age como um conservante natural, pois possui ação antibactericida. Ainda por cima, melhora a qualidade da espuma e tem taninos que ajudam na sedimentação das proteínas nas caldeiras e na consequente limpidez do líquido.

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Parente da maconha, o lúpulo não tem o efeito entorpecente da prima, mas é tido como relaxante e usado em calmantes e soníferos. Da planta típica de climas temperados que chega a 6 metros no verão, nascem flores no formato de pequenos cones verdes. O que interessa aos cervejeiros é um pó amarelo produzido na base das pétalas chamado lupulina – nele estão a resina amarga e os óleos aromáticos que temperam a cerveja.

Cem litros de cerveja consomem de 40 a 300 gramas de lúpulo, segundo o livro Larousse da Cerveja, de Ronaldo Morado. Pode ser pouco, mas, sem esse elemento, a bebida teria outro gosto. E de fato tinha: antigamente ela recebia misturas variadas de ervas e especiarias, como alecrim, milefólio, mirra, absinto, gengibre e alcaçuz. Provavelmente foram as propriedades conservantes que levaram o lúpulo a vencer a parada.

Na hora de fazer suas escolhas, o cervejeiro conta com dezenas de variedades de lúpulo, que apresentam diferentes graus de amargor e aromas que vão do herbáceo ao condimentado, do terroso ao frutado (pense em grama, hortelã, feno, erva-doce, pinho, limão, toranja, mofo, resinas, flores…). Algumas variedades são famosas, como a tcheca saaz, responsável pelo caráter floral da pilsen da Boêmia, e às vezes merecem menção no rótulo das cervejas que as empregam. As dos Estados Unidos costumam ser mais potentes e exuberantes que as europeias.

Uma mesma receita pode combinar diversos tipos de lúpulo. Adicionados em momentos diferentes, cumprem também funções distintas. O que entra no início da fervura do mosto empresta praticamente só amargor, pois os aromas evaporam. Colocado no fim da fervura, aí, sim, ele contribui com componentes aromáticos.

O amargor de uma cerveja é medido em IBUs (em inglês, unidades internacionais de amargor). Ele começa a ser percebido a partir de 5 IBUs, e pode chegar a mais de 100 em casos extremos (acima de 40 IBUs a cerveja já é bem amarga). Para agradar aos aficionados pela característica, algumas marcas exibem esse dado no rótulo.

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leveduras
(Tomás Arthuzzi/Superinteressante)

Leveduras

Operários da cerveja, os fungos transformam o açúcar em álcool e gás carbônico. Em outras palavras, tornam um simples suco de malte adocicado na bebida que a humanidade aprendeu a amar mesmo antes de saber da existência desses micro-organismos.

Hoje, fábricas criam suas próprias colônias de leveduras com cuidado: livres de mutações ou contaminações por bactérias e leveduras selvagens, que podem estragar ou mudar o sabor da produção (às vezes, no entanto, esses elementos são inseridos de propósito). Culturas são mantidas também por empresas especializadas na indústria cervejeira e por centros de pesquisa.

O fermento usado na cerveja é classificado em dois grupos: as leveduras de baixa fermentação e as de alta fermentação. As primeiras, usadas nas cervejas lager, atuam lentamente, em temperaturas entre 8 ºC e 16 ºC, se depositam no fundo da cuba de fermentação e dão origem a poucos subprodutos aromáticos. As segundas, das ale, ficam na superfície do líquido, agem entre 14 ºC e 25 ºC e geram aromas complexos e frutados. Há ainda as cervejas de fermentação espontânea, como a ácida lambic, em que micro-organismos (além de fungos, bactérias) presentes no ambiente fazem o truque. Tim-tim.

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OS AGREGADOS

Açúcar

De cana, milho ou beterraba, é usado para elevar o teor alcoólico da bebida sem encorpá-la.

Frutas, ervas e especiarias

Cumprem o papel de aromatizantes, como a cereja e a framboesa que entram na fermentação da cerveja lambic, ou o coentro e as cascas de laranja nas cervejas de trigo belgas.

Cereais não maltados

Arroz e milho não agregam praticamente nada em sabor e aroma, mas deixam a cerveja mais leve – e barata.

Corante

Nem sempre a tonalidade da bebida vem somente dos maltes torrados. Pela legislação brasileira, o uso de corantes é permitido para padronizar ou intensificar a cor.

Aroma de vinho, uísque e madeira

Armazenada em barris que já foram usados para guardar vinho ou uísque, a cerveja incorpora propriedades da madeira e dessas bebidas.

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