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As lições do sono

Novos estudos mostram que dormir é fundamental para o aprendizado. O travesseiro é um bom professor. E a boa aula deve ter 6 horas por dia no mínimo.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 31 out 1999, 22h00

Ivonete D. Lucírio

Os gregos temiam Morfeu, o deus dos sonhos, porque acreditavam que toda noite, ao adormecer, a divindade poderia atormentá-los enviando pesadelos aterrorizantes. A ciência, porém, está conseguindo provar que o sono é um bom professor. Ele organiza as idéias, ensina a mente a resolver problemas e nos faz aprender o que toda a concentração de um dia inteiro de vigília é incapaz de conseguir. “Enquanto dormimos, nosso cérebro conecta dados que acabou de guardar com outros acumulados no decorrer dos anos”, afirmou à SUPER o neurologista Robert Stickgold, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. “Com essa rede de informações somos capazes de achar desfecho para situações que, quando estamos acordados, parecem problemas insolúveis.” O sono expande os caminhos para a comunicação entre as regiões do cérebro.

As conclusões do cientista americano são o resultado de uma série de experimentos apresentada no mês passado durante o Terceiro Congresso Internacional da Federação Mundial das Sociedades de Pesquisa do Sono. Realizado na cidade alemã de Dresden, o encontro reuniu os principais pesquisadores da área em todo o mundo. Trocando em miúdos, Stickgold quer dizer que virar a noite estudando é uma tremenda besteira. Todo esforço se transforma em desperdício se as horas debruçado sobre os livros não forem seguidas de uma boa e longa noite de sono. Durante o período noturno de repouso, o conhecimento adquirido no decorrer do dia é revisto pelo cérebro e armazenado na forma de memória permanente. Portanto, só aprende quem dorme bem.

ivonete.lucirio@abril.com.br

O cientista alemão Auguste Kekulé (1829-1896) passou um tempo empacado no estudo da estrutura química do benzeno. Certa vez, viu, em sonho, grupos de átomos se juntando para formar uma espécie de cobra que tentava morder o próprio rabo. Ao acordar, veio a idéia de que aquela seria a estrutura do benzeno. E era.

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Lego cerebral

O sono desempenha um papel fundamental na apreensão de conhecimentos que envolvem o desempenho de tarefas como desenhar, andar de bicicleta, memorizar um livro ou dançar. Como num jogo de montar, é durante o sono que o cérebro revisa o aprendizado do dia, encaixa as informações nos lugares mais adequados e as grava na forma de memória.

O silencioso bate-bapo no cérebro

Um dos mais assustadores elementos do livro Admirável Mundo Novo, do escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), é a hipnopédia – um neologismo cunhado pelo autor para traduzir a idéia de aprendizado durante o sono. Na sociedade imaginária descrita por ele, o objetivo era condicionar os cidadãos com frases repetidas dezenas de milhares de vezes durante o repouso, até que a ordem fosse aprendida inconscientemente. Os estudos conduzidos por cientistas como Stickgold mostram que, como ciência, a literatura de Huxley nem bateu na trave.

O cérebro quase não dá bola para informações ditas quando se está dormindo. Ele está mais ocupado promovendo uma tertúlia, que dura a noite toda, entre duas importantes regiões do cérebro. As pesquisas indicam que o sono é crucial para transferir informações guardadas durante o dia, temporariamente, no hipocampo – uma espécie de memória provisória localizada na base do órgão – para uma área mais sofisticada, maior e permanente – o córtex, a chamada massa cinzenta (veja o infográfico).

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“Durante o sono, sobretudo na fase dos sonhos, o cérebro é capaz de ligar lembranças novas e antigas para encontrar soluções que aparecem quando a pessoa acorda”, complementa Stickgold. Para chegar a essa conclusão, um dos testes que ele fez consistiu em acordar voluntários durante a fase do sono chamada REM – abreviatura em inglês para “movimento rápido dos olhos” –, durante a qual costumam ocorrer os sonhos.

Depois de ler uma determinada palavra, eles tinham de dizer outra que lhes parecesse da mesma família. “O normal é esperar que, quando você diz quente, alguém responda frio, que é uma associação direta”, observa ele. “Mas, quando forçados a despertar nessa fase, ao ler a palavra quente eles respondiam com outras do tipo chocolate.” É uma analogia inesperada, que talvez seja conseqüência do intercâmbio de dados que ocorria entre as regiões do cérebro pouco antes de serem acordados.

Prazo de validade

Para muitos neurologistas os sonhos seriam simplesmente um reflexo dessa comunicação entre as regiões cerebrais. “Como ela não segue a mesma lógica daquela de quando estamos acordados, os sonhos ocorridos durante a fase REM podem parecer sem sentido”, comenta o neurologista Rubens Reimão, de São Paulo. Por isso, ao acordar pela manhã, a pessoas lembram-se de cenas incoerentes.

Em outra experiência, Stickgold usou o tetris, um popular jogo eletrônico, para observar como evoluía o aprendizado. Esse game consiste basicamente em usar comandos de teclado ou botões para encaixar pecinhas com formatos geométricos diferentes que vão caindo sem parar pela tela. Cerca de 75% dos voluntários contaram ter sonhos com os bloquinhos cadentes. “Mas o mais curioso é que lembravam-se principalmente das peças com que tinham mais dificuldades para encaixar, sinal de que procuravam uma solução”, diz o cientista.

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Recostar a cabeça no travesseiro, portanto, não é tão importante para conhecimentos mais elementares, como decorar números de telefone, mas é crítico na retenção de memórias visuais ou tarefas que envolvam habilidade. Não basta apenas um cochilo. São necessárias ao menos 6 horas bem-dormidas. Também não adianta nada passar mais tempo na cama no final de semana para recuperar o que foi perdido de segunda a sexta. O prazo de validade das novas informações é de 24 horas. Passado esse tempo, quase tudo que foi absorvido se perde.

Eletricidade pura

Por que o sono tem diferentes fases.

Há eletricidade circulando pelo cérebro o tempo todo, pois é por meio dela que uma célula nervosa se comunica com a outra. Os cientistas chamam de potencial elétrico a quantidade de cargas positiva e negativa que circula nas diferentes regiões do cérebro (veja abaixo). Durante o repouso, é a mudança do potencial que gera as fases do sono.

Dormir para aprender como um bebê

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O cérebro dá conta de milhares de tarefas simultaneamente. Mas tem lá suas limitações. Ao contrário de um videocassete, que grava um canal diferente do que está sendo mostrado pela televisão, ele precisa desligar um controle para ativar outro (veja o infográfico acima). Esse é um dos motivos pelos quais os recém-nascidos dormem quase o dia inteiro – eles têm muito o que aprender.

Não é que estejam assimilando novos conhecimentos, é claro. O aprendizado deles diz respeito a funções muito mais básicas, programadas quando ainda estão na barriga da mãe. É o caso da visão. Afinal, é depois de nascer que começam a receber estímulos de luz. Só assim a região do cérebro responsável por enxergar (o lobo occipital) acaba de ser montada. Ela aprende, entre outras coisas, quais neurônios correspondem ao olho direito e quais ao esquerdo. À medida que vai crescendo, a necessidade de repouso vai diminuindo. “Os testes mostram que no adulto o tempo mínimo para que haja alguma fixação do que foi visto durante o dia é de 6 horas”, diz Stickgold.

O sono tem diferentes fases (veja infográfico na página 34) e é preciso que elas se repitam várias vezes para que o armazenamento de dados pelo cérebro seja bem-feito. Assim, alguém que dorme 10 horas tem sua habilidade de fixar informações quase dobrada. Da mesma forma, acordar antes de completar as 6 horas pode fazer com que se perca tudo o que estava sendo gravado e aprendido até aquele momento. O trabalho de toda uma noite vai por água abaixo.

Os pesquisadores ainda não conseguem dizer qual é o número máximo de horas durante as quais o processo continua. Depois de um certo período, dormir pode servir apenas como descanso. “Acredito que as primeiras 8 ou 10 horas do repouso sejam destinadas às necessidades mais importantes do organismo”, disse à SUPER o neurologista Werner Plihal, da Universidade de Bamberg, na Alemanha. “Depois, o sono adquire um caráter supérfluo, apenas de prazer.”

O corpo se refaz

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Não é apenas para a memória que o sono é importante. Durante esse período, o organismo aproveita para se recuperar do cansaço físico. “Além do relaxamento muscular, é principalmente à noite que se produz hormônio de crescimento”, explicou à SUPER o neurologista Flávio Aloe, do Centro de Sono do Hospital das Clínicas de São Paulo. Na criança, esse hormônio é indispensável ao desenvolvimento e, no adulto, promove a cicatrização e a reposição de células da pele. O sistema imunológico também se refaz. Em repouso, acelera-se a produção de mecanismos de defesa contra infecções.

Nos bichos, o descanso tem ainda outras funções, como economizar energia. Mas uma pesquisa realizada pela Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, mostra que em alguns animais o sono também serve para rever o aprendizado diurno. Eles estudaram pássaros jovens da espécie Taeniopygia guttata enquanto dormiam. Registraram uma intensa atividade em uma região cerebral ativada quando a ave canta. É um forte indício de que durante a noite o cérebro do pássaro revisava as músicas ensinadas pelos pais naquele dia.

De olhos bem abertos

Para estudar um novo idioma é preciso estar desperto.

Não se anime muito com esses cursos que se propõem a ensinar uma língua estrangeira enquanto você está dormindo. O que o cérebro faz durante o descanso é gravar aqueles estímulos que foram armazenados durante a vigília. Ele fica desligado para vários sinais que chegam durante esse período. A porta só se abre para a entrada de sons que representem algum tipo de perigo ou alerta, como um ladrão ou um bebê chorando. As repetições de frases em outro idioma – ou no mesmo, como na obra de Aldous Huxley – não têm vez.

Merecido descanso

O sono não é igual em todo o reino animal.

Insetos, como a mosca, repousam. Mas não se pode afirmar que durmam. Eles nunca se desligam totalmente do ambiente, pois seriam facilmente predados.

Os peixes também apenas descansam. O tubarão é um caso curioso, pois repousa com uma metade do cérebro de cada vez para não ter que parar de nadar. Se parasse, seria levado pelas correntes.

Não se sabe ao certo o que acontece com os répteis, como o jacaré. É provável que alternem períodos de vigília e descanso, mas sem dormir.

Todos os mamíferos dormem. E o urso, além disso, também hiberna. Mas esse longo período de recolhimento não é sono. Trata-se de um estado letárgico no qual o metabolismo se reduz para poupar energia.

Quem dorme pouco paga um preço alto

É de esperar que as grandes idéias surjam de cientistas bons de travesseiro. Mas o inventor Thomas Edison (1847-1931) era uma exceção. Repousava só 3 horas por noite e considerava mais do que isso uma perda de tempo. Ironicamente, a maior invenção desse insone – a lâmpada elétrica – é uma das principais culpadas por muitos hoje dormirem tão pouco. Registros históricos mostram que no século XIX repousava-se por 10 horas. No início deste século, convencionou-se que 8 horas diárias seriam suficientes. Nas últimas décadas, muitos não respeitam nem esse número mínimo. Segundo a Fundação Nacional para o Sono, nos Estados Unidos, um terço dos americanos dorme muito menos do que deveria.

No Brasil, não há estatísticas sobre os hábitos de repouso da sociedade. “Acredito que nas grandes cidades parte da população sofre com privação de sono”, diz o neurologista Rubens Reimão, de São Paulo. As causas são várias: trabalho noturno, aumento das atividades diárias e doenças, como a apnéia, uma interrupção momentânea na respiração que leva a pessoa a acordar.

Essa falta de descanso pode custar caro. Pesquisadores da Universidade americana de Stanford aplicaram sete testes para verificar os reflexos de 113 pacientes com apnéia e de oitenta voluntários normais que beberam doses pequenas de álcool, o equivalente a dois copos de cerveja. Os insones apresentaram um resultado pior em todos eles.

Mesmo para quem não dirige, dormir pouco é ruim. São inúmeros os estudos que verificam a relação entre a privação de sono e o mau humor. Virar noites estudando, mesmo que se durma pela manhã, é pouco eficiente também. “Há aqueles indivíduos que se tornam mais criativos à noite porque o ciclo de funcionamento do seu organismo é diferente”, disse à SUPER o neurologista Timothy Monk, da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos. “Mas notamos que a necessidade de dormir leva a uma redução na velocidade de pensamento ao anoitecer.” Diferentemente do que acreditava Thomas Edison, repousar não é perda de tempo. Você pode entregar-se sem medo aos braços de Morfeu. Para dormir o sono dos sábios.

Para saber mais

Sono – Estudo Abrangente, Rubens Reimão, Atheneu, São Paulo, 1996.

Power Sleep, James B. Maas, Harper Perennial, Nova York, 1998.

As aulas do travesseiro

O sono é dividido em ciclos de 1 hora e meia, cada um composto de fases. O primeiro tem cinco fases, e os outros apenas três. É nestas últimas que ocorre o aprendizado.

Fase

1. Quase acordado

A primeira fase dura 1 ou 2 minutos. A mente não se desligou por inteiro do ambiente e ainda dá para perceber alguns estímulos vindos de fora, como sons. Esta fase só existe no início do sono e desaparece no decorrer da noite. Volta a ocorrer apenas quando alguém tenta acordar você.

Fase

2. Leve soneca

A fase 2 também é rápida, com cerca de 5 minutos. O sono é leve e acorda-se com facilidade. Muitas vezes um cochilo rápido não passa desse estágio. Funciona como um momento de transição para o repouso mais intenso. Pode também sumir no restante da noite.

Fase

3. Desligou geral

Na terceira fase começa o sono profundo. Dura cerca de 40 minutos no primeiro ciclo e vai diminuindo nos demais. Aí, o cérebro trabalha pra valer. O que foi aprendido durante o dia, e está arquivado no hipocampo, começa a ser transferido para o córtex cerebral. Lá, é armazenado na forma de memória.

Fase

4. Pode cair o mundo

A penúltima fase também dura 40 minutos no início e fica mais curta à medida que os ciclos transcorrem ao longo da noite. É o sono mais pesado. As atividades cerebrais se mantêm iguais à fase anterior, com acumulação intensa de memória. Outras funções orgânicas estão ativas, como a cicatrização de ferimentos.

Fase

5. Troca de informações

Esta é a fase REM. No primeiro ciclo tem apenas 3 minutos, mas vai aumentando de duração nos demais. O bate-papo do hipocampo com o córtex continua, só que voltado para o aprendizado de habilidades. As informações do dia passam a ser gravadas junto com dados antigos relacionados. Essa associação ajuda na solução de problemas.

É só fazer as ligações certas

O aprendizado no sono acontece porque são formadas novas uniões de neurônios.

1. Armazém temporário

Boa parte das tarefas que foram executadas no decorrer do dia fica estocada numa região do cérebro chamada hipocampo. Quando você adormece, cessa a maioria dos estímulos vindos de fora. É quando o hipocampo começa a mandar sinais elétricos para várias áreas do resto do órgão, de acordo com a informação armazenada.

2. Mensageiros cerebrais

Impulsos elétricos percorrem os neurônios. Ao chegar à extremidade de um deles, provocam a liberação de uma classe de substâncias chamadas neurotransmissores, principalmente a acetilcolina, que salta para outro neurônio.

3. Novas pontes e estradas

Impulsos repetidos fazem com que acabe aparecendo uma espécie de elo que conecta fisicamente um neurônio a outro, a sinapse. Ela facilita e torna mais rápida a transmissão dos sinais, como se uma nova avenida fosse construída numa cidade.

4. Rede completa

Com o passar das horas, e a cada noite de sono, forma-se uma rede de milhões de neurônios conectados por sinapses, uma malha viária para a passagem dos sinais elétricos. Por meio dela, um determinado conhecimento, como tocar piano ou jogar xadrez, é aprendido e gravado pelo cérebro.

Bêbado de sono

Ficar sem dormir pode ser tão perigoso quanto dirigir depois de beber.

Pouco reflexo

1. Depois de uma noite maldormida, diminui a concentração. Normalmente, o motorista está atento a várias coisas ao mesmo tempo, dos pedestres aos semáforos. Cansado, presta atenção em um número menor de elementos.

2. Aumenta no sangue a circulação de proteínas que controlam o sono. Elas provocam a sensação de cansaço, o que pode levar a um cochilo involuntário.

3. Os sinais que o cérebro manda para os músculos ficam mais lentos. Assim, é difícil frear com rapidez em uma situação de emergência.

Sem juízo

1. O álcool altera algumas regiões do cérebro que dão a noção de perigo. Assim, aumenta a propensão a andar em alta velocidade ou a não respeitar as leis de trânsito.

2. Doses muito elevadas podem levar a uma dificuldade de discernimento. Ou seja, um motorista embriagado enxerga um sinal vermelho e não tem noção do que ele significa.

3. Os reflexos musculares também diminuem muito, dificultando as reações rápidas.

Altos e baixos

Saiba a que horas o pensamento está mais ativo ou mais lento.

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