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Raphael Mechoulan, o pai do THC

Em entrevista à Super, pesquisador que descobriu o princípio ativo da maconha conta como a substância pode trazer tratamento e cura para diversas doenças.

Por Tarso Araújo
Atualizado em 10 mar 2023, 16h07 - Publicado em 27 fev 2014, 16h47

Raphael Mechoulan morreu em 9 de março de 2023, aos 92 anos. Este texto foi originalmente publicado em 2014.

“As pessoas deveriam saber melhor o que dizem quando o assunto é cannabis“, diz Raphael Mechoulan, por telefone, de sua casa em Israel. Em plena atividade, ele é chefe do Centro de Pesquisas de Dor da Faculdade de Medicina da Universidade Hebraica de Jerusalém. Há 50 anos, ele isolou o Δ9-Tetrahidrocanabinol (THC) e o identificou como princípio psicoativo da maconha — a substância responsável pelo “barato”.

Essa descoberta fundou a ciência dos canabinoides, substâncias que hoje representam esperanças de tratamento para uma série de doenças, algumas delas graves e sem cura, como o câncer e a esclerose múltipla. Nesta entrevista, ele conta como já se arriscou a ser preso por tráfico e qual foi o resultado do primeiro bolo de maconha da história, além de explicar como o proibicionismo, o preconceito e o desinteresse da indústria farmacêutica dificultam o desenvolvimento de medicamentos à base de cannabis.

Como surgiu seu interesse sobre a maconha?

Lendo antigos textos científicos sobre a cannabis percebi que era um campo rico para uma nova investigação. Havia muitas pesquisas do século 19, mas na década de 1960 ela era totalmente negligenciada. Aproveitei que conhecia diversas línguas — incluindo o francês, o alemão e o russo, nos quais a maioria desses textos estavam escritos – e encontrei dúzias de trabalhos publicados em revistas obscuras e esquecidas. Sabia que a morfina tinha sido isolada do ópio há quase 200 anos, cocaína das folhas de coca há cerca de 150. Era surpreendente, àquela altura, que não conhecêssemos o princípio ativo da cannabis.

Por que essa identificação não aconteceu antes?

Havia dois problemas. Um deles era químico. A cocaína e a morfina são alcaloides e com essas substâncias é possível preparar sais que podem ser precipitados e logo separados. Mas isso não é possível com o THC, então era preciso outros tipos de técnicas que não estavam disponíveis no século 19 e só surgiram no século 20. Aí vem o outro problema. Nessa época, tornou-se muito difícil trabalhar com a cannabis porque existiam muitas leis que tornavam essa tarefa quase impossível. Especialmente nos EUA, onde a maior parte das pesquisas era realizada.

E como você conseguiu cannabis para pesquisa?

Tive sorte, porque não sabia dessas restrições todas. Pedi ajuda ao chefe da minha instituição em Tel Aviv. Ele ligou para o número dois da polícia, que era seu amigo dos tempos de exército, e perguntou: “Você poderia dar um pouco de haxixe para um cientista do meu instituto?” Então fomos até a polícia e, do corredor, eu escutei o policial perguntar: “Ele é de confiança?” Meu diretor respondeu: “Sim, ele é”. Então voltei outro dia e ele me deu cinco quilos de haxixe. Coloquei na mochila e peguei um ônibus para a universidade, porque não tinha carro na época, e percebi que os passageiros olhavam ao redor, tentando identificar de onde vinha aquele cheiro. Eu não sabia, mas poderia até ser preso. Deveria ter uma permissão do Ministério da Saúde. Como estava num país pequeno, fui ao Ministério depois e disse: “Desculpe, da próxima vez pedirei a permissão”. Muitas pessoas lá eram meus estudantes e eles não queriam mandar um professor para a cadeia. Então foi tudo bem.

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O que você fez com esse haxixe?

Isolamos diversos compostos. Em 1963, identificamos e provamos a estrutura do canabidiol (CBD), um dos diversos componentes da cannabis, mas não o psicoativo. E em 1964 fizemos o mesmo com o THC. Notamos que esse era o único composto psicoativo da planta da cannabis, fosse ela de Israel, do Líbano, do México. Era sempre o THC.

Como descobriu que era ele que alterava as pessoas?

Um colega do departamento de biologia tinha uma colônia de macacos-rhesus. Pedimos que testasse nossos compostos e ele o fez. O THC era o único que os deixava de algum modo sedados.

É verdade que depois você testou o THC em um bolo?

Sim. Queríamos saber se esse composto também agia em humanos. Então demos a cinco amigos um pedaço de bolo com um spray de 10 mg de THC, sem que soubessem. Para outros cinco amigos, um bolo sem nada. Somente os que ganharam a fatia com THC sentiram os efeitos psicoativos, que se manifestaram de modo diferente em cada pessoa. Um disse apenas que estava se sentindo muito bem. Outro não parava de falar — o que não era uma surpresa já que ele era membro do Parlamento, então normalmente já falava o tempo todo. Outro disse: “Não estou sentindo nada”, mas alguns minutos depois começou a rir sem parar e sem razão específica. Tínhamos dado muito THC a eles, pois não sabíamos que 10 mg eram demais, e uma das pessoas que tomou THC teve um ataque de ansiedade. Essa diversidade de efeitos foi algo típico, porque nem todas as pessoas que usam maconha pela primeira vez reagem do mesmo modo, e algumas têm ataques de ansiedade. Tudo isso foi completamente legal, porque como o THC era um novo composto, ele ainda não estava proscrito.

Como as pesquisas prosseguiram depois dessa descoberta?

O THC passou a ser investigado por muitas pessoas e descobrimos muito sobre seus efeitos no corpo. Mas não sabíamos como ele agia. Então um grupo americano encontrou um receptor no cérebro ao qual o THC se conecta. E o receptor inicia uma série de ações. Bem, o cérebro não faria um receptor para uma substância da cannabis, então ele devia produzir algo que agisse no mesmo receptor. Em 1992, descobrimos esse composto, que chamamos de anandamida. Nos últimos 20 anos, houve um grande interesse por esses compostos, que chamei de endocanabinoides.

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Para que eles servem?

Na maioria dos casos, eles agem de um modo positivo, ajudando o corpo a se proteger de várias doenças. Por exemplo, num estudo há dez anos, causamos um pequeno dano ao cérebro de ratos e analisamos como eles se recuperam. Notamos que havia um grande aumento na concentração de endocanabinoides no cérebro. Em outra fase do estudo, sintetizamos esse material e demos aos ratos. A recuperação dos animais que receberam oendocanabinoide foi 50% melhor, comparada à dos que não o receberam. Então acredito que um dos principais papéis desse sistema é proteger oorganismo.

No cérebro?

Não somente. Eles também têm um papel importante em outras doenças, como de coração, de estômago e por aí afora. Há um composto estritamente relacionado aos endocanabinoides que previne a osteoporose. O CBD, por sua vez, é um potente anti-inflamatório e útil para tratar doenças psiquiátricas. Um estudo importante na Alemanha deu CBD para esquizofrênicos e ele teve o mesmo resultado de outros remédios usados atualmente, mas sem os diversos efeitos colaterais desses medicamentos.

As propriedades anti-inflamatórias da cannabis são relatadas há milênios…

Sim. Dioscórides, médico grego que trabalhava no império romano no início da Era Cristã, escreveu um livro que foi referência entre os médicos por quase 2 mil anos e ele recomendava a cannabis para várias inflamações.

Por que demoramos tanto para confirmar essa eficácia?

Sempre houve um problema com a mudança na composição de canabinoides da maconha. As variedades da Índia contêm uma grande quantidade de THC. A europeia, não. Quando os britânicos estavam na Índia, no século 19, descobriram a atividade da cannabis e começaram a enviá-la para a Europa. Mas como não se conhecia sua farmacologia, às vezes ela funcionava, às vezes não. Depois, vieram todas as leis que restringiam as pesquisas, e o assunto foi essencialmente esquecido.

O senhor lamenta esse atraso?

São coisas da vida.

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Hoje em dia existem muitos relatos de pacientes e experimentos com animais que indicam o potencial dos canabinoides para tratamento de diversas doenças. Por que eles ainda não viraram remédios importantes?

A medicina moderna é um animal estranho. Quando as pessoas descobriram a insulina em 1920, ela tornou-se remédio em um ano e meio. Isso salvou milhões de vidas. Os corticoesteroides, descobertos nos anos 30, viraram remédio quase imediatamente. A anandamida, descoberta no cérebro em 1992, até hoje nunca foi dada para nenhum paciente humano. Nunca. Há quase 40 anos, eu e o pesquisador brasileiro Elisaldo Carlini, um grande amigo meu, publicamos um artigo de revisão sobre novas drogas à base de cannabis. A repercussão foi mínima. Foi ridículo. Depois, em 1980, fizemos um teste clínico com CBD para pacientes de epilepsia. As convulsões acabaram quase completamente em quatro dos oito pacientes tratados, e outros três tiveram melhoras parciais. Apesar do resultado positivo, até hoje esse é o único teste clínico realizado sobre o assunto.

E ano passado o médico americano Sanjay Gupta se surpreendeu ao descobrir esse efeito antiepilético em crianças.

Sim, agora as coisas estão mudando, definitivamente, por causa do exemplo de tantos pais que estão dando CBD a seus filhos. Mas repare que essa informação não vem dos médicos para o público, e sim do público para os médicos.

Os médicos têm medo da maconha, dr. Mechoulan?

Por anos, as pessoas aprenderam que a maconha é uma droga, uma coisa essencialmente má. Esse é o entendimento geral das pessoas, especialmente das mais velhas. E muitos médicos também pensam assim. Eles não gostam da cannabis como remédio porque não é um composto puro. Quando eles prescrevem um antibiótico para você tomar 10 mg, três vezes ao dia, por uma semana, têm controle total. Com a cannabis não é assim. É totalmente diferente do que ele aprendeu e faz o tempo todo. que estou tentando convencer o Ministério da Saúde de Israel a fazer é produzir três tipos de maconha. Uma com mais THC e pouco CBD, outra com o contrário, e uma terceira com metade de cada um. Assim, os médicos podem receitar cada uma para diferentes necessidades.

Então o senhor defende inclusive o uso da cannabis em seu estado natural.

Esse é outro ponto importante. A maioria das drogas é administrada via oral ou injetada. A cannabis não pode ser injetada, mas pode ser tomada oralmente. Mas assim ela não age do mesmo modo que inalada ou fumada. Pela via oral, o efeito só chega em duas horas. Ao inalar ele vem imediatamente, com altas concentrações. Médicos não gostam disso porque não existem outras drogas usadas desse modo. É um mundo completamente diferente.

Acha que isso pode mudar?

Sim, é o que está acontecendo no momento. Hoje, a cannabis é uma espécie de remédio alternativo, mas isso pode mudar. Há alguns anos, estávamos escrevendo em máquinas de datilografar, mas quantas cartas você escreveu nos últimos cinco anos? Hoje vai tudo por computador. Talvez as coisas mudem e as pessoas aceitem essa mudança.

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Os testes clínicos existentes não são suficientes para acelerar esse processo?

Há muito poucos aprovados, porque na maioria dos países é muito difícil conseguir material para realizá-los. Gostaria que houvesse mais. Já falamos sobre a epilepsia, mas há indícios de que a cannabis pode ser útil no tratamento de câncer e também nunca houve testes clínicos sobre isso. Já se sabe há anos que o CBD pode ser muito útil para tratar diabetes do tipo 1, mas nunca foi testado em pacientes. Experimentos mostram que a cannabis pode ser muito útil em várias outras doenças. Inflamações intestinais — sem testes clínicos. Doenças de pele autoimunes – sem testes clínicos. Arterioesclerose — sem testes clínicos. Osteoporose – sem testes clínicos.

Por que eles não são feitos?

Porque custam muito dinheiro. A maioria deles é feita por empresas farmacêuticas com seus próprios compostos, sobre os quais elas têm patentes. Não existem patentes no mundo da cannabis (porque não é permitido patentear produtos naturais). Então, se uma empresa gasta US$ 500 milhões com um teste, que é mais ou menos o quanto isso custa, ela não vai ter retorno porque não tem uma patente. E isso é algo que os acadêmicos não podem fazer por si próprios. Nossos orçamentos são pequenos. É engraçado.

A ONU diz que a maconha não tem utilidade terapêutica. Mas com as evidências disponíveis, já se poderia dizer que ela tem, sim, aplicação medicinal?

É óbvio que tem. Mas você sabe que os governos nem sempre estão certos. O que a ONU ou os EUA dizem nem sempre está correto. Política é outra coisa. A ONU decidiu assim? Então é isso. Porque eles deveriam se preocupar?

Como você lida com essas dificuldades?

Nunca me senti frustrado ou algo assim. Minhas pesquisas sempre foram bem aceitas. Lamento que, clinicamente, ela não tenha sido bem aproveitada, mas muitas coisas novas levam anos para ser aceitas. O dia só tem 24 horas. E quando escolhemos fazer algo, temos que seguir em frente e fazer. Foi o que fiz nos últimos 50 anos. E não tenho grandes desejos de ser um político.

Falando em política, o que o senhor acha das iniciativas recentes de legalização?

Na democracia, as coisas não são decididas sempre pelo governo, mas pelo público. Se essas coisas acontecem nesses países, é porque existe um clima político favorável. Aqui em Israel, esse clima ainda não existe. Mas não podemos fazer coisas idiotas como colocar pessoas na cadeia só porque fumam cannabis. O preço é tremendo. Quando se coloca um jovem na cadeia, isso vai destruí-lo. Aqui, eu digo: por favor, descriminalizem. Deixem a polícia livre para ir atrás dos gângsteres. E o número de pessoas presas por isso aqui é basicamente zero. Diferente dos EUA, que têm milhões e milhões de pessoas presas por pequenos crimes ligados à cannabis. É ridículo. Não sei como é no Brasil, mas acredito que haja poucos.

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Na verdade, temos muitos também. Acha que regular o comércio de maconha poderia reduzir o preconceito contra essa droga e ter efeitos positivos para a pesquisa?

Ah, sim. As pessoas deveriam saber o que estão falando quando o assunto é maconha. Deveriam saber a diferença entre a cannabis, a cocaína e a heroína. A população deveria saber. Ministros e parlamentares deveriam saber. Mas leva tempo. Quando a penicilina foi descoberta, levou 20 anos para ser reconhecida como um bom remédio. No caso da cannabis, por causa das leis da ONU e de outras coisas, vai levar mais tempo ainda. Mas as coisas vão mudar e os médicos vão aceitar isso.

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