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Eles vão morrer em Marte

Um reality show pretende levar voluntários para o planeta vermelho em dez anos - mas não promete trazê-los de volta. Conheça as pessoas que querem passar o fim de seus dias longe da Terra - e entenda a polêmica missão espacial

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 9 fev 2015, 22h00

Eliana Loureiro

A taxista inglesa Melissa Ede nasceu em 1961 como Leslie Lawrence Ede, biologicamente um homem. Apesar da aparência masculina, ela sempre soube que era uma mulher. Melissa só conseguiu se realizar completamente depois de uma cirurgia de mudança de sexo em janeiro de 2011, já com quatro filhos e um divórcio no currículo. Hoje, ela se dedica a ajudar outras pessoas na mesma situação, divulgando suas experiências em um site e dando entrevistas: “Espero que as pessoas, ao verem o que eu enfrentei e superei, sejam encorajadas a acreditar que qualquer sonho é realizável.” Mas a história de sua mudança de sexo é apenas a segunda maior curiosidade da vida de Melissa: a inglesa está tentando passar o resto de seus dias em Marte. E ela tem chances reais de conseguir.

Melissa Ede é um dos 705 candidatos escolhidos em todo o mundo para a segunda fase de seleção da Mars One, uma missão espacial privada, baseada em patrocínio publicitário, que pretende colonizar Marte. Se tudo der certo, os primeiros quatro astronautas podem chegar por lá já em 2025. A ideia é que vivam definitivamente no planeta vizinho, porque a Mars One não planeja uma viagem de volta. O motivo é técnico: uma viagem apenas de ida não exige a construção de uma estrutura que lance o veículo espacial de volta para a Terra. “O não-retorno reduz a infraestrutura radicalmente. Veículos que sejam capazes de decolar de Marte estão atualmente indisponíveis, e usar tecnologias que ainda não foram testadas gera custos muito grandes”, diz Norbert Kraft, médico-chefe do programa. Para fazer a escolha dos astronautas entre as mais de 200 mil pessoas que se inscreveram na primeira etapa, a Mars One vai transformar o processo seletivo em um reality show produzido pela Endemol, a criadora do Big Brother, e transmiti-lo pela TV. É o público que vai decidir quem vai conhecer o planeta vermelho – e morrer lá. Parece maluco, mas o plano já está começando a sair do papel.

Ficção ou realidade?

O projeto, que tem um quê de ficção científica distópica, é criação do engenheiro holandês Bas Lansdorp. O CEO do Mars One decidiu fundar a empresa em 2011 depois de se espantar com a publicidade gerada com os Jogos Olímpicos de Londres, de 2012. “O Comitê Olímpico Internacional arrecadou mais de US$ 4 bilhões em direitos de transmissão e patrocínios. Pensei que uma missão a Marte poderia arrecadar muito mais, o que facilmente cobriria o custo de cerca de US$ 6 bilhões do projeto.” Este é o valor estimado da viagem e de toda a tecnologia necessária para os quatro pioneiros viverem no planeta vizinho sem data de volta. Lansdorp, que antes era proprietário de uma empresa de energia eólica, criou a Mars One como uma fundação privada, e quer se manter distante de envolvimentos políticos ou apoios governamentais, ao contrário das agências espaciais tradicionais. Ele pretende pagar os custos da missão com patrocínios, publicidade, venda de direitos de transmissão para a TV, financiamento coletivo e, em menor escala, venda de artigos como camisetas, blusões e canecas no site do projeto. Muitas canecas.

Mas Lansdorp anda fazendo a lição de casa. A Mars One já assinou contratos com os mesmos fornecedores de tecnologias espaciais da NASA, como a Lockheed Martin, fabricante de artigos aeroespaciais, e a Space X, que constrói as naves que transportam astronautas para a Estação Espacial Internacional (ISS). Marte foi o planeta escolhido para ser o palco do reality show porque é o mais habitável do sistema solar: possui água para ser extraída do solo, tem luz do Sol o bastante para permitir a construção de painéis solares, a gravidade é 38% da existente na Terra, o que se acredita ser suficiente para o corpo humano se adaptar, e tem uma atmosfera que oferece alguma proteção contra radiações solares e cósmicas. Os dias têm quase a mesma duração que na Terra, 24 horas e 39 minutos, e a temperatura é, pelo menos no papel, tolerável para humanos bem equipados: -60 ºC, em média. Na teoria, parece tudo certo.

Na teoria.

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Na prática, ir para Marte não é nenhum passeio no parque. As dificuldades começam já na viagem, que pode durar até oito meses. Durante esse período, a exposição à radiação e a tempestades solares – causadores de câncer – será constante. Para evitar o contato, os passageiros terão de se esconder em cápsulas especiais da aeronave. Mesmo sem radiação, o aperto vai ser rotina no caminho de ida: cada astronauta terá menos de 20 m3 para viver, e os quatro passageiros vão ter de racionar 800 kg de comida, 3 mil litros de água e 700 kg de oxigênio. Tanto tempo expostos à gravidade zero no espaço e depois à baixa gravidade em Marte também pode trazer efeitos colaterais desconhecidos para a massa muscular, a densidade óssea e a visão.

Mas os desafios serão ainda maiores quando eles chegarem lá. Uma vez em Marte, os intrépidos colonizadores serão responsáveis por produzir o oxigênio que irão consumir (a partir da água que existe no planeta em forma de gelo) e todos os alimentos que vão ingerir até o fim de seus dias (a partir de plantações hidropônicas, uma vez que o solo marciano não serve para plantações).

A ideia é que eles não precisem construir todas as instalações quando chegarem lá. O cronograma determina que, a partir do ano 2018, diversas missões não tripuladas a Marte levem – e montem – os componentes que vão formar os novos lares dos astronautas. Isso mesmo. De dois em dois anos, quando as órbitas dos planetas estiverem mais próximas, naves levarão robôs e sondas motorizadas que vão escolher a localização mais propícia para montar os módulos de habitação (perto de água e luz, e com um relevo plano), instalar painéis solares para produzir energia, conectar por meio de tubos as unidades nas quais os astronautas vão morar e deixar tudo pronto para a chegada dos humanos. O gelo vai ser extraído do solo marciano e aquecido para virar água; e parte da substância vai ser usada para a produção de oxigênio. O nitrogênio e o argônio, gases que junto com o oxigênio formam o ar respirável, serão retirados da atmosfera e lançados no interior dos habitats. A ideia é que, antes mesmo de o grupo inicial começar sua jornada, o sistema de suporte à vida já tenha produzido e armazenado uma atmosfera respirável, 3 mil litros de água e 120 kg de oxigênio.

O plano parece difícil de ser executado, mas a própria NASA deve lançar em 2020 uma sonda ao planeta vermelho com a missão justamente de produzir oxigênio por lá a partir de dióxido de carbono. “Queremos usar os recursos de Marte para produzir oxigênio para a respiração humana e, potencialmente, para a produção de combustível de foguetes”, diz Rachel Kraft, porta-voz da agência espacial. Ainda assim, o plano da Mars One é mais ambicioso – e mais urgente. “Eu não acredito no êxito dessa missão sem volta, pelo curto prazo estipulado. Se dissessem que iriam começar o projeto em 2030, teria tudo para dar certo, mas está muito em cima. Lá não haverá apoio, não tem hospital em Marte. Provavelmente, eles vão morrer em menos de dez anos”, diz o astronauta brasileiro Marcos Pontes. A NASA também preferiu não comentar os planos ambiciosos da Mars One.

BBB Marte

Apesar de todos os riscos, não faltam pessoas dispostas a arriscar a vida para conhecer nosso vizinho no sistema solar. 202.586 pessoas se inscreveram. E os 705 candidatos que passaram para a segunda fase precisam agora apresentar um atestado médico que confirme suas boas condições de saúde: devem estar livres de qualquer doença ou dependência química, ter visão 100% nos dois olhos, não apresentar transtornos psiquiátricos, ter pressão baixa e medir entre 1,57 e 1,90 m. Se passarem pelo teste, serão entrevistados por um comitê de seleção, o que servirá de material para o reality show, transmitido pela TV no começo de 2015. A partir da terceira fase de seleção, o público vai decidir quem poderá, enfim, ir a Marte.

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A escolha do grupo é estratégica. Ao menos dois deles precisam ter conhecimentos médicos, e uma pessoa vai ter de analisar a geologia e a eventual biologia do planeta vermelho. Todos terão conhecimentos de fisioterapia, psicologia e eletrônica. Para isso, os 24 candidatos escolhidos na última seletiva receberão treinamento por oito anos seguidos. “Eles ficarão isolados do mundo por alguns meses a cada dois anos, divididos em grupos de quatro, para aprender a viver juntos enquanto estiverem isolados”, diz Norbert Kraft. A primeira equipe a ir para Marte será selecionada por seus conhecimentos e habilidades individuais, assim como capacidade de trabalhar em conjunto.

Manoel Belem, empresário paulista e físico de formação, é um dos 15 brasileiros selecionados para a segunda fase. Se aprovado, terá cerca de 70 anos quando desembarcar em Marte, o que faz com que a ideia de passar o resto da vida por lá não pareça tão assustadora. Belem diz não sentir medo da aventura – acredita que corre mais riscos por aqui, “em meio a tanta violência e má alimentação”. Para ele, a expectativa de se afastar da vida terrena só o anima: “Terei chance de ver a Terra do espaço e refletir: `agora esses caras devem estar no maior engarrafamento¿ e `puxa, eles precisam pagar IPTU¿”, diz. São os problemas de cá que também estimulam a professora de Porto Velho Sandra Maria Feliciano a querer ir para lá. Ela acredita que, com a escassez de recursos naturais, seja necessário colonizar outros planetas para que a humanidade possa continuar a existir. Por isso, não tem medo de deixar a família para trás: “vou ser muito sortuda de poder realizar o maior sonho da humanidade, e levar o homem para o lugar onde ele deve estar: entre as estrelas.”
Outra brasileira convocada para a segunda fase da Mars One é a catarinense Priscila Hamad. Ela se inscreveu juntamente com o namorado, Felipe Fruit, engenheiro eletricista, mas foi selecionada sozinha para a próxima etapa. Para se consolar, a bancária prefere acreditar que, até o lançamento da primeira nave, a ciência esteja tão avançada que torne viáveis viagens de ida e volta do planeta. “Não que eu pense em voltar, mas quem sabe poderei receber visitas?”, diz. Felipe, por sua vez, não sabe o que pode acontecer com o relacionamento depois da partida de Priscila, mas não hesita diante do desafio. “O que sentimos um pelo outro é muito maior do que a distância.” Distância, no caso, nada desprezível: são 50 milhões de quilômetros que separam a Terra de Marte. Vai ser um amor além da vida.

Passos para Marte

Entenda o projeto

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2011

Bas Lansdorp e Arno Wielders fundam a Mars One e negociam com potenciais fornecedores de componentes aeroespaciais. Também calculam o cronograma de acordo com as tecnologias existentes: os primeiros humanos desembarcam por lá em 2025.

22 de abril de 2013

É lançado o programa de seleção de astronautas. Foram 202.586 inscritos em todo o mundo.

2014 e 2015

Segunda, terceira e quarta rodadas de seleção, transmitidas pela internet. O público vai ajudar a decidir quem vai para o espaço.

2016

Início do treinamento dos selecionados, que vai até 2024. A habilidade do grupo em lidar com períodos prolongados de isolamento será a parte mais importante. Os selecionados vão aprender a consertar componentes de suas moradias e das sondas, a realizar procedimentos médicos e a cultivar sua própria comida.

2018

Uma missão de demonstração e um satélite de comunicação aterrissam no planeta. O satélite ficará na órbita marciana, facilitando a comunicação entre os planetas. Isso possibilitará a transmissão de imagens e vídeos.

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2020

Lançamento de uma sonda que vai escolher o lugar do assentamento. Envio de um segundo satélite em torno do Sol, que permitirá a comunicação com Marte mesmo quando o Sol estiver entre os dois planetas.

2022

Lançamento das unidades de moradia e de apoio, além de mais suprimentos.

2024

Partida da tripulação. O assentamento já deverá estar em pleno funcionamento e habitável. Eles voarão para Marte em um habitat móvel, com uma nave de pouso acoplada.

2025
Chegada do grupo pioneiro.

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