Isso que é viagem
A Odisséia, de Homero (será mesmo?), narra as incríveis peripécias do herói grego Ulisses, que empreendeu uma jornada de 20 anos até retornar aos braços de sua amada, Penélope.
Carla Aranha
As ondas altíssimas agitam a frágil jangada de um lado para outro, ameaçando destruí-la de vez. O fim parece mais próximo do que nunca. “Vou morrer sem sepultura, sem uma pedra sequer”, lamenta-se o triste Ulisses. Nesse momento, Posêidon, o deus do mar, confirma os piores presságios do herói, jogando sobre seu barco uma onda tão grande que Ulisses é tragado para o fundo do mar. É então que a deusa Leucotéia lhe estende a mão, salvando o herói. Ela o leva até a terra dos feácios, onde habita um povo bom. Ulisses é recebido no palácio do rei, Alcínoo, que se interessa pela incrível história do herói, que passou os últimos 20 anos afastado de seu lar. Ulisses começa a lhe contar as peripécias que viveu até chegar ali. Quando acaba seu relato, Alcínoo fica tão fascinado que decide ajudá-lo a voltar para casa. Ulisses terá barcos e homens para retornar à Ilha de Ítaca. Finalmente, poderá reocupar seu lugar no trono. Irá rever também sua mulher, Penélope, e seu filho, Telêmaco. Mais do que ninguém, Ulisses merecia que sua história tivesse um final feliz. Afinal, para terminar seus dias reinando em Ítaca, ao lado de Penélope, ele enfrentara um gigante de um olho só, quase fora transformado em porco e resistira ao encanto mortal das sereias. Também escapara da fúria dos deuses várias vezes.
Não é de se estranhar que uma aventura de tal calibre seja até hoje um dos ícones da cultura ocidental. Escrita provavelmente no século 8º a.C., com autoria atribuída ao grego Homero (veja quadro na pág. 37), a Odisséia é um poema épico com 24 cantos e mais de 12 mil versos. Ele reúne temas de uma época em que os gregos começavam a explorar novas terras, que se apresentavam repletas de mistério – daí a presença de monstros e outros seres fabulosos. O relato da história de Ulisses forma, junto com a Ilíada, poema que narra a Guerra de Tróia, o início da ficção no Ocidente. “É por isso que hoje, 28 séculos depois, as duas narrativas ainda prendem a atenção de acadêmicos e leitores em meio mundo”, diz o historiador André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Mais importante ainda, na Odisséia estão os fundamentos da noção do que é ser um ocidental. Ali, pela primeira vez, nossa cultura é retratada como sendo algo de belo, inteligente, astuto, em detrimento do Oriente, do ‘outro’, que é o bruto, o perdedor, aquele que é diferente de nós.”
A Odisséia está cheia de episódios que reforçam essa tese. Talvez um dos mais emblemáticos seja a luta de Ulisses com um ciclope (gigante de um olho só), diz outra especialista no tema, a historiadora francesa Claude Mossé, autora de Dicionário da Civilização Grega. “Aqui fica mais clara a diferença estabelecida entre o que é bom, inteligente, e a brutalidade, a força da natureza”, afirma.
A volta para casa
Na Odisséia, a Guerra de Tróia já havia terminado, e Ulisses, que lutara do lado dos gregos, só desejava voltar para casa. Em uma de suas primeiras aventuras, ele encontra os ciclopes, que vivem isolados em uma ilha. Com alguns companheiros, ele decide dar uma espiada na caverna onde viviam os gigantes. Na gruta, o grupo topa com Polifemo, o líder dos monstros. A reação do gigante não poderia ser pior. Ele devora dois colegas de Ulisses. A única coisa a fazer é fugir. Mas como, se Polifemo havia fechado a caverna com uma pedra? O jeito, pensa Ulisses, era embebedá-lo com um vinho que eles haviam levado. A estratégia funciona. Com o gigante dormindo bêbado no chão, o grego consegue furar seu único olho. Desesperado, Polifemo sai correndo da caverna. “A inteligência venceu a brutalidade”, comenta Claude Mossé.
Enquanto isso, em Ítaca, todos dão Ulisses como morto. Afinal, a Guerra de Tróia terminou faz 20 anos e ele ainda não voltou para casa. A bela Penélope chora por seu marido, enquanto é assediada por dezenas de pretendentes, que a pressionam para que ela eleja um deles como seu novo marido. Penélope diz que só fará sua escolha quando terminar de tecer um longo manto – que ela borda de dia e desfaz à noite. Seu filho, Telêmaco, de 20 anos, ainda não se sente capaz de expulsar a corja que come e bebe no palácio e dilapida os bens de sua família.
Por fim, Telêmaco decide partir para descobrir se seu pai está vivo ou morto. Atena, a deusa protetora de Ulisses, acompanha Telêmaco. O rapaz vai para Esparta, onde moram Menelau e sua esposa, Helena – a mesma que havia provocado a Guerra de Tróia ao se apaixonar por Páris, o príncipe de Tróia. Menelau, que ficara profundamente agradecido a Ulisses pela ajuda durante a batalha, conta tudo o que sabe ao filho do herói. Um adivinho havia lhe revelado que seu amigo estava preso na ilha da deusa Calipso. Era verdade. O que ele não sabe é que Ulisses escapara da prisão, graças à interferência dos deuses, que ordenaram que Calipso o soltasse.
Nesse momento, Ulisses já contava ao rei Alcínoo toda sua aventura. Uma das que mais impressionam o rei é a que se passou no país dos lestrigões, onde Ulisses e seus companheiros foram parar depois de navegar seis dias a esmo. Para o azar deles, o local era habitado por gigantes. O próprio rei, Anfitates, assim que viu os forasteiros, abriu sua enorme boca e engoliu de uma só vez três dos colegas de Ulisses. Os demais saíram correndo, apavorados. Milhares de gigantes os perseguiram até o porto, onde estavam atracados os navios gregos, e lançaram enormes pedras sobre as embarcações. Restou somente a nau de Ulisses.
“Com os corações dilacerados pela grande catástrofe, viajamos rumo ao desconhecido, até que um dia chegamos à ilha em que morava a feiticeira Circe”, relata Ulisses. Circe tinha especial prazer em preparar poções mágicas que transformavam seres humanos em porcos. Sem saber disso, alguns companheiros do herói caíram na lábia de Circe e tomaram a mistura de creme de queijo, mel, farinha, vinho e ervas mágicas. Só um deles, que não havia entrado na casa, conseguiu escapar. Ele contou tudo a Ulisses, que decidiu então lutar sozinho contra a feiticeira. Os deuses estavam a favor do herói, e Hermes, o mensageiro divino, ofereceu-lhe uma erva que anulou o efeito da poção mágica. Ulisses ficou imune ao veneno de Circe, e até se tornou seu amigo. A bruxa passou a admirá-lo, e o herói acabou ficando ali durante um ano, até que decidiu retomar sua jornada.
O canto das sereias
A frota de Ulisses partiu e, no caminho, conforme Circe havia advertido, deparou com as belas sereias, que tinham fama de atrair os homens até o fundo do mar com seu canto capaz de provocar paixões súbitas. Mas, desse amor, ninguém sobrevivia. Ciente do perigo, o guerreiro distribuíra pequenos pedaços de cera para seus homens taparem os ouvidos, e pedira para ser amarrado no mastro do navio. Só o herói pôde ouvir o canto das sereias – mas com alguma garantia de que não se jogaria ao mar. Ulisses venceu assim mais uma etapa de sua aventura.
Ele conta a Alcínoo que ainda teve de contornar a fúria do deus Hélio, que simboliza o Sol. Depois de outros tantos dias navegando, Ulisses e seus homens chegaram à ilha de Trinácia, onde Hélio conservava um rebanho de 50 bois, seu maior bem. Ulisses avisou que ninguém podia tocar nos animais, sob pena de sofrer com a ira dos deuses. Mas, famintos, seus companheiros mataram e comeram vários bois. Não deu outra: assim que voltaram para o mar, enfrentaram uma violenta tempestade. Todos os navios, exceto o de Ulisses, afundaram. Somente Ulisses, que não havia tocado nos bois, sobreviveu ao naufrágio.
É o fim do relato do herói. Fascinado com a narrativa de Ulisses, e de seu respeito aos deuses, Alcínoo fornece-lhe navios. O herói pode então voltar são e salvo a Ítaca. Chegando lá, Atena vai a seu encontro, alertando-o que os pretendentes de Penélope querem matá-lo. Há anos a esposa do herói tenta ludibriar esses homens, dizendo que só escolheria seu novo marido quando acabasse de tecer seu interminável manto. Ulisses precisa encontrar uma forma de enganar seus concorrentes e acabar com eles. Para isso, Atena transformou-o num velho maltrapilho. O único a quem revela sua verdadeira identidade é Telêmaco. Eles se abraçam, emocionados. Disfarçado de mendigo, Ulisses entra no palácio, pega seu arco e flecha e mira o líder dos pretendentes. A flecha atinge-lhe o pescoço e ele morre na hora. Em seguida, pai e filho matam o restante dos homens.
Escondida em seu quarto, Penélope ignora tudo o que se passava. Ulisses toma banho, passa óleos no corpo, veste uma bela túnica e vai ao encontro da esposa. Atena faz com que ele pareça mais jovem, e Penélope não o reconhece de imediato. Mas logo depois eles caem nos braços um do outro, chorando de alegria. A paz é restaurada e Ulisses volta a reinar em Ítaca. Não poderia haver um final mais feliz para esse herói, cuja história retrata, como poucas outras, o espírito de aventura e a grandiosidade da civilização grega de seu tempo.
Para saber mais
LIVROS
A Odisséia, Menelaos Stephanides, Odysseus Editora, 2004
O autor grego reconta a Odisséia em uma linguagem adaptada para os dias de hoje, mas sem abrir mão de seu rico conteúdo.
Dicionário da Civilização Grega, Claude Mossé, Jorge Zahar Editor, 2004
A historiadora francesa traça um panorama completo da vida cultural, religiosa, econômica e política da Grécia entre os séculos 8º e 4º a.C. É uma obra de referência.
Um mistério de 28 séculos
A cidade de Tróia realmente existiu. Já a guerra contra os gregos…
Cerca de 2 800 anos depois de ter sido escrita, a obra de Homero ainda desperta paixões e provoca controvérsias. De um lado, está grande parte dos historiadores, que insistem que a Guerra de Tróia jamais ocorreu. De outro, arqueólogos que continuam fazendo expedições ao sítio arqueológico de Tróia, localizado no norte da atual Turquia. A discussão ganhou força em 1870, quando o magnata alemão Heinrich Schliemann, apaixonado pelas histórias da Ilíada e da Odisséia, decidiu investigar se a cidade de Tróia realmente existiu. Seguindo as pistas fornecidas por Homero, o empresário conseguiu localizar as ruínas de uma cidade que parecia bater com as descrições geográficas do poeta helênico. “O problema é que ninguém levou Schliemann muito a sério”, diz o arqueólogo Ernst Pernicka, da Universidade de Tübingen, na Alemanha. Hoje, sabe-se que a cidade descoberta por Schliemann era mesmo Tróia. Além disso, os especialistas dão como certo que Tróia foi destruída entre os séculos 12 e 13 a.C, quando se passa a história narrada na Ilíada. Indícios desse período, como corpos insepultos e armas guardadas sem uso, apontam que a cidade acabou antes que seus cidadãos pudessem se defender. Mas ninguém sabe exatamente o que aconteceu a Tróia. “Pode ter havido um terremoto ou um conflito armado”, diz Pernicka. Na visão dos historiadores, Homero provavelmente se baseou em uma guerra qualquer que pode ter acontecido em Tróia, e da qual ele e os gregos da época tinham conhecimento. “Mas daí a falar que a Guerra de Tróia é um fato histórico é uma grande bobagem”, afirma o historiador André Chevitarese, da UFRJ. “Tanto a Ilíada como a Odisséia são obras de ficção.” Há dúvidas, inclusive, se o próprio Homero realmente existiu e se foi ele quem escreveu a Ilíada e a Odisséia. Qualquer que seja a verdade, todo o mistério contribui para tornar os dois poemas épicos ainda mais fascinantes.