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Lamarck: o que ele realmente fez pela biologia (muito além da girafa)

Os livros didáticos lembram dele como o cara que errou onde Darwin acertou. Mas Lamarck criou a palavra “biologia”, carregou nas costas o estudo dos invertebrados e publicou a primeira teoria da evolução que contrariava a Bíblia.

Por Bruno Vaiano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
18 jan 2024, 14h00

texto: Bruno Vaiano | edição: Alexandre Versignassi
design: Caroline Aranha | ilustrador: Leandro Lassmar

Nenhum estudante, brasileiro ou gringo, se esquece daquela aula de biologia sobre o pescoço da girafa. Em linhas gerais, a história vai assim: originalmente, o bicho tinha um pescoço normal, como um camelo ou lhama. Mas havia um montão de árvores altas com folhas suculentas, que dariam uma ótima refeição. Como alcançá-las?

No século 19, havia duas hipóteses. De acordo com um naturalista francês chamado Jean-Baptiste Lamarck, conforme a girafa se estica, de novo e de novo, seu pescoço cresce alguns centímetros. É a lei do uso e desuso em ação: quanto mais um ser vivo usa um órgão ou membro, mais ele se fortalece. 

Então, esse pescoço ligeiramente maior se transmite à prole quando o bicho se reproduz. Eis o segundo mecanismo: a herança de uma característica adquirida ao longo da vida. Assim, de geração em geração, os bebês girafa foram nascendo cada vez mais pescoçudos, até a espécie alcançar a aparência atual. 

A segunda hipótese era a do britânico Charles Darwin, que nasceu décadas depois de Lamarck e atribuía o crescimento do pescoço ao mecanismo que conhecemos como seleção natural. De acordo com Darwin, os bebês girafa nasciam naturalmente com pescoços de tamanho variado (do mesmo jeito que algumas pessoas nascem com 1,50 m e outras pessoas, com 2 m). A vida é assim: não existem duas crianças iguais.  

As girafas com pescoço maior conseguem se alimentar melhor em tempos de escassez. Eles sobrevivem e têm mais filhotes, que nascem pescoçudos em virtude do fato de que seus pais já haviam nascido pescoçudos também. Darwin concluiu que não é possível herdar características adquiridas: não importa o quanto você estique o pescoço, seu filho não nascerá pescoçudo. Só mutações aleatórias podem gerar variabilidade em uma população. E isso, sabemos hoje, é verdade. A seleção natural é um fato.

O livro didático conclui, então, que Darwin estava certo e era um bom cientista, cauteloso e cioso das evidências, enquanto Lamarck era um pensador de poltrona descuidado, famoso por hipóteses erradas. Um estudo publicado em 2010 analisou 20 livros didáticos de biologia usados no Brasil entre 1940 e 2006. 13 deles, o equivalente a 65% da amostra, usam a história da girafa para explicar a lei do uso e desuso de Lamarck. Oito obras (40% do total) usam até uma ilustração da pescoçuda. 

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O problema: histór aia da girafa é um grande mal-entendido. Primeiro, porque Lamarck não criou as leis do uso e desuso e da herança dos caracteres adquiridos. Embora ele considerasse essas hipóteses corretas – e tenha dedicado o capítulo 7 de seu livro Filosofia Zoológica a elas —, nenhuma das duas era central para sua ideia de como ocorria a evolução das espécies (motivo pelo qual é impreciso chamá-las de “lamarckismo”).

Em segundo lugar, porque Lamarck jamais deu toda essa atenção ao pescoço da girafa – tudo que ele escreveu sobre o animal ocupa apenas um parágrafo do tal capítulo 7. Resumir a obra do francês a esse exemplo de uso e desuso é como dizer que o ápice da carreira do Maradona foi seu tempo como técnico da seleção argentina. 

Em terceiro lugar, há o fato de que Darwin não considerava a seleção natural o único mecanismo capaz de adaptar uma espécie a seu habitat. Ele também acreditava na lei do uso e desuso – aplicada às girafas, inclusive. Na sexta edição de A Origem das Espécies, o barbudo escreve: “(…) É quase certo que uma espécie capaz de alcançar mais alto teria o pescoço alongado para esse propósito, graças à seleção natural e aos efeitos do uso intensificado”. 

O próprio Darwin, portanto, era um lamarckista. E não há paradoxo nisso: considerando os conhecimentos de genética em 1850 – nenhum, essencialmente –, a hipótese do uso e desuso era razoável. Foi só a partir do século 20 que se tornou possível descartá-la com segurança. Vamos, então, desfazer o enrosco entre Darwin e Lamarck. E entender qual foi a real contribuição do francês para a maneira como os biólogos de hoje compreendem a evolução das espécies. 

Ilustração mostrando o Lamarck catalogando plantas no Jardim do Rei.
(Leandro Lassmar/Superinteressante)
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O que é evolução

 

Em 1677, o naturalista britânico Robert Plot – diretor do Museu Ashmolean, em Oxford –, publicou o esboço de uma descoberta recente: um fóssil da extremidade inferior do fêmur de um dinossauro. Ele só não sabia, claro, o que eram dinossauros.

Primeiro, Plot pensou se tratar de um osso de elefante – especulou que o animal teria desembarcado na Grã-Bretanha na Antiguidade, com a legião romana que subjugou os celtas. Depois, concluiu que era parte da perna de um gigante bíblico. Só no século 19, em 1824, que o naco foi corretamente reconhecido como parte de um réptil extinto.

Na época de Plot, o consenso científico na Europa era de que a Bíblia estava correta. Deus havia criado o mundo em sete dias, com todas as espécies já em seus devidos lugares. Girafas, elefantes e hipopótamos sempre haviam sido da maneira como são – não fazia sentido pensar em animais do passado que não existissem mais, como dinossauros. Em 1650, o arcebispo irlandês James Ussher calculou com rigor acadêmico que as primeiras linhas do Gênesis se passavam em 23 de outubro de 4004 a.C.

Hoje, chamamos de “evolucionistas” os pensadores que discordavam dessa ideia e afirmavam que as espécies mudavam com o passar do tempo (na época, porém, a palavra “evolução” não era usada neste contexto; “transmutação” ou “progressão” eram mais comuns).

Os primeiros evolucionistas não propuseram hipóteses redondas e bem-acabadas como Lamarck e Darwin fariam depois. Discutir seleção natural ou heranças adquiridas era um passo além. Especular que a evolução acontecia, por si só, já era revolucionário e herético. 

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Um dos pioneiros foi o francês Georges Louis Leclerc, conde de Buffon, que viveu no século 18. “Ele oscila entre a fixidez e a transformação das espécies ao longo de sua obra”, explica a historiadora da ciência Lilian Al-Chueyr Pereira, professora da USP de Ribeirão Preto (SP). “Para ele, dependendo das condições a que as espécies estivessem expostas – clima, alimentação etc. – elas podiam se modificar dentro de certos limites”. 

Outro evolucionista das antigas foi Erasmus Darwin – avô do Darwin que conhecemos. Ele escreveu um parágrafo muito citado em que defende que todos os seres vivos são modificações geradas a partir de um único ancestral:

“Meditando assim sobre a grande semelhança da estrutura dos animais de sangue quente (…) seria muito ousado imaginar que, no longo período de tempo, desde que a Terra começou a existir, talvez milhões de anos… que todos os animais de sangue quente surgiram de um filamento vivo (…) possuindo a faculdade de continuar a melhorar através de sua própria atividade inerente, e de transmitir essas melhorias por geração à sua posteridade?” 

No vocabulário de naturalistas dos séculos 18 e 19, é comum encontrar palavras como “melhoria” ou “degeneração” – como se existissem espécies mais ou menos evoluídas. Hoje, porém, sabemos que isso não existe: o que vale é a adequação de cada ser vivo ao ambiente circundante.

Se uma bactéria sobrevive a um certo ambiente tóxico para nós, é porque ela está mais bem adaptada àquele habitat, ainda que seja mais simples que um ser humano. O que vale é o contexto. A palavra “evolução” diz respeito ao fato de que há mudança, mas não faz juízo de valor sobre a direção em que a mudança ocorre.

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Ilustração do Lamarck estudando espécies invertebradas no Museu Nacional de História Natural.
(Leandro Lassmar/Superinteressante)

A vida de Lamarck

 

Para os padrões da França pré-revolucionária, Jean-Baptiste de Lamarck até que era alguém na fila do pão. Ele nasceu em 1744, 65 anos antes de Darwin. Foi apadrinhado pelo conde de Buffon, pertencia a um estrato mais baixo da nobreza do país (sua família era aristocrática, mas não propriamente rica) e tinha um cargo assalariado como “botânico e mantenedor do Jardim do Rei”. Ele também havia publicado um livro razoavelmente popular, Flora francesa (1778). Era um manual de identificação de plantas escrito em francês, em vez de latim (a língua científica de então), para não afugentar os leigos. 

Veio a Revolução Francesa, a cabeça de Luís XVI rolou e Lamarck, junto da coleção de que cuidava, acabou incorporado ao Museu Nacional de História Natural (nada de “Jardim do Rei”: qualquer menção à nobreza se tornou malvista).

Ele não conseguiu uma vaga para trabalhar com plantas e acabou designado para um cargo de prestígio bem menor: especialista em insetos, lesmas e animais microscópicos. Ali, Lamarck cunhou o termo “invertebrado”, e também inventou uma outra palavra que usamos até hoje: “biologia”. 

Por volta de 1800, após pôr uma ordem necessária na classificação caótica dos invertebrados – e organizar gavetas e mais gavetas de moluscos fósseis no Museu –, Lamarck havia se tornado íntimo de um lado negligenciado da biologia, e encontrado muitos motivos para questionar a crença de que as espécies eram fixas.

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Era inegável que certas conchas do presente pareciam derivar de conchas do passado; que alguns seres vivos são tão pequenos e simples que não parecem exigir um milagre divino para surgir. Nessa época, ele delineou sua teoria de evolução, publicada no livro Filosofia Zoológica, de 1809. Foi a primeira tentativa de explicar sistematicamente a biodiversidade da Terra sem apelar para a religião. 

“Lamarck argumentou que a vida é gerada contínua e espontaneamente de uma forma muito simples, subindo então uma escada de complexidade, motivada por uma força que tenta incessantemente complicar a organização”, escreve o biólogo Stephen Jay Gould. “Mas a vida não pode ser organizada como uma escada, pois o caminho é muitas vezes desviado por requisitos de ambientes locais: assim, as girafas adquiriram pescoços longos (…) e os peixes abissais perderam os olhos.” 

Ou seja: para Lamarck, havia seres simples como bactérias brotando do nada o tempo todo, e o principal motor da evolução era uma tendência natural ao aumento na complexidade desses seres – tendência que vinha sabe-se lá de onde. As adaptações específicas das espécies a cada habitat, adquiridas pela lei do uso e desuso, seriam só detalhes pontuais na árvore da vida.

Claro que essa ideia está mal explicada para os parâmetros da ciência atual, e não é mais aceita. Que força é essa? Por que os seres vivos tenderiam à complexidade se, às vezes, a simplicidade é a solução adequada para um habitat? A biologia chegou ao século 21 ciente de que os seres vivos não tendem necessariamente a uma complexidade cada vez maior, e  de que as adaptações de uma espécie ao meio são obra da seleção natural. 

Mas o importante aqui é sacar duas coisas. A primeira já citamos lá no começo do texto: as leis do uso e desuso e dos caracteres adquiridos não eram centrais para Lamarck, tampouco foram criação sua (variações dessa ideia existem, de uma forma ou de outra, desde a Antiguidade).

A segunda é que a ideia de Lamarck foi um avanço tremendo em relação ao consenso da época, que era a Bíblia. Para começo de conversa, ele aceitou que a evolução existe, que ela é gradual e que a Terra é mais antiga do que os criacionistas acreditavam. Se hoje isso soa óbvio, na época era motivo de ridículo. Ele morreu pobre e humilhado pelo mainstream acadêmico, sem conseguir vender livros. Sua família precisou leiloar seus bens para enterrá-lo. 

Lamarck também estava à frente de seu tempo em suas especulações sobre o início da vida. “No começo da carreira, ele acreditava que a vida não podia ser explicada dentro dos fenômenos físicos naturais”, explica Lilian Martins. “Depois, ele muda de ideia e propõe uma explicação a partir das forças que eram conhecidas pela física na época. Explica que nem sempre existiu vida na Terra, que os primeiros seres se formaram na água ou em lugares úmidos.”

Essa foi uma das primeiras propostas de origem físico-química para os seres vivos. Nada de sopro divino (Lamarck até acreditava em Deus, mas o considerava apenas criador do Universo. Uma vez que o cosmos estivesse criado, o jogo rolava sem interferência). 

O francês foi além e imaginou, de início, que todos os animais descendiam de um ancestral comum, uma espécie de micróbio que denominou Monada terma – o mesmo valia para os vegetais, que viriam de uma certa Mucor viriscidensis. Eis outro chute razoável: sabe-se hoje que tanto os animais como as plantas se ramificaram a partir de ancestrais microscópicos únicos.

O que Lamarck não imaginava é que, antes deles, houve um ancestral mais antigo ainda, comum a toda vida na Terra. Para ele, animais e plantas formavam linhagens absolutamente separadas (um palpite compreensível considerando o quanto somos diferentes de arbustos). 

O que leva à pergunta: diante de tantas sacadas importantes, por que Lamarck perdeu sua estrela no calçadão da fama da ciência – e hoje, é assombrado por um animal ao qual nunca dedicou atenção?

Ilustração de uma girafa atrapalhando os estudos de Lamarck.
(Leandro Lassmar/Superinteressante)

Por que a girafa?

 

Darwin leu o livro Filosofia Zoológica de Lamarck e ficou com o exemplo da girafa na cabeça. Na terceira edição da Origem das Espécies, o inglês escreve o seguinte: “Com respeito aos meios de modificação, Lamarck concedeu (…) muito ao uso e desuso, ou seja, aos efeitos do hábito. Ao agenciamento deste ele parece atribuir todas as belas adaptações encontradas na natureza, como o longo pescoço das girafas, que serviria para perscrutar as copas das árvores”. 

Fica claro que Darwin deu uma atenção exagerada ao uso e desuso. Mas, justiça seja feita, Darwin também menciona que Lamarck “acredita em uma lei de desenvolvimento progressivo”. E admite que ele foi um pioneiro em propor uma explicação não religiosa para a vida na Terra: “Cabe-lhe o mérito eminente de ter chamado a atenção para a probabilidade de que todas as mudanças (…) são resultado de leis, e não de interposições miraculosas”. 

O fantasma da girafa volta na sexta edição da Origem das Espécies – de onde saiu o trecho citado no início da matéria, em que Darwin aceita o uso e o desuso como parte da explicação para o pescoço do bicho. O assunto reaparece porque Darwin está rebatendo críticas à sua obra feitas por um outro naturalista, chamado Georges Mivart, que também havia usado a girafa como exemplo para refutar a seleção natural. 

Isso mostra que a cisma com a girafa tem mais de cem anos. E a maneira como ela é usada nos livros didáticos hoje – explicando Darwin e Lamarck como concorrentes, e não como colegas – reflete uma tendência mais ampla (e perigosa) no ensino: “Isso parte da consulta de obras sobre história da ciência de um determinado período em que se usava muito esse tipo de narrativa: os grandes heróis, que acertavam, e os que faziam tudo errado, os perdedores”, diz Lilian.

“Na verdade, o empreendimento científico é resultado de um trabalho coletivo. É claro que alguns indivíduos se destacam e não podemos negar o seu papel, mas eles partem de alguma coisa. Não tiram as ideias deles do nada.”  

Hoje, muita gente sai do colégio com a impressão de que Darwin criou a teoria da evolução sozinho. Não é bem isso. As evidências que ele coletou convenceram a comunidade científica de que as espécies mudavam com o tempo, só que o naturalista britânico não foi o primeiro a dizer que isso acontecia. Darwin sacou qual era o mecanismo que fazia a evolução funcionar, mas não foi o primeiro evolucionista. Sua ousadia só foi possível porque ousados como Lamarck abriram caminho.  

Os biólogos de hoje não fazem suas pesquisas em cima da teoria darwiniana em estado puro (caso contrário, note, ainda estaríamos considerando a lei do uso e desuso uma possibilidade séria). Eles trabalham com um conjunto de conhecimentos chamado de síntese moderna, que se estabeleceu por volta da década de 1930. 

A tal síntese inclui a seleção natural de Darwin e coisas que foram descobertas depois, como a mecânica de genes recessivos e dominantes e a deriva genética, um tipo de variação aleatória nas características de uma população que não é gerada pela seleção natural. E claro: considera muita coisa que Lamarck já defendia, como o fato de que a evolução é lenta e gradual e de que existiram ancestrais comuns a todos os animais e plantas. 

A biologia atual é resultado de décadas de experimentos e observações para confirmar e refutar hipóteses sobre a natureza – e nosso nobre francês foi um tijolinho importante para a construção disso tudo. Portanto, já passou da hora de parar com o bullying da girafa. Se o próprio Darwin reconheceu a importância de Lamarck, nós podemos reconhecer também. 

Principais textos consultados: “The Tallest Tale” e “Shades of Lamarck”, de Stephen Jay Gould; Filosofia Zoológica de Jean-Baptiste Lamarck; 3ª e 6ª edições da Origem das Espécies de Charles Darwin; texto On The Genesis of Species, de St Georges Mivart; texto “Nos tempos de Lamarck: o que ele realmente pensava sobre evolução orgânica”, de Lilian Al-Chueyr Pereira Martins; artigo “As teorias de Lamarck e Darwin nos livros didáticos de biologia no Brasil”, de Argus Vasconcelos de Almeida e Jorge Tarcísio da Rocha Falcão.

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