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O milagre da multiplicação

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 28 jul 2009, 22h00

O primeiro ser vivo que se deslocou sobre a Terra, há cerca de 3,5 bilhões de anos, era apenas uma célula – microscópica bolha de gordura dentro da qual se abrigavam cerca de mil substâncias químicas muito especiais, cujas bem ordenadas reações permitiam à célula crescer e, afinal, gerar uma nova célula. E, até hoje, todo organismo vivo ao nascer é uma única célula: o ovo, formado pela fusão de um espermatozóide masculino e um óvulo feminino. Mas a semelhança pára aí, pois o ovo logo perde a individualidade e assume os contornos de um embrião, o primeiro passo rumo a uma complexa sociedade de células de diversos tipos e aptidões próprias.

Para dar esse passo crucial, no entanto, o embrião depende de um invólucro claro, gelatinoso e nutritivo, chamado zona pelúcida. Durante muitos anos, a necessidade de preservar essa proteção foi o principal obstáculo à clonagem de seres humanos – a espantosa possibilidade de separar as primeiras células do embrião e transformá-las em novos embriões. Assim, uma mulher poderia ter dois, quatro ou mais filhos de uma só vez, todos gêmeos idênticos entre si. Mas, como não se podem separar as células sem primeiro dissolver a zona pelúcida, não havia como garantir a sobrevivência das cópias de embriões. Esse problema só deixou de existir quando o americano Jerry Hall, diretor do Laboratório de Andrologia e Fertilização in Vitro da Universidade George Washington, na capital dos Estados Unidos, demonstrou como dar uma nova vestimenta às células nuas. Há cerca de dois anos, ajudado pela médica Sandra Yee, da mesma universidade, ele havia preparado uma receita com ingredientes extraídos das algas, cuja ação simulava com perfeição a da zona pelúcida. Em outubro do ano passado, finalmente, ele embrulhou 48 células humanas na geléia de alga, provando que ela podia sustentar o crescimento saudável dos embriões até a idade de uma semana.

Do ponto de vista científico, esse foi o ponto central da experiência, mas o que mais chamou a atenção foi a clonagem, nunca realizada no ser humano, embora há anos comum em certos animais (veja cronologia acima). Para isso, Hall começou com apenas 17 embriões. Para transformá-los em 48, o primeiro passo foi copiar uma tática que os espermatozóides empregam para penetrar no óvulo – eles dissolvem uma pequena área da zona pelúcida com um solvente químico. A diferença é que o cientista dissolveu toda a zona e decompôs os embriões em dezenas de células individuais (quando a separação ocorre naturalmente em uma mulher, nascem gêmeos univitelinos).

Em seguida, cada célula ganhou uma nova capa gelatinosa, mas curiosamente evoluiu de maneira diferente. As que haviam saído de embriões menores (contendo apenas duas células) produziram robustos rebentos, que cresceram até somar 32 células. Os embriões médios (quatro células) deram origem a embriões mais frágeis, que no máximo chegaram a 16 células. Os maiores, enfim, geraram embriões apenas de seu tamanho original (oito células). Isso restringe o número dos que poderiam vir a ser implantados no útero de uma mulher e se tornarem bebês (o implante natural ou artificial se dá ao nível de 32 células).

Esse fato, por si só, aponta os limites da clonagem e desacredita o mito de que ela poderia levar à produção em massa de seres humanos – como folhas impressas de uma fotocopiadora. Embora essa possibilidade exista, em tese, nada indica que venha a ocorrer na prática. Esse tipo de clonagem só se aplica às plantas, que têm extravagantes hábitos de procriação. Até a ponta de uma folha, por exemplo, pode fornecer células que regridem no tempo, tornam-se embrionárias e geram novos indivíduos, que serão a cara escrita da planta materna.

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Nos animais e no homem, as células reprodutivas são muito mais raras e têm uma evolução sutil. Tanto que um dos objetivos de Hall, ao fazer sua experiência pioneira, era ajudar casais que não podem ter filhos mesmo por meio da inseminação artificial. De fato, não basta coletar um óvulo, fecundá-lo, no tubo de ensaio e depois implantar o embrião resultante no útero feminino. Em muitos casos o implante simplesmente não “pega”, e não há gravidez.

A situação melhora quando se implantam três ou cinco embriões de uma vez, mas nem todos os casais são capazes de produzir tantos candidatos a bebês. Imaginou-se, então, que um único embrião poderia ser clonado em número suficiente para garantir a gravidez. Foi com esse espírito que se comemorou o resultado de Hall e sua equipe.

Também é possível que a clonagem seja usada para descobrir, com antecedência, se os embriões têm defeitos genéticos. Atualmente, esse tipo de teste é feito em condições relativamente precárias, e não dá resultado em um terço dos casos, informa a revista americana Science. O método consiste em extrair de uma célula embrionária o material genético necessário à análise. Os resultados seriam melhores se os genes fossem extraídos de um clone, e não do próprio embrião. As idéias, portanto, são muitas, mas estão muito longe de se concretizarem. E por um motivo que nada tem a ver com a ciência. A grande crítica à clonagem é de origem moral: até que ponto é aceitável manipular células cujo destino é constituir um ser humano?

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Pouca gente parece disposta a aceitar que o limite seja estendido até a cópia dos embriões. O Vaticano e o presidente francês, François Mitterrand, repudiaram de imediato o trabalho de Hall. E 75% dos americanos, de acordo com uma pesquisa divulgada pela revista Time, pensam da mesma maneira. Apenas 14% disseram que a clonagem humana seria algo positivo, e 77% apoiaram a proibição dos estudos nessa área, pelo menos por algum tempo. “Pode parecer um exagero emocional, mas não é”, concorda a especialista Margaret Somerville, diretora do Centro MacGill de Medicina, ” Ética e Direito, de Montreal, no Canadá.

Ela acredita que não se pode descartar a possibilidade de se produzirem seres humanos em massa. Dificilmente se poderia negar que todo o cuidado é pouco, diante de tema tão relevante. Mas há evidente dose de exagero na reação das pessoas. Inclusive devido à influência de romances e filmes especulativos, em que a clonagem é usada, por exemplo, para criar um exército de super-soldados idênticos, tipicamente pintados como guerreiros passivos e frios. Supõe-se que, daqui para a frente, cenários parecidos poderiam tornar-se desagradável rotina. A título de ilustração, nada impediria que um casal fizesse inseminação artificial, clonasse o embrião de uma filha, antes do implante, e guardasse uma cópia congelada.

Anos mais tarde, a filha já casada poderia implantar aquela cópia e dar à luz uma gêmea de si mesma. A própria inseminação in vitro já vem criando situações incomuns – como a da sul-africana Pat Anthony, de 48 anos, que emprestou o útero para que nele se implantassem embriões gerados pela filha, Karen. O fato, porém, é que aquelas ficções estão muito distantes da realidade. Mesmo bois e ovelhas, aos quais se aplica a clonagem há vários anos, acabam produzindo bem poucos gêmeos idênticos (quadro). Em princípio, uma vaca poderia gerar 32 bezerros de um golpe só e, ao fim da vida. deixar uma descendência de milhares de animais, em lugar da prole tradicional de uma ou duas dezenas.

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Na prática, daqueles 32 bezerros teóricos, a clonagem produz um máximo de oito animais vivos. Além disso, alguns bezerros nascem com problemas de origem desconhecida, como um grande excesso de peso. Mas ainda mais importante é que nem sempre os criadores mostram interesse por rebanhos homogêneos, cujos genes sejam excessivamente iguais. O que se procura é exatamente o contrário: a diversidade genética, disse um pecuarista americano à Time. O motivo é que as diferenças genéticas, combinadas durante os cruzamentos, levam ao melhoramento dos rebanhos. A mesmice corrói a riqueza do patrimônio hereditário.

Em resumo, como disse a filósofa Mary Warnoch, encarregada pelo governo britânico de estudar o assunto, o simples bom-senso se encarrega de restringir excessos potenciais – entre os humanos com mais razão que nos animais. Diante disso, é difícil criticar a postura de Jerry Hall e seu colega Robert Stillman, co-autor da experiência, ao romper o tabu da clonagem humana. Primeiro, porque tomaram o cuidado de utilizar embriões rejeitados para o implante depois da inseminação no Laboratório de Andrologia. Num acidente não incomum, provinham de óvulo penetrado por mais de um espermatozóide, e teriam poucas chances de sobreviver. Em segundo lugar, os cientistas tiveram o mérito de separar ficção e realidade, e em vez de possibilidades abstratas puseram em debate resultados concretos de pesquisa. Atitude louvável, que Hall fez questão de assinalar quando anunciou sua experiência. “Estava claro que ela seria realizada, mais cedo ou mais tarde. Decidimos que seria melhor fazê-la de maneira aberta e dar início ao debate ético.”

Para saber mais
Vida: Experiência Inacabada, Salvador Lúria, Edusp/ltatiaia Editora, São Paulo, 1981

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