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Onde está a inteligência no nosso cérebro?

Por toda parte. As habilidades do objeto mais complexo do Universo brotaram de conexões que os neurologistas ainda tentam entender

Por Alexandre de Santi
19 jun 2018, 15h36

Um bando de primatas avistou uma ave negra no céu, sinal de que alguma carcaça estava dando sopa na região. Eles então saíram caminhando pela África de 3 milhões de anos atrás para perseguir aquela carne. Eram australopitecos, primatas de 1,20 m e mandíbulas protuberantes.

Atacar uma carcaça era tarefa arriscada porque outros predadores ficavam de olho na carniça. Bastava roer as fibras do animal para surgir um megantereon, por exemplo, felino com dentes de sabre de 10 cm capazes de atravessar uma perna. Por isso, os australopitecos andavam em bandos armados. Um deles era designado para cortar a carne do bicho com uma pedra afiada, uma das primeiras ferramentas criadas na natureza, enquanto os outros davam cobertura jogando pedras e paus para afastar os felinos.

Australopitecos: apesar dos cérebros modestos, os ancestrais dos sapiens deram os primeiros sinais de vida inteligente. (Wlad74/iStock)

Essa cooperação, aliada à capacidade de produzir ferramentas, mostra que a inteligência, o conjunto de funções mentais que contribuem para a compreensão da natureza das coisas e dos fatos e para a busca de soluções para os problemas, já existia no cérebro de espécies pré-humanas.

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Mas essa esperteza ainda não era um diferencial competitivo. Os australopitecos viviam apenas em uma região da África, e nada sugeria que seus tataranetos iriam conquistar a Terra milhares de anos depois. Na verdade, sua inteligência era suficiente apenas para salvá-los da extinção. Viria mais tarde o salto cognitivo que nos permitiria cultivar plantas e animais, criar música, sociedades, cidades, máquinas, computadores e transformar o planeta. Antropólogos discutem até hoje as razões dessa revolução cognitiva. Uma nova teoria atesta que a seleção pela inteligência está ligada aos bebês humanos, indefesos se comparados aos de outros mamíferos. Eles demoram mais de um ano para aprender a caminhar – bebês de cavalo, por exemplo, andam no instante que deixam o ventre da mãe. Os humanos precisam cuidar dos seus filhos por muito tempo, e essa dedicação exige inteligência. Pais pouco espertos deixaram seus filhotes morrer de fome, sede, por doenças ou engolidos por predadores. De acordo com um estudo publicado em 2016 por pesquisadores da Universidade de Rochester, nos Estados Unidos, ao longo da história, sobreviveram os bebês cujos pais combateram essas ameaças. Quanto mais inteligente a família, maior a chance de sobrevivência – um modelo que perpetua genes que criam condições para o desenvolvimento de uma cognição afiada.

Essa seleção começou quando os australopitecos estavam surgindo. Os primatas passaram a andar em duas pernas, e os quadris das fêmeas ficaram mais estreitos para facilitar a caminhada. Ao mesmo tempo, os cérebros estavam crescendo. Surgiu um problema: cabeças grandes precisavam nascer de canais vaginais cada vez mais apertados. A seleção natural prevaleceu: sobreviviam apenas as crianças que nasciam mais cedo, em um ponto da gestação no qual os crânios são menores. Como eram prematuras, dependiam mais dos pais – exatamente como ocorre hoje. “A nossa teoria é que existe um ciclo onde cérebros grandes levaram a descendentes muito prematuros, e descendentes prematuros forçaram pais a ter cérebros grandes”, disse o neurologista Steven Piantadosi na divulgação dos resultados da pesquisa.

Quando surgiu a primeira espécie humana, o Homo habilis, há 2,5 milhões de anos, o volume interno do crânio tinha crescido entre 15% e 30% em comparação ao dos australopitecos. Os antropólogos acreditam que o cérebro estava sendo turbinado com carne, cada vez mais frequente nas refeições dos nossos ancestrais em razão das técnicas sofisticadas de caça, que incluíam cooperação e ferramentas cada vez melhores. Há um milhão de anos, uma nova espécie humana, o Homo erectus, começava a dominar o fogo.

As chamas mudaram tudo. Com uma pedra, gravetos e palha, era possível criar uma faísca e acender uma fogueira para assar carne e vegetais. De acordo com uma teoria de Richard Wrangham, professor de antropologia biológica da Universidade de Harvard, o churrasco criou o humano moderno. O fogo quebra moléculas dos alimentos e facilita a digestão. Chimpanzés passam cinco horas por dia mastigando alimentos crus; nós gastamos só uma hora. “Cozinhar aumenta a quantidade de energia que nossos corpos obtém da comida”, escreve Wrangham no livro Pegando Fogo: Por que cozinhar nos tornou humanos, de 2009. Passamos a ter acesso a mais calorias, e isso permitiu o crescimento do cérebro – um órgão que gasta muita energia. O seu cérebro consome até 25% de todas as calorias que você ingere.

A era da sapiência

Quando o Homo sapiens surgiu, há 300 mil anos, seu cérebro tinha dobrado de tamanho em relação ao do H. erectus. Começava ali a jornada da espécie mais inteligente em 3,8 bilhões de anos de vida na Terra. Se os cérebros de humanos se tornaram cada vez maiores, a conclusão parece óbvia: donos de boné GG são mais espertos do que quem compra tamanho P. Mas será que devemos a nossa inteligência ao crescimento do cérebro?

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Não – esta é a resposta simples. Embora os sapiens ancestrais tivessem cérebros do tamanho do nosso, cerca de 1.200 cm3, eles demoraram mais de 200 mil anos para desenvolver as habilidades cognitivas que temos hoje. Antropólogos suspeitam que mutações genéticas ocorridas há 70 mil anos foram as responsáveis pelo início de uma nova fase da inteligência humana. Dotados desses novos genes, os sapiens de então desenvolveram pensamentos e idiomas complexos, passaram a produzir arte, criar personagens fictícios e indagar sobre o mistério da vida. Dificilmente você conseguiria aprender a língua e bater papo com um sapiens ancestral. Somos a mesma espécie, mas os antropólogos acreditam que os humanos da pré-história possuíam outra forma de pensar. Não há registros de cultura antes dessa revolução cognitiva, por exemplo. Mas, depois dela, há uma porção de provas arqueológicas que indicam que os humanos passaram a construir estátuas, fabricar barcos, armas e roupas, desbravar novos continentes e especular sobre as origens do Universo, da vida, de tudo – era o início das religiões.

Ou seja: o crescimento do cérebro não foi o único responsável pela inteligência bombada dos sapiens – se fosse, teríamos dominado o planeta muito antes. Mas isso não significa que esse aumento de massa não teve impacto para a inteligência. A natureza não desperdiça energia à toa, e não faria sentido que o cérebro humano tivesse dobrado de tamanho sem uma contrapartida direta para a nossa sobrevivência. Em 2015, um estudo que analisou os achados de 88 pesquisas sobre a relação entre massa encefálica e testes de quociente de inteligência (o QI – vamos falar mais sobre ele daqui a pouco) mostrou que, sim, existe uma pequena correlação entre cabeças grandes e esperteza. Mas os pesquisadores, liderados por cientistas da Universidade de Viena, na Áustria, alertaram que a relação entre as duas medidas não pode ser levada ao pé da letra. Os resultados não foram fortes o suficiente para decretar que usuários de bonés gigantes são mais inteligentes.

Para começo de conversa, os neandertais, espécie humana que conviveu com os sapiens, tinham cérebro 30% maior que o nosso. Se maior massa encefálica fosse o indicador definitivo de inteligência, seria de se esperar que os nossos colegas de humanidade tivessem sobrevivido. Mas eles foram extintos. Nas últimas décadas, exames de imagem têm demonstrado que maior volume em determinadas áreas do cérebro está ligado à inteligência. Uma revisão de 37 estudos, realizada por cientistas das universidades do Novo México e da Califórnia, revelou 14 regiões relacionadas às habilidades mentais que compõem a inteligência, como o córtex pré-frontal dorsolateral (envolvido com decisões morais e avaliação de risco), lobo parietal (responsável por processar os sentidos) e córtex cingulado anterior (que ajuda no controle de impulsos e decisões). Você até pode ter um cérebro grandão, mas, se nenhuma dessas 14 partes for maior do que a média, não adianta nada.

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Quem tem maior massa nessas regiões ganha maiores chances de tirar notas mais altas em testes de QI. Mais massa cinzenta nos lobos frontais do cérebro também é indicador de intelecto avançado entre as mulheres. Nos homens, escores de inteligência mais altos estão relacionados com áreas maiores nas áreas frontais e traseiras ligadas à integração das informações dos sentidos. Os resultados são consistentes. Isto é, os pesquisadores estão esperançosos de que poderão mapear onde exatamente reside a inteligência dentro do cérebro. Cientistas como o neurologista Richard Haier, professor da Universidade da Califórnia e autor de The Neuroscience of Intelligence (“A neurociência da inteligência”, ainda sem tradução para o português), acreditam que chegaremos ao ponto de substituir testes de QI por exames de neuroimagem no futuro.

Apesar dos avanços, parte do mistério permanece. Imagine que alguém tenha massa cinzenta bombada somente em uma das 14 regiões, e essa área seja responsável pela linguagem. Seria de se esperar que essa pessoa fosse bem em um teste de vocabulário e tivesse escore mediano em outros testes cognitivos. Certo? Errado. Uma pessoa que vai bem em um teste de habilidades mentais tende a repetir o bom desempenho em todos os outros. Há um fator comum de onde brota o virtuosismo mental, e os cientistas chamam esse fenômeno de “fator g” – ou fator de inteligência geral. Proposto no início do século 20 pelo psicólogo britânico Charles Spearman, o g vem sendo comprovado estatisticamente ao longo das décadas e se tornou um sinônimo de inteligência para os neurologistas.

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O que é o g? Ainda não se sabe. Mas Haier e seus colegas sabem que o volume das 14 regiões não é a única razão que explica a inteligência. Os neurologistas, no entanto, encontraram indícios de que, além da massa avantajada, indivíduos espertos possuem boa conexão entre essas áreas especiais. Se a teoria se comprovar, a inteligência também poderá ser medida pela velocidade com a qual as diferentes partes do cérebro trocam informações. O fator g seria o resultado da combinação desses fatores – e de outros que ainda podem ser descobertos. A tese é nova, e os cientistas ainda estão criando formas de medir a velocidade de troca de informações pelo cérebro. Mas eles já descobriram que essas características passam de geração a geração por meio dos genes, como você pode ver aqui.

O tamanho do boné

(Bruno Algarve/Superinteressante)

1. AUSTRALOPITECOS
O volume do cérebro dessa espécie de primata girava em torno de meio litro.

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2. HOMO HABILIS
A primeira espécie humana tinha espaço de 15% a 30% maior para os neurônios.

3. HOMO SAPIENS
Com 1.200 cm3, nosso cérebro tem volume 140% maior do que o dos australopitecos.

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