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Os bichos enviados ao espaço e o Projeto X

Missões mortais. Sessões de choques e envenenamento. Cirurgias terríveis. A Guerra Fria sujeitou os animais a experiências abjetas.

Por Salvador Nogueira
Atualizado em 12 jun 2020, 11h39 - Publicado em 2 jun 2020, 11h39
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A pesquisa com animais caminha por uma linha ética tênue. É preciso defender que os bichos não são suficientemente parecidos conosco a ponto de ter direitos similares, mas ainda assim são suficientemente parecidos para que as pesquisas tenham valor – e os resultados sejam referências confiáveis do que aconteceria se humanos fossem submetidos às mesmas condições.

Esse é o conceito por trás dos “animais-modelos”, que podem representar, em diferentes graus, certos aspectos da biologia humana. No caso da cognição, os mais próximos naturalmente são os primatas. Não por acaso, o primeiro astronauta americano a voar ao espaço numa cápsula Mercury, em 1961, foi Ham – um chimpanzé. Ele obviamente não se voluntariou e passou por momentos de terror durante uma reentrada violenta na atmosfera, em que foi submetido a forças muitas vezes maiores que a ação da gravidade. Mas pelo menos retornou para contar a história.

Isso não se pode dizer de Laika, a cadela russa que se tornou o primeiro animal a ir ao espaço, no Sputnik 2, em 1957. Ela já estava numa missão sem volta, uma vez que o satélite não tinha tecnologia para retornar à Terra em segurança, mas acabou morrendo por superaquecimento antes mesmo que seu suprimento de oxigênio se esgotasse. E não pense que esse foi o fim das mortes de animais no programa espacial soviético. Durante o desenvolvimento de cápsulas capazes de pousar com segurança após viajarem até a órbita terrestre, muitos cães foram sacrificados em voos-testes.

O espaço sem dúvida era um ambiente hostil, mas nada que se comparasse à guerra. Por conta disso, alguns testes de “pilotagem” com animais feitos durante a década de 1980 foram bem piores que os que pavimentaram a rota da conquista espacial. No infame Projeto X, o que os pesquisadores da Força Aérea americana na base Brooks, no Texas, queriam saber é como pilotos se saem quando são expostos a variados níveis de radiação e agentes químicos enquanto no comando de uma aeronave.

Para descobrir isso, conta o filósofo e historiador Peter Singer, eles usavam um dispositivo conhecido pela sigla PEP – Plataforma de Equilíbrio Primata –, no qual chimpanzés precisavam manusear um controle para manter a estrutura giratória nivelada. Claro, antes de testar seu desempenho sob situações mais adversas, era preciso condicionar os animais para que eles soubessem operar o dispositivo. E o condicionamento era feito mediante incontáveis descargas elétricas. O exaustivo processo de treino consistia em sete etapas, em que os pobres animais gradualmente perdiam a capacidade de resistir, condicionados pelos choques constantes e dolorosos.

Ham, o primeiro chimpanzé a viajar para o espaço, em 1961. (Encyclopaedia Britannica/Getty Images)

“Todo esse treinamento, envolvendo milhares de choques elétricos, é apenas preliminar para o experimento real”, descreve Singer. “Uma vez que os macacos estão mantendo regularmente a plataforma horizontal pela maior parte do tempo, são expostos a doses letais ou subletais de radiação ou a agentes químicos de guerra, para ver por quanto tempo eles podem continuar a ‘voar’ na plataforma. Então, nauseados e provavelmente vomitando de uma dose fatal de radiação, eles são forçados a tentar manter a plataforma horizontal, e se falham recebem choques elétricos frequentes.”

O Projeto X teve seus relatórios publicados e chegou a virar filme, estrelado por Matthew Broderick e Helen Hunt, em 1987. O responsável pelos experimentos era Donald Barnes, da Escola de Medicina Aeroespacial da Força Aérea americana. Ele estima que irradiou cerca de mil macacos treinados durante os anos em que esteve à frente do projeto. E mais tarde admitiu o que já parece óbvio a quem lê – os experimentos, além de extremamente cruéis, foram muito pouco informativos.

“Durante alguns anos, eu tive suspeitas sobre a utilidade dos dados que estávamos recolhendo. Fiz algumas tentativas simbólicas de me certificar tanto do destino quanto do propósito dos relatórios técnicos que publicamos, mas agora reconheço minha ansiedade em aceitar garantias de quem estava no comando de que estávamos, de fato, fornecendo um serviço real à Força Aérea americana e, portanto, à defesa do mundo livre.

Eu usava essas garantias para evitar a realidade do que eu via no campo, e embora eu nem sempre as vestisse confortavelmente, elas serviam para me proteger de inseguranças associadas à perda potencial de status e renda”, escreveu Barnes. “E então, um dia, a venda caiu, e eu me encontrei num confronto muito sério com o dr. Roy DeHart, comandante da Escola de Medicina Aeroespacial da Força Aérea.

Eu tentei apontar que, dado um confronto nuclear, é altamente improvável que comandantes operacionais fossem checar os gráficos e números baseados nos dados dos macacos resos para obter estimativas de força provável e de capacidade de um contra-ataque. O dr. DeHart insistia que os dados seriam valiosos, indicando, ‘Eles não sabem que os dados são baseados em estudos com animais’.” Barnes pediu exoneração e abandonou os experimentos, num sinal de que mesmo militares, treinados a conviver com catástrofes, podem chegar a um ponto em que os testes passam a ser simples tortura animal sem justificativa razoável.

Laika, o primeiro animal a entrar em órbita, em 1957: viagem sem volta. (Heritage Images/Getty Images)

O Projeto X, garante-nos Peter Singer, é apenas um exemplo de investigação científica cruel em animais conduzida pelas Forças Armadas americanas. Em outro caso conhecido, o interesse era meramente verificar o poder letal de gases tóxicos. Para isso, em 1973, a Força Aérea tentou comprar 200 filhotes de beagle, que tiveram as cordas vocais operadas para que não pudessem latir. O Exército, para não ficar atrás, compraria outros 400 para testes similares.

Um deputado americano, Les Aspin, ficou indignado ao descobrir a iniciativa e iniciou um protesto acalorado para interromper os experimentos. Como se pode imaginar, não é difícil sensibilizar o público quando o desejo é proteger cãezinhos indefesos. Mas o buraco é mais embaixo. “É errado limitar nossa preocupação aos cães”, diz Singer.

“As pessoas tendem a se importar com eles porque geralmente têm mais experiência com cachorros como companheiros, mas outros animais são tão capazes de sofrimento como os cães. Poucas pessoas sentem pena de ratos. E ainda assim ratos são animais inteligentes, e não há dúvida de que os ratos são capazes de sofrimento e sofrem de incontáveis experimentos dolorosos que são realizados neles. Se o Exército parasse de fazer experimentos em cães e trocasse para ratos, não deveríamos ficar menos preocupados.”

Muitos outros testes similares foram realizados, e a desculpa era sempre a mesma: eles podem ajudar a salvar vidas humanas. Mas será que todo esse sofrimento – sessões intermináveis de choques, seguidas por envenenamento por radiação ou armas químicas – é justificável?

Será que não existe uma curiosidade mórbida e uma insensibilidade demasiada por trás desses testes? Não haveria meios melhores de descobrir o que os militares queriam saber? Você pode até achar que não, e que a iminência da guerra, com todo o potencial sofrimento que ela traz, justifica a exposição desses animais a sessões de tortura. Mas e o que dizer de experimentos cruéis feitos fora do âmbito militar, e que em hipótese alguma salvarão uma única vida humana?

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