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Os anciões do Cosmos

Conheça os aglomerados globulares, enxames de estrelas antiquíssimas que repousam nos confins das galáxias – e o que eles podem dizer sobre a evolução da nossa

Por Ana Carolina Leonardi Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 29 out 2020, 17h25 - Publicado em 31 Maio 2017, 19h43

Uma estrela nunca nasce sozinha. Estrelas surgem a partir de nuvens descomunais de gás e poeira que vagam pelo Cosmos. Mais hora, menos hora, as partículas dessas nuvens começam a se juntar, por cortesia da mesma força que junta seus pés ao chão: a gravidade. Desse ajuntamento, surgem vários pontos que reúnem quantidades robustas de matéria. Cada um desses pontos é uma estrela. O nosso Sol mesmo, aqui em cima, nasceu assim: de uma nuvem de gás e poeira que gerou vários outros sóis irmãos do nosso. Algo entre mil e 10 mil irmãos, calculam os astrônomos.

Bom, se conjuntos estelares fossem famílias, a do Sol seria bastante moderna: um grupo espalhado Cosmos afora, com parentes habitando até galáxias distintas, sem manter contato. Mas existem outras configurações familiares. Sabe aquela legião de primos que cresceu junto, se encontra todos os domingos e se aperta em uma única casa nas festas de Natal? Então. A versão estelar deles também existe. São os aglomerados globulares.

Estamos falando de enxames que unem centenas de milhares de estrelas, fortemente ligadas umas às outras desde seu nascimento, por conta da atração gravitacional que uma exerce sobre a outra. Elas ficam tão juntas que formam esferas brilhantes, e gigantes, que orbitam o eixo central das galáxias. Só aqui, na Via Láctea, conhecemos 150.

Uma delas é Omega Centauri, um objeto celestial que foi catalogado como estrela pelo astrônomo greco-egípcio Ptolomeu, há 2 mil anos, mas que não é exatamente uma estrela. Trata-se de um aglomerado de 10 milhões de estrelas formando um globo. Um aglomerado globular.

Aglomerados globulares não são raros. A particularidade mais incrível deles é a idade. Eles são os anciões que observam a história do Universo desde seus primeiros capítulos, testemunhas da evolução cósmica. Descobrir sua história é entender como as galáxias se formaram – e, no caso da Via Láctea, os aglomerados globulares podem estar no centro de tudo, literalmente.

No princípio, era o hidrogênio

Há 13,8 bilhões de anos, não muito depois do Big Bang, o Universo só abrigava dois elementos: hidrogênio e hélio, ambos na forma de gás. Algumas áreas do Cosmos primordial eram mais densas, continham mais gás que as outras. Com a ação da gravidade, essas nuvens gasosas formaram objetos sólidos descomunais: as estrelas. Algumas dessas primeiras estrelas se acumularam a menos de um ano-luz de distância uma da outra (quase grudadas, em termos cósmicos). Esses grupos foram os primeiros aglomerados globulares. As estrelas que se formaram a distâncias maiores não se juntaram como aglomerados, mas como estruturas mais familiares: galáxias.

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Se uma galáxia fosse um disco de vinil, a parte central da bolacha, onde vem aquela etiqueta circular, seria o que o os astronômos chamam de “bojo”, cheio de estrelas reunidas na forma de uma bola gigante (veja aqui abaixo). Além do bojo, há o disco propriamente dito, também recheado de estrelas – caso do Sol, que faz parte do disco da Via Láctea. E além do disco e do bojo ainda há o “halo” – uma esfera que envolve a galáxia toda.

Bojo, halo e disco são como bairros habitados por estrelas de idades diferentes. As mais jovens, como o Sol, com seus 4,5 bilhões de anos, moram no disco. Elas formam a chamada “população 1”, a dos astros mais quentes e brilhantes. Já o bojo concentra a população 2, com estrelas velhas, mais frias e opacas. O halo, por fim, é onde estão as estrelas anciãs, quase tão antigas quanto o Big Bang, com mais de 10 bilhões de anos. O endereço padrão dos aglomerados globulares, formados por estrelas antiquíssimas, é justamente o halo, de onde esses anciões cósmicos observaram toda a evolução da galáxia.

Anatomia galáctica

Estes são os cinco elementos que formam as galáxias parecidas com a nossa

(Fabricio Miranda/Superinteressante)

1. Bojo
É o centrão da galáxia. Um centro velho, povoado por estrelas idosas.

2. Buraco negro supermaciço
Toda galáxia grande abriga um belo buraco negro no centro. O da nossa tem massa equivalente à de 4 milhões de Sóis.

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3. Disco
É a parte que contém mais gás, poeira e estrelas jovens – como o Sol, que fica no disco da Via Láctea.

4. Aglomerados globulares
São “minigaláxias”, cheias de estrelas quase tão antigas quanto o Big Bang.

5. Halo
É a “atmosfera” que envolve o plano galáctico – formada por gás que restou de explosões de supernovas.

O processo de formação das galáxias é um dos maiores mistérios do Universo. A história toda que você acabou de ler é só uma hipótese, das muitas criadas para imaginar como cada um dos componentes e objetos das galáxias foi se desenvolvendo até chegar à estrutura que vemos hoje. Mas os aglomerados globulares podem ser a chave para resolver alguns desses imbróglios cosmológicos.

Um deles é a formação do núcleo das galáxias. Em primeiro lugar, esse centro é difícil de enxergar, por ser repleto de poeira. Localizá-lo, inclusive, foi um dos primeiros desafios que a astronomia precisou enfrentar. Mas desde esse momento os aglomerados globulares serviram de pista: os modelos mostravam que, no halo, muitos deles formam enxames ao redor do centro galáctico, como abelhas em volta de uma colmeia. Seu brilho ajudou a apontar para os cientistas onde procurar pelo núcleo da nossa galáxia. Só que olhar para o centro acabou desafiando aquilo que sabíamos sobre os próprios aglomerados.

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As observações mais recentes do bojo da Via Láctea revelaram a existência de estrelas absurdamente velhas ali, com mais de 10 bilhões de anos, como as do tipo RR Lyrae (estrelas raras, que variam de brilho em intervalos constantes). Essas estrelas, por conta da idade, seriam típicas integrantes de enxames globulares. Uma dúzia desses astros antigos foi encontrada no meião lotado da galáxia e tudo indica que, sim, elas são mesmo remanescentes de aglomerados que se romperam há bilhões de anos. A importância dessa descoberta, aliás, tem a ver com uma antiga disputa teórica para estabelecer como as galáxias se formaram.

Uma das teses defende que, no início de cada galáxia, o centro acumulou rapidamente uma grande quantidade de gás e poeira, e aí formou as estrelas que se instalaram por lá, nativas do bojo desde o início. Do outro lado, temos a teoria das imigrantes. Antes de formar galáxias, as estrelas só “sabiam” se juntar na forma de aglomerados. Esses enxames, então, teriam colidido e mesclado, formando a população estelar do bojo. A descoberta das RR Lyrae suporta essa segunda tese. Ou seja: os aglomerados podem ter ajudado a construir as galáxias como as conhecemos.

Mesmo assim, ainda é difícil cravar se foi isso mesmo que aconteceu. Estrelas se reciclam: algumas explodem na hora da morte, na forma de supernovas, e os restos mortais delas dão origem a outras estrelas. Essas estrelas de segunda geração (e de terceira, quarta…) não são feitas totalmente de hidrogênio e hélio. Esses dois elementos primordiais se fundem no interior das estrelas, dando origem aos elementos mais pesados – um átomo de carbono, um desses elementos mais pesados, é feito de seis átomos de hidrogênio; um de ferro, de 26; um de ouro, de 79.

Quanto mais metais uma estrela tem, portanto, mais jovem ela é – isso indica que ela nasceu dos restos de outras estrelas, ricos em átomos pesados. E quanto menos metais, mais velha é a bichinha. Essa “metalicidade” da estrela equivale ao carbono 14 da arqueologia, indicando em que momento da história do Universo cada uma surgiu. Nesse contexto, os aglomerados globulares, cheios de estrelas anciãs, são como fósseis cósmicos: quanto mais soubermos sobre eles, melhor vamos entender o processo de formação das galáxias.

As estrelas ricas em metais emitem um espectro de luz mais vermelho; as mais pobres, um espectro mais azulado. Mas determinar a idade exata ainda é difícil. “As margens de erro podem chegar a 5 bilhões de anos”, diz a astrofísica Ana Chies dos Santos, cujo trabalho com aglomerados globulares longínquos foi escolhido para o Prêmio Para Mulheres na Ciência. Seu foco de estudo são galáxias elípticas, que chegam a ter mais de 20 mil aglomerados globulares orbitando em seus halos.

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Além de determinar a idade dos aglomerados, a pesquisa de Ana Chies também analisa a velocidade e a dinâmica dos componentes desses enxames. O objetivo é que, com a análise de grandes levantamentos sobre aglomerados, seja possível entender, finalmente, como se formaram as galáxias.

Fábrica de ondas gravitacionais

Os AGs (como os astrônomos chamam os aglomerados, para facilitar) também podem ser úteis para estudar dois dos mais fascinantes elementos do Universo: a matéria escura e os buracos negros.

Sobre a matéria escura é aquela história: galáxias giram, graças à interação gravitacional entre as bilhões de estrelas que cada uma abriga. E elas giram bem rápido. Só tem um problema. É impossível explicar a rapidez desse giro. A gravidade gerada pela massa das estrelas simplesmente não basta. A ideia, então, é que algo em torno de 80% da gravidade que existe numa galáxia venha não da massa das estrelas, mas de outra coisa, completamente invisível. Ninguém faz ideia do que seja essa coisa. Na falta de nome melhor, a chamamos de “matéria escura”. Toda galáxia tem matéria escura. Mas os aglomerados globulares não.

Na realidade, eles estão na divisa: os objetos levemente mais maciços que os AGs, como as galáxias ultracompactas, já apresentam uma quantidade razoável de matéria escura. E ninguém sabe por quê.

Este enxame estelar é o M15, um aglomerado com 100 mil estrelas e pulsares. Ele tem 12 bilhões de anos – o triplo do Sistema Solar. E fica a 33 mil anos-luz – mais longe que o centro da Via Láctea (28 mil anos-luz)… (Nasa/Reprodução)
… E este é o M62, próximo ao centro da Via Láctea. Ele tem massa equivalente a um milhão de sóis, e abriga 89 estrelas do tipo RR Lyrae, que estão mudando a forma como os astrônomos entendem as galáxias. (Nasa/Reprodução)

Outra descoberta surpreendente sobre os aglomerados globulares é que eles abrigam buracos negros dentro de si. Observações do Hubble encontraram no aglomerado da constelação de Pegasus, o M15, uma densidade tão grande no centro que a concentração pode indicar a existência de um buraco negro com massa equivalente à de 4 mil sóis (mil vezes menor que o do centro da Via Láctea, mas ainda assim grande). Fora da nossa galáxia, em um aglomerado de Andrômeda, acharam outro, com 20 mil sóis de massa.

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Essas observações, feitas na década passada, traziam dois problemas: o primeiro é que os modelos existentes de AGs indicavam que sua interação estelar fortíssima seria inóspita demais para o surgimento de um buraco negro. Se um deles tentasse se engraçar, deveria acabar cuspido para fora. Além disso, por muito tempo a ciência só confirmava a existência de dois tipos de buracos negros: os de massa estelar, umas poucas dezenas de vezes mais maciços que o Sol, e os supermaciços gigantescos, com bilhões de massas solares. Mas os buracos que pareciam estar nesses AGs não cabiam nessa escala – indicando a existência de buracos de massa intermediária. Os enxames globulares foram proféticos: de lá para cá, a astronomia já encontrou evidências fortíssimas que praticamente confirmam a existência de buracos negros tamanho M.

Novas observações com emissões de rádio também encontraram mais buracos negros em AGs, dentro da própria Via Láctea, no cluster M62.

A hipótese dos pesquisadores por trás da descoberta amarra buracos negros, aglomerados globulares e matéria escura de uma forma inédita. Em vez de ejetar os buracos negros de uma vez, os aglomerados poderiam estar expulsando os monstros famintos lentamente. Enquanto isso, os enxames seguem o movimento de sua órbita. E se, quando o buraco fosse finalmente banido, estivesse perto suficiente de outro buraco médio para que os dois se juntassem, formando um buraco ainda maior? O resultado dessa colisão seria uma ondulação no espaço-tempo, que chamamos de onda gravitacional.

A matéria escura não interage com a luz, não interage com força eletromagnética, mas está completamente sujeita à gravidade – e ondas gravitacionais são a nossa melhor aposta de descobrir do que se trata de fato a matéria escura. O problema é que faz pouco mais de um ano que conseguimos detectar ondas gravitacionais pela primeira vez. Se essa tese de que há buracos negros dentro de AGs estiver correta, poderíamos mapear áreas com maior probabilidade de emissão dessas ondas. E quanto mais ondas captarmos, mas vamos entender sobre os enigmas do Universo – a começar pelo da matéria escura. No meio do breu cósmico, então, os aglomerados podem se tornar nossos melhores guias.

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