Personalidades múltiplas: vários nomes, várias idades e um único corpo
O transtorno dissociativo de personalidade é muito mais raro do que o cinema faz crer. Mas o desastre na vida real não é menor que na ficção
Pelo menos 3 vezes por semana, Alice (nome fictício) acordava fora de casa, numa cama que não conhecia. Ora tinha cortes nos braços, ora uma réplica de uma arma e dinheiro que não sabia de onde arranjara. Já tentou se matar algumas vezes – numa delas, injetou um monte de heroína e disparou uma pistola contra si, mas estava tão drogada que errou o alvo. Acordou num hospital, recuperando-se de mais uma overdose. Alice tem 40 anos e 9 personalidades – a maioria delas crianças de diferentes idades, como J., um garoto de 10 anos. Recentemente, contou sua história no livro Hoje Eu Sou Alice, em que relata a dificuldade de viver com o raríssimo transtorno dissociativo de personalidade (TDP) – as múltiplas personalidades.
O transtorno só foi reconhecido pela Associação Americana de Psiquiatria em 1980. Não há estimativa oficial do número de portadores, e ainda hoje alguns pesquisadores duvidam que ele sequer exista – desconfiam que seja, em grande parte, induzido pelo próprio terapeuta em pacientes muito influenciáveis. Mas casos de mudança brusca de personalidade são reportados há séculos.
Até 120 anos atrás, eram considerados possessão demoníaca – na Bíblia, por exemplo, um homem diz a Jesus: “Meu nome é Legião, porque somos muitos”.
Com a descoberta da esquizofrenia em 1908, muitos possíveis casos de TDP receberam diagnóstico errado. Só nos anos 1970, o transtorno se tornaria popularmente conhecido, com o lançamento do filme Sybil, que conta o caso real da paciente Shirley Ardell Mason.
As causas do TDP ainda são pouco conhecidas. Sabe-se que situações traumáticas e de grande estresse levam à atrofia do hipocampo, a “sede” da memória humana. “Essa diminuição está relacionada ao TDP, mas ela é um sintoma físico de um problema anterior”, diz Olaf Blanke, do Laboratório de Neurociência Cognitiva da Escola Politécnica Federal de Lausanne. “As pesquisas sobre o problema apontam a origem na infância. Quando a criança sofre violência, física e sexual, ela tende a se afastar do próprio corpo para diminuir o sofrimento. Até o momento, essa é nossa melhor explicação.”
Quando as agressões se repetem, a vítima tende a criar mundos paralelos. Foi o caso de Alice, estuprada pelo pai desde os 6 meses de idade até os 12 anos.
Os sintomas do transtorno incluem grandes variações de humor, dores de cabeça fortes, depressão, insônia e ataques de ansiedade. Em geral, o paciente tem dificuldade em constituir família ou se manter no emprego – como Robert Oxnam, sinólogo que assessorou o ex-presidente George Bush (pai) numa viagem à China. Tomado por uma de suas 11 personalidades, perdeu uma reunião com diplomatas chineses e foi encontrado a 200 quilômetros de Pequim. Quase causou um incidente diplomático.
É por essas histórias que escritores e cineastas gostam de explorar as múltiplas personalidades. Mas, na vida real, o TDP está longe de ser glamouroso.
Um distúrbio pop
Múltiplas personalidades e o mundo da ficção
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Para saber mais
Hoje Eu Sou Alice
Alice Jamieson, Ed. Larousse, 2010.