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Piratas da floresta

Países em desenvolvimento, como o Brasil, têm um tesouro valiosíssimo, que interessa muito às nações ricas: a biodiversidade.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 31 out 2001, 22h00

Maria Fernanda Vomero

Se eles pelo menos andassem por aí exalando bafo de rum ou se usassem o indefectível tapa-olho… Mas não, os piratas que estão pilhando o Brasil são insuspeitos, uns indistinguíveis de um ecoturista, outros disfarçados num avental de cientista. O tesouro que move a cobiça desses corsários modernos é avaliado em 2 trilhões de dólares – o suficiente para pagar oito vezes a dívida externa brasileira e ainda comprar um monte de cervejas com o troco. Esse ouro todo não está enterrado nem trancado num baú, mas exposto a céu aberto, ao alcance de qualquer um.

Estamos falando da biodiversidade – a variedade de espécies vegetais e animais de uma região. Calcula-se que o Brasil abriga 23% de todas as espécies do globo, o que faz de nós a maior potência do mundo no setor. Biodiversidade vale tanto porque 40% de todos os medicamentos produzidos – um mercado que movimenta anualmente 315 bilhões de dólares – têm seus princípios ativos retirados de bichos ou plantas. Sem falar nos mercados de cosméticos e de agroquímicos, que também dependem de proteínas animais e vegetais e movimentam 150 bilhões de dólares por ano. E os valores só tendem a crescer com o Projeto Genoma, que está mapeando o código genético de mais e mais espécies. Ao Brasil cabe uma grande fatia desse bolo, mas apenas se descobrirmos um jeito de não nos levarem tudo de graça.

Os piratas do século XVI queriam o ouro americano – metal precioso numa época em que os recém-formados Estados europeus precisavam dele para lastrear as suas economias e em que os povos americanos não davam a mínima para ele. Da mesma forma, os biopiratas roubam um bem abundante no sul e que, subestimado aqui, interessa ao norte. São os laboratórios americanos e europeus que têm a tecnologia e o dinheiro para testar as proteínas dos organismos e desenvolver remédios com elas.

E como é que essa pilhagem se dá? Há biopiratas que vêm para fazer ecoturismo, mas colhem folhas, sujam as botas de barro (para levar amostras de solo) ou levam embora ovos de pássaros em coletes térmicos. Outros se aproximam de povos indígenas e aprendem os segredos da medicina da floresta – assim, os laboratórios não precisam testar aleatoriamente milhares de substâncias, vão direto àquelas com mais chances de terem propriedades medicinais. “E há aqueles que entram no país com autorização de pesquisa, cumprem os propósitos do trabalho, mas desenvolvem atividades paralelas para laboratórios”, afirma Vicente Carneiro, gerente de salvaguarda de conhecimentos sensíveis da Agência Brasileira de Inteligência, órgão que protege o conhecimento estratégico produzido no país.

Uns usam técnicas que parecem copiadas dos filmes de espionagem. Chumaços de algodão para carregar microorganismos, punhados de areia em vidros de remédio, veneno de serpente em tubos de caneta, entre outros truques. Já houve casos de estrangeiros detidos por levarem artesanato indígena – e exemplares de folhas dentro das peças. “Fica impossível ‘farejar’ o material. São amostras muito pequenas transportadas de modo inusitado”, afirma o zootécnico José Leland Barroso, chefe do Departamento de Fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama).

Até a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), assinada na Rio-92, os tesouros de qualquer floresta do mundo eram de quem chegasse primeiro. “Qualquer um podia se apropriar dos recursos, pedir patente e vendê-los sob a forma de um medicamento”, diz o biólogo Bráulio Ferreira de Souza Dias, diretor de programas de conservação do Ministério do Meio Ambiente. “As nações ricas em biodiversidade não recebiam nada.”

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O consenso internacional sobre o assunto só veio com a ratificação da CDB por 144 países – exceto os Estados Unidos – e o reconhecimento da soberania de cada nação sobre a riqueza biológica em seu território. Os países signatários receberam a missão de criar uma legislação que regulasse o acesso à sua biodiversidade e que estabelecesse a repartição justa dos benefícios advindos da exploração deles. A partir de então, a apropriação do material genético alheio, por meio de registros de propriedade intelectual (as patentes), configura biopirataria.

Mesmo com a CDB, só na última década dezenas de substâncias da flora e da fauna de países do Terceiro Mundo foram patenteadas (veja quadro na página 55). Um exemplo é o rupununine, retirado das sementes do bibiru, árvore de Roraima. A substância apresenta um poderoso efeito anticoncepcional e sempre foi usada pelos índios wapixana. O químico britânico Conrad Gorinsky, da Fundação para a Etnobiologia, em Oxford, que conviveu anos com os índios da tribo, patenteou o composto em 1997. Gorinsky, que nasceu em Roraima e viveu lá até os 17 anos, registrou patente também sobre o cunaniol, um estimulante do sistema nervoso central retirado de uma planta venenosa usada pelos indígenas na pesca. Nem o Brasil nem os wapixana obtiveram qualquer benefício com as patentes.

“A legislação precisa contemplar as comunidades tradicionais, que têm seus conhecimentos associados aos recursos biológicos”, afirma a senadora acreana Marina Silva. Mas como definir a remuneração justa às comunidades que contribuíram, com saber milenar, para a produção de remédios modernos e lucrativos? Quanto vale a sabedoria ancestral de um povo? A Venezuela solucionou o problema criando um banco de dados com milhares de remédios indígenas. A cada vez que alguém acessa o banco, uma quantia é paga à tribo. O Brasil estuda adotar a mesma estratégia.

Até material genético humano gerou patentes. Uma cepa de lactobacilo do leite materno de mulheres peruanas foi patenteada – acredite – por uma indústria de laticínios sueca, a Biogaia. Os índios karitiana e suruí, de Rondônia, tiveram o sangue coletado pela empresa americana Coriell Cell. “Em 1993, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Samuel Lunenfeld, de Toronto, Canadá, tiraram sangue de quase todos os 300 moradores da ilha britânica de Tristão da Cunha, no Atlântico Sul”, diz Hope Shand, diretora da ONG canadense ETC, que combate a biopirataria. Esses povos vivem em lugares isolados, sem contato genético com o resto do mundo. Por isso, há uma chance grande de que a evolução tenha lhes dado genes que o resto da humanidade não tem, com possível valor terapêutico.

Outro jeito de saquear biodiversidade é cooptando o pesquisador local com pedidos de envio de amostras de material biológico. O bioquímico Frederico Arruda, da Universidade Federal do Amazonas, gerente-executivo da unidade do Ibama na Amazônia, já recebeu várias propostas desse tipo. Uma delas foi uma carta que solicitava a coleta e a remessa de peles de três espécies de rãs para o Instituto de Farmacologia Médica da Universidade La Sapienza, de Roma, na Itália. Os italianos pagariam por animal, no valor estipulado por Frederico. E o nome dele seria incluído na pesquisa como colaborador.

“A biopirataria está camuflada em convênios que prometem a publicação do trabalho no exterior e recursos para a pesquisa em troca da coleta de material”, diz Frederico. O cientista se embrenha floresta adentro para buscar as amostras desejadas pelas instituições estrangeiras. Em troca, um computador ou uma bolsa de estudos. Em 1997, o jornalista William Guimarães Gama, na época trabalhando no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), denunciou um acordo nesses moldes. Sua dissertação de mestrado tratou de um projeto do órgão americano Smithsonian Institution, apresentado ao Inpa em 1978 pelo cientista Thomas Lovejoy, do Departamento do Interior do governo dos Estados Unidos. O objetivo da parceria com o Inpa era estabelecer a área mínima de floresta necessária para a preservação de um ecossistema. Mas, 22 anos depois, o programa não tinha alcançado resultado nenhum. Em compensação, Lovejoy conseguiu um completíssimo inventário da biodiversidade da região.

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“Na ocasião, saíram do Brasil milhares de espécies, muitas sem autorização. Só de pássaros, foram 1 900”, afirma William. “O Smithsonian garante que o material não foi para lá. Mas eu tenho a guia de saída.” As denúncias geraram uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI da Biopirataria, em 2000, que investigou também as acusações contra Gorinsky. “Alguns casos foram comprovados e passados aos ministérios públicos dos Estados responsáveis”, diz a deputada federal Socorro Gomes, do PC do B paraense, que presidiu a CPI. Mas, até agora, ninguém foi punido, em parte porque sequer temos uma legislação permanente para tratar do assunto. A CDB só foi regulamentada no Brasil em junho de 2000, com uma Medida Provisória baixada pelo governo, que ainda precisa ser aprovada pelo Congresso para se tornar permanente.

A falta de legislação não é exclusividade brasileira. O mundo ainda engatinha quanto às leis de acesso aos recursos genéticos. Alguns países, como Filipinas e Índia, já elaboraram legislação específica. Mas foi a Costa Rica que largou primeiro. Em 1991, o Instituto Nacional de Biodiversidade do país (Inbio) criou o Programa de Bioprospecção. Em seguida, firmou um contrato com a multinacional alemã Merck. “Em todos os nossos acordos temos nos preocupado sempre em agregar valor a nossas amostras”, diz Lorena Guevara, coordenadora do programa costa-riquenho. Não se exporta nada em estado bruto, o Inbio nunca atua só como provedor. “A Merck envia relatórios anuais de patentes e, no caso de existir uma descoberta que chegue ao mercado, temos direito a benefícios.”

Muitos cientistas criticaram o convênio entre o Inbio e a Merck, argumentando que a Costa Rica vendera sua biodiversidade a preço de banana – 2,8 milhões de dólares por oito anos de bioprospecção. Crítica semelhante recebeu o contrato entre a gigante farmacêutica suíça Novartis Pharma e a Bioamazônia, uma empresa ligada ao governo federal brasileiro. O contrato previa a prospecção de 10 000 microorganismos em um ano, por 4 milhões de dólares. O acordo tinha várias irregularidades e acabou suspenso.

Mas não adianta barrar o acesso dos laboratórios às riquezas brasileiras. Temos algo que interessa a eles – a biodiversidade – e eles têm algo que nos interessa – tecnologia e dinheiro. O desafio é encontrar um modo de trocar um pelo outro, remunerando condizentemente os povos indígenas e o país, transferindo conhecimento técnico para os pesquisadores brasileiros e colocando, de modo justo e rentável, a riqueza biológica nacional a serviço da saúde do mundo. Se não acharmos um jeito de fazer isso de uma maneira conveniente para o Brasil, os piratas nos tirarão o tesouro de um modo conveniente só para eles.

O saque biológico

Todos estes organismos foram patenteados sem que o país onde eles crescem recebesse nada em troca

A tabela NÃO consta deste banco de dados

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