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Como remixar o DNA humano

A ciência já sabe como reescrever o DNA humano. Isso cria cenários apavorantes, mas abre caminho para a cura de quase todas as doenças.

Por Salvador Nogueira e Bruno Garattoni
Atualizado em 11 dez 2019, 09h46 - Publicado em 29 ago 2017, 13h02

Se um dia você tiver câncer, torça para não ser de pulmão. Mesmo se descoberto no estágio inicial, em que o tumor tem apenas 2 cm, ele mata metade das vítimas. Quando a doença chega à fase mais avançada, a taxa de óbito é de 99%. Desenganada pelos médicos, uma pessoa nessa condição aceitou participar de uma experiência da Universidade de Sichuan, na China, em novembro. Os cientistas coletaram linfócitos T (células do sistema imunológico) desse paciente e, usando uma nova técnica, que tem sido considerada o maior avanço científico das últimas décadas, desligaram um gene dessas células – que, então, foram reinjetadas no paciente. Graças ao ajuste no DNA, elas mudaram completamente de comportamento: saíram atacando os tumores, cujas defesas “aprenderam” a driblar. Até a conclusão desta edição, o indivíduo (cujo nome, sexo e idade não foram divulgados) continuava vivo.

Ninguém se oporia a uma intervenção genética para tentar salvar um doente terminal. Mas e mexer no DNA de embriões humanos, alterando características de uma pessoa antes mesmo de ela nascer? Isso já é comum. Cientistas chineses começaram editando embriões defeituosos, descartados por clínicas de fertilidade. Conseguiram eliminar neles a talassemia, doença hereditária que causa anemia. Depois, tentaram tornar outros embriões imunes ao vírus HIV. Os dois experimentos já partiam de embriões com muitos problemas genéticos e não virariam bebês nem se fossem implantados num útero. Foram escolhidos para evitar polêmica, mas davam poucas pistas sobre o que aconteceria com embriões sadios.

Recentemente, os chineses cruzaram mais essa barreira – biológica e ética – ao usar embriões feitos com óvulos imaturos. Eles também são descartados por clínicas de fertilidade, mas já geraram muitos bebês saudáveis. O novo experimento voltou a corrigir mutações que causam anemia. A técnica foi aplicada ao embrião enquanto ele ainda era composto de uma única célula, a que se replica durante a gestação até formar todas as outras. Em seis tentativas, os pesquisadores conseguiram um embrião totalmente curado das mutações e outros dois parcialmente modificados. Os cientistas interromperam o desenvolvimento desses embriões.

Agora, a última fronteira teria caído. O cientista chinês He Jiankui, da Universidade de Ciência e Tecnologia do Sul de Shenzhen, anunciou na última quarta, 28/11, o nascimento de um par de gêmeas imunes ao HIV. O DNA delas teria sido editado na fase embrionária de modo que as crianças nascessem resistentes ao vírus.

O experimento ainda não passou pela revisão de outros cientistas. Portanto, ainda não está oficialmente comprovado. Mesmo assim, He Jiankui fez o anúncio. E a polêmica instaurou-se. No dia seguinte, o governo da China ordenou a suspensão de todas as pesquisas com edição de genes humanos.

No futuro, a mesma técnica poderá ser usada para fazer todos os tipos de modificação – inclusive aquelas que parecem saídas da ficção científica, como criar soldados hiperfortes e até ressuscitar espécies extintas (sim, geneticistas de Harvard estão usando a CRISPR/Cas para alterar 45 genes de elefante asiático de modo a criar um mamute). Bom, uma vez feitas num indivíduio, as alterações no DNA passam para os descendentes dele.

Trata-se uma mudança profunda, que pode transformar a vida na Terra – mas que obviamente tem um lado controverso: ela transforma pessoas em cobaias. A técnica de edição pode acabar atacando, sem querer, trechos de DNA que não têm nada a ver com a situação que está sendo resolvida. Uma tentativa de imunizar contra o HIV, ainda que bem sucedida, pode criar um câncer lá na frente. Aí é matar a vaca para a acabar com carrapato.

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E quem banca o risco é uma pessoa, não um ratinho de laboratório. Se já existem discussões pesadas sobre se devemos ou não usar embriões em pesquisas científicas, há um consenso sólido sobre jamais usar pessoas.

Além disso, há o velho fantasma da eugenia. Quando a edição genética estiver completamente desenvolvida, o mundo pode acabar dividido em duas classes de seres humanos – os que tiveram seu DNA editado para nascerem mais altos, mais fortes, mais inteligentes; e o resto. Seria um mundo como o do filme Gattaca, de 1997, que mostra um futuro em que os humanos são separados em “válidos” (gerados por técnicas de edição genética) e “inválidos” (concebidos pelo bom e velho método de transar e deixar rolar o sorteio dos genes).

“Gattaca nunca esteve tão perto”

Distopias à parte, a técnica de edição de DNA nasceu num lugar bem prosaico: o iogurte. Na década passada, dois cientistas da empresa de biotecnologia Danisco estudaram o genoma da bactéria Streptococcus thermophilus, usada para fazer iogurte. Queriam tornar a bactéria mais produtiva e resistente. Ao analisar seu código genético, encontraram passagens estranhas, com trechos que se repetiam sem motivo aparente.

Eles foram batizados de CRISPR, abreviação em inglês para “repetições palindrômicas curtas interespaçadas regularmente e agrupadas”. Ninguém deu muita bola. Alguns anos depois, descobriu-se para o que aquilo servia: era um sistema de defesa das bactérias. Naquelas sequências repetitivas, elas guardam trechos de vírus com os quais tiveram contato. Quando uma bactéria é atacada por um vírus, consulta esses códigos para identificá-lo – e então libera uma proteína, chamada Cas, que picota o DNA daquele vírus e o mata.

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É um sistema incrivelmente simples e eficiente, que evoluiu ao longo de bilhões de anos. Cientistas de Harvard e do MIT aprenderam a controlá-lo – e batizaram a técnica de CRISPR/Cas. Ela pode ser usada para manipular, com rapidez e precisão inéditos, o DNA de qualquer ser vivo. Mas você deve estar se perguntando: qual a novidade? Já não temos animais e plantas transgênicas, afinal? Sim. Mas nada parecido com o que poderá existir daqui para a frente.

Edição às cegas

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3 genes modificados bastaram para tornar ratos imunes à obesidade. (Dulla/Superinteressante)

A engenharia genética é ciência de ponta, mas suas técnicas são surpreendentemente limitadas. Até a descoberta da CRISPR/Cas, os pesquisadores usavam métodos toscos, como atirar “projéteis” cheios de material genético dentro das células para ver o que acontecia. Não havia controle. Ninguém sabia se o novo gene iria mesmo “colar” ou em que trecho do DNA ele se encaixaria – nem se, uma vez inserido, iria funcionar. Era um show de tentativa e erro.

Funciona para algumas coisas, como criar um tipo transgênico de milho. Você vai atirando no escuro até obter algum resultado – e depois cuida daquela linhagem com muito carinho, para não ter de repetir o processo todo. Já as tentativas de mexer no DNA humano sempre foram marcadas pela ineficiência e pelos riscos. O primeiro a pagar o preço disso foi o americano Jesse Gelsinger. Em 1999, aos 18 anos, ele participou de um teste clínico realizado pela Universidade da Pensilvânia para tratar uma doença do fígado, causada por uma mutação genética. Um vírus seria usado para inserir, no DNA de Jesse, um gene que ele não tinha. O garoto morreu quatro dias depois.

As técnicas vêm melhorando, já salvaram várias vidas, mas ainda são complicadas e se mantêm em nível experimental. Já a ferramenta CRISPR/Cas é completamente diferente. Ela é simples, barata e permite fazer uma intervenção cirúrgica no genoma do indivíduo.

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A nova técnica detonou uma verdadeira corrida na comunidade científica. Harvard e o MIT usaram a CRISPR/Cas para mexer em três genes de ratos – e os dentuços se tornaram imunes à obesidade. Na Universidade Stanford, cientistas alteraram o DNA de um peixe para retardar o desgaste dos telômeros, as pontinhas dos cromossomos, que vão encurtando ao longo da vida e acabam atrapalhando a replicação celular, o que faz todo ser vivo envelhecer e morrer. A ideia é aumentar a expectativa de vida dele em 10% – e, se der certo, testar isso em pessoas. A empresa AstraZeneca está testando uma cura definitiva para o colesterol – em fevereiro, conseguiu fazer isso em ratos, mexendo num gene que controla os níveis de colesterol no sangue. Existe até quem acredite, como um grupo da Universidade de Minnesota, que seja possível aumentar a inteligência humana, interferindo em genes ligados ao desenvolvimento do cérebro. Tudo isso aconteceu nos últimos meses – e tudo graças à CRISPR/Cas.

A ferramenta é revolucionária porque, além de apagar trechos do DNA, também permite substituir pedaços dele. A CRISPR identifica o teco a ser excluído, a Cas arranca ele fora, e aí o próprio mecanismo de reparo natural das células faz o resto: pega o outro pedacinho de DNA, aquele que você quer inserir, e coloca no buraco deixado pela edição. A célula sobrevive, se replica, e aos poucos vai substituindo as células antigas, alterando o DNA do organismo inteiro.

Isso significa que é possível fazer alterações genéticas profundas em nossos corpos – mesmo depois de atingirmos a idade adulta. Em sua aplicação mais poderosa, a tecnologia de edição genética pode dar ao ser humano controle sobre todos os organismos vivos, subvertendo as regras mais básicas da evolução. O único problema é que isso pode ser um tremendo desastre.

Bomba genética

Dificilmente você vai encontrar um mecanismo de evolução mais poderoso do que a seleção natural. Ela trabalha com variação genética e seleciona os indivíduos mais aptos à sobrevivência. Mas, usando a CRISPR/Cas, você pode roubar no jogo evolutivo, introduzindo genes num organismo com a garantia de que eles passarão às gerações seguintes.

Um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego fez exatamente isso com mosquinhas drosófilas. Eles introduziram um gene mutante, que alterava a pigmentação delas. Essa característica passou para 97% dos filhotes das moscas. Ou seja: os pesquisadores acharam um jeito de transformar uma espécie inteira de uma vez, sem precisar editar o DNA de cada indivíduo. A própria reprodução da espécie se encarrega disso. Oefeito foi batizado de “reação em cadeia mutagênica”.

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Em outras experiências, os cientistas conseguiram alterar mosquitos para que eles não fossem mais capazes de abrigar o parasita Plasmodium – impedindo a transmissão da malária. Depois, eles alteraram um grupo de mosquitos para tornar todas as fêmeas inférteis, extinguindo uma população inteira como num passe de mágica. Mas, espera um pouco: aí já não é poder demais?

“A comunidade científica está eticamente madura para lidar com a técnica”, acredita o geneticista Sergio Danilo Pena, da UFMG. “Estamos prosseguindo com cuidado. Os avanços tornarão a CRISPR/Cas mais segura e confiável, como já ocorreu com toda a área de engenharia genética e transgênicos”, diz.

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97% dos descendentes de moscas transgênicas herdam as alterações no DNA dos pais. (Dulla/Superinteressante)

Cortes contra o câncer

Pesquisadores da empresa farmacêutica Sangamo, nos Estados Unidos, já iniciaram o primeiro teste clínico de uma terapia gênica baseada em CRISPR/Cas, para tratar hemofilia em adultos. No Reino Unido, uma tecnologia similar salvou uma menina de 1 ano que tinha leucemia em estado terminal. As proteínas, conhecidas pela sigla TALEN, modificaram células T de defesa do organismo de doadores, de forma que elas atacassem especificamente as células leucêmicas.

A edição genética, aliás, é especialmente promissora para tratar câncer. Tumores são, basicamente, células do nosso organismo que sofreram mutações e “viraram do mal”. As novas tecnologias podem ajudar a mirar os ataques nas células doentes ou até mesmo tentar corrigir o tecido tumoral.

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“Tudo vai mudar a partir de agora”, prossegue Sergio Danilo Pena. “Os maiores efeitos econômicos serão na engenharia genética de plantas e outros organismos não humanos. Mas existe uma atenção maior à questão da modificação genômica em humanos.”

E aí entra uma segunda controvérsia. Será que no futuro nossos genomas serão “enriquecidos” para nos tornar mais inteligentes e bonitos? Aí a coisa fica complicada.

“Gattaca nunca esteve tão perto”, diz o biólogo molecular Sandro de Souza, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. “Não podemos fugir dessa discussão no longo prazo.”

Para Souza, a discussão fica muitas vezes enviesada pelo “politicamente correto”. “Ou pior, por motivações religiosas [que pregam que ‘não se deve brincar de Deus’]. Mas, se quisermos que a humanidade progrida, não podemos abrir mão de tecnologias desse tipo.”


Reportagem atualizada em 1/12/2018

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