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Que bicho vai dar?

A engenharia genética está dinamitando os muros entre espécies e organismos distantes ao misturar os seus genes. No próximo cardápio, mosquitos e bananas que vacinam, algas que fulminam insetos e vacas que fazem remédio.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h53 - Publicado em 28 fev 1999, 22h00

Marcelo Leite

Ir ao supermercado está se tornando uma experiência perturbadora. Hoje, na Europa, no Japão e nos Estados Unidos, já se bota no carrinho um monte de frankensteins que são misturas de plantas – milho, soja, batata – com bactérias de vários tipos. Esquisitices que logo devem passar a ser vendidas também no Brasil. Mas os laboratórios estão trabalhando pesado para colocar nas prateleiras produtos ainda mais extravagantes. Não estranhe se, no futuro, sua lista de compras incluir rosas com aroma de limão ou se, a caminho do mercado, sem quase perceber, você levar uma saudável picada de um inseto vacinador.

Não é brincadeira, não. A última novidade da engenharia genética é um mosquito que vacina. Ele recebeu um gene do micróbio que causa a malária e, depois, quando picou ratos, deixou-os imunes ao parasita perigoso (veja na página 58). Agora a batalha é fazer com que funcione também em humanos.

Novos organismos geneticamente modificados, os OGMs (guarde essa sigla, você vai ouvi-la muitas vezes) aparecem todo dia. O princípio geral é usar bichos ou plantas como fábricas biológicas. Muda-se uma instrução – um gene – no seu programa bioquímico e ele passa a produzir substâncias de interesse do homem: inseticida, plástico, essências perfumadas, hormônios.

A área que primeiro percebeu as vantagens da técnica foi a agricultura. Com ela, criou grãos resistentes a herbicidas e batatas que matam besouros – as novas plantas já estão sendo produzidas em vários países, apesar da gritaria pedindo mais pesquisas sobre os riscos para a saúde do homem e da natureza (veja a seção Superintrigante, na página 18). Agora é a vez da medicina e da farmacologia. Elas estão picando e emendando genes com resultados que podem mudar a paisagem do século XXI.

* Marcelo Leite é repórter especial do jornal Folha de S.Paulo

A meio caminho da plantação de vacinas

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Quando ouve falar de engenharia genética, muita gente fica imaginando monstros de ficção científica ou bichos bizarros como sapos que pensam. Não. Ao que tudo indica, a tecnologia não deve chegar a produzir anfíbios intelectuais. Mas pode inventar – e já está inventando – seres muito estranhos, embora sob uma aparência normal.

Veja o caso da batata do botânico Charles Arntzen, do Instituto Boyce Thompson de Pesquisa com Plantas, na Universidade Cornell, Estados Uni dos. No ano passado ele acrescentou um gene de bactéria ao DNA do vegetal e transformou-o em vacina contra a diarréia provocada pela bactéria Escherichia coli (veja o infográfico). Não se sabe exatamente quantas mortes essa bactéria causa, mas 14 000 pessoas morrem todo ano no Brasil vítimas de infecções intestinais. A vacina de Arntzen certamente reduziria esse drama.

“É a medicina natural moderna”, disse o pesquisador à SUPER, animado com o resultado que seu tubérculo produziu em humanos. De onze adultos que o comeram, sob a orientação da médica Carol Tacket, da Universidade de Maryland, Estados Unidos, dez quadruplicaram a produção de anticorpos contra a toxina. Mas um problema sério ainda precisa ser resolvido. Para funcionar bem, a batata-vacina deve ser igerida crua. Eca! Quem vai querer? Para enfrentar essa dificuldade, Arntzen guarda uma banana no bolso do colete. Ele vai refazer o experimento com a fruta de modo a ver se ela pode representar o papel da batata. Muito mais palatável. Além disso, na Escola de Medicina da Universidade de Loma Linda, na Califórnia, o biólogo molecular William Langridge já desenvolveu uma outra batata que imuniza contra a cólera. A nova iguaria é capaz de preservar ao menos metade do seu efeito quando cozida. Ou seja, há esperança.

Ninguém mais está encarando a idéia de plantar vacinas como maluquice. O pesquisador de Cornell acha até que uma única fruta poderia imunizar contra várias doenças. Imagine que maravilha. Não haveria problemas com transporte e refrigeração, talvez a maior dificuldade logística das campanhas de vacinação. “Vacinas comestíveis oferecem possibilidades animadoras para reduzir o peso de males como hepatite B e diarréia”, festejou o médico Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, em comunicado sobre a pesquisa de Arntzen. Claro, países pobres que têm problemas para importar ou estocar em condições adequadas as drogas imunizadoras poderiam simplesmente plantá-las.

De acordo com o botânico de Cornell, porém, ainda deve levar quase uma década para sua batata chegar aos postos de saúde. “Adoraria ver nosso primeiro produto no mercado em quatro ou cinco anos, mas a aprovação oficial pode aumentar bem esse prazo”, disse ele à SUPER. De qualquer jeito, o remédio de Arntzen já conseguiu um efeito: deixar boquiaberta a platéia de uma conferência da ONU em dezembro passado.

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Um inseto candidato a doutor

Você achou a batata-vacina esquisita? Então, que tal pensar em um mosquito com gene de micróbio que produz vacinas sozinho e já cuida da aplicação, por meio de picadas? Não, você não entendeu errado. É exatamente isso: em lugar da agulhada, uma coceirinha. Pronto, está feita a imunização.

Esse bicho improvável já existe. Foi criado por pesquisadores da Escola de Medicina Tropical da Universidade de Liverpool, no Reino Unido, que pretendem transformá-lo numa possível arma para combater a malária. Mas isso não vai ser fácil. A doença, que ataca anualmente quase meio bilhão de pessoas e causa de 1 milhão a 3 milhões de mortes em 102 países, mobiliza equipes do mundo inteiro há décadas e ninguém ainda chegou a uma vacina.

Cauteloso, o inglês Julian Crampton, criador do mosquito de Tróia – o mesmo que transmite a dengue mas no caso portador de genes do parasita causador da malária (veja o infográfico) –, faz questão de ressaltar que ainda está trabalhando com cobaias. Ele não minimiza as dificuldades que terá de enfrentar até chegar aos humanos. “O problema é enorme. Temos de explorar todas as avenidas em busca de uma solução, ainda que não tenhamos muita certeza sobre aonde elas vão dar”, justificou Crampton à SUPER.

Seu argumento em favor da vacina zumbidora é semelhante ao que suporta a batata antidiarréia: ela é uma oportunidade de baixar os custos para os governos, possibilitando uma ação mais eficaz dos agentes da saúde pública. Entre as reações meio desconfiadas que o pesquisador de Liverpool tem enfrentado estão dúvidas gigantescas sobre como poderia se dar o controle desse tipo de vacinação. Os insetos transgênicos ficariam soltos por aí? E a dosagem, como poderia ser medida? Crampton nem quer entrar nesses assuntos. Ele insiste em dizer que seu trabalho é uma pesquisa, não o desenvolvimento de um produto. Por enquanto, se contenta em dominar a biologia do inseto, que, sabe, é perigoso demais para ser usado nos países em que transmite a dengue, como o Brasil.

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Dieta rigorosa

O mosquito inglês não é o único ser estranho que está sendo gerado com a finalidade de combater a malária. Dov Borovsky, bioquímico da Universidade da Flórida, inventou uma alga assassina para matar os mosquitos anófeles, que transmitem a doença. Ele descobriu, entre os hormônios da fêmea do mosquito, um que, em grandes quantidades, é desastroso para o seu próprio sistema digestivo. Separou o gene que fabrica a substância e o emendou com o das algas microscópicas do gênero Chlorella, que infestam as águas onde o inseto costuma procriar. É como se as plantas fossem aditivadas com um Xenical, o remédio para emagrecimento que ficou famoso recentemente. Só que este, radical e dirigido unicamente ao anófeles, mata todinha a sua prole.

A arma biológica, que em três dias dizima milhões de larvas, incapacitadas de assimilar a comida que ingerem, poderia chegar ao mercado dentro de um ano e meio, estimam seus criadores. Mas eles ainda precisam provar que não haveria riscos de desequilíbrio ambiental. Ou seja, que a alga não será mesmo devorada por outros insetos que não têm nada a ver com o problema.

É uma luta na qual começa a valer de tudo. Até leite de rata. Trabalhando em colaboração com os Institutos Nacionais de Saúde do governo dos Estados Unidos, os pesquisadores da empresa americana Genzyme Transgenics já conseguiram ordenhar de roedoras transgênicas quantidades razoáveis do antígeno MSP-1, um forte candidato a vacina antimalária. Mas fique tranqüilo: você não precisará bebê-lo. O leite tirado das ratinhas – que, como o inseto vacinador, receberam genes do protozoário Plasmodium berghei – será transformado em vacinas convencionais. Só que elas sairiam bem mais caras se fossem feitas sem a ajuda do organismo das cobaias.

Leite que já vem com remédio

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Lembra-se da Dolly, a ovelha clonada a partir de uma célula adulta que causou alvoroço em 1997? Pouca gente sabe, mas o Instituto Roslin, da Escócia, não fez o bicho só pelo prazer de ser pioneiro. A pesquisa era uma parceria com a empresa PPL Therapeutics. Como o nome diz, o negócio da empresa são remédios, e não clones. Dolly só foi gerada porque criadores de ovelhas transgênicas precisam obter de maneira mais rápida exemplares muito bons naquilo que interessa: produzir drogas no leite. Normalmente, só 5% dos animais que recebem genes estrangeiros incorporam-no ao seu DNA e, mesmo entre esses, varia muito a quantidade da substância-alvo secretada. A saída é escolher as melhores fêmeas e criar um rebanho idêntico a elas.

Por esse motivo, também foi de grande importância o nascimento de Polly, anunciado quase um ano depois. Como Dolly, era um clone, mas também um animal transgênico. A cópia carregava um gene humano que força as glândulas mamárias a produzir o fator IX de coagulação do sangue, usado no tratamento da hemofilia.

Os fabricantes de remédios estão alucinados com o transleite, que poderá reduzir muito os seus custos. As ovelhas da PPL já produzem o AAT, componente do sangue humano usado para tratamento de problemas nos pulmões, como enfisema crônico e fibrose cística. A empresa americana Genzyme garante que já teve sucesso na produção de 25 outros compostos. Um deles é a albumina humana, a proteína mais abundante no sangue, que serve principalmente para manter o seu volume. Os cirurgiões usam muita albumina e ela também é útil no tratamento de queimaduras. Hoje, consomem-se no mundo 440 toneladas por ano da substância, que é extraída do sangue de doadores.

E por aqui?

O Brasil ainda engatinha nesse mundo de colchas de retalhos genéticos. Mas nossos cientistas dominam, há anos, uma das técnicas mais populares para introduzir DNA alheio nas células, o canhão de genes (veja o infográfico). Há, também, vários laboratórios investigando vacinas de DNA contra uma série de doenças em que a própria molécula dos genes é usada como antígeno. Um dos maiores especialistas nisso é Sérgio Costa Oliveira, chefe do Laboratório de Imunologia de Doenças Infecciosas da Universidade Federal de Minas Gerais. Ele pesquisa uma vacina genética para esquistossomose e também outras de interesse veterinário (contra brucelose e herpesvírus bovino). “Caminhamos mais devagar, talvez pela falta de recursos. Mas sabemos que lá fora essas tecnologias estão em alta total”, afirmou Oliveira à SUPER.

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A farmácia biotecnológica pode, portanto, demorar um pouco para instalar-se por aqui. Mas isso não significa que você levará muito tempo para ter contato com os seres transgênicos. É bem possível que até já tenha provado um deles. Como não há separação nem rotulação, as indústrias de batatas chips americanas – que exportam aos montes para o Brasil – não excluem a hipótese de já ter usado uma batata transgênica que mata besouros, cultivada nos Estados Unidos. Ou seja, você já pode ter consumido a nova natureza sem saber.

Para saber mais

Manual de Transformação Genética de Plantas, V.T.C. Carneiro, Embrapa-SPI/Embrapa-Cenargen, Brasília, 1998

The Biotech Century: Harnessing the Gene and Remaking the World, Jeremy Rifkin, Tarcher/Putnam, Nova York, 1998

Remédio na horta

Batata com gene de bactéria deixa o organismo esperto para combater a diarréia

No laboratório

1. A toxina que causa a diarréia tem duas partes. O pedaço verde se encaixa na parede do intestino e abre caminho para o pedaço azul entrar, provocando a doença.

2. Os cientistas copiaram o gene da bactéria Escherichia coli que desencadeia a produção da toxina e o modificaram, de modo que só ordenasse a fabricação da parte verde.

3. A nova seqüência, implantada numa molécula circular de DNA bacteriano, foi contrabandeada para dentro da bactéria Agrobacterium tumefaciens e esta para a célula da planta. Os genes da Agrobacterium, então, se misturaram com os da célula da batata.

4. Cultivado, o vegetal produziu batatas com células recheadas da parte verde da toxina.

5. Quando ingeridas, as semitoxinas se encaixam nos receptores da parede intestinal.

6. A invasora, ainda que inócua, estimula a produção de anticorpos. Quando há uma nova infecção, esses anticorpos grudam na parte verde da toxina, impedindo-a de se ligar ao intestino.

O mosquito de Tróia

Uma picada de Aedes aegypti, o transmissor da dengue, já faz o organismo de ratos reagir contra a malária.

O Aedes foi escolhido porque se sabe que o organismo humano reage a quatro substâncias contidas em sua saliva, produzindo anticorpos

1. Os biólogos pegaram um gene do protozoário Plasmodium berghei, que causa a malária, e acrescentaram a ele o trecho do DNA do mosquito que dá o sinal para sua glândula salivar fabricar proteínas. Ela passa, então, a produzir uma proteína a mais, a Pbs21, normalmente produzida pelo protozoário.

2. O gene modificado foi injetado, com uma microagulha, em embriões do mosquito.

3. Quando atingiram a fase adulta, os insetos picaram as cobaias.

4. A proteína estranha, embora não cause a doença, desencadeou um alerta geral no organismo dos ratos e suas células de defesa começaram a atacá-las. A memória desse combate ficou gravada em anticorpos que deixaram o organismo dos roedores muito mais rápido e eficiente para reagir a futuras invasões do protozoário.

Canhão genético

Inventado em 1987, ele injeta DNA em células de vegetais e de animais.

Projéteis de um metal pesado como ouro ou tungstênio ganham um banho do gene que se quer inserir na célula da planta ou do animal. Usam-se dois calibres: para células vegetais, 1 milésimo de milímetro; para animais, 2 a 3 milésimos.

1. Uma cápsula de gás hélio sob pressão estoura atrás de um suporte em que foram depositadas as microbalas do revólver. Seu deslocamento alcança até 1 500 quilômetros por hora.

2. Uma tela no meio do caminho segura o suporte, mas não os projéteis. Eles entram nas células da amostra levando os genes de carona.

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