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Sagrados e malditos

Em 9 mil anos de convívio com as pessoas, os gatos já foram perseguidos e idolatrados. Considerados deuses ou demônios. Mensageiros de boa sorte ou de muito azar

Por Gisela Blanco
Atualizado em 31 out 2016, 18h37 - Publicado em 20 abr 2012, 22h00

Feitiçaria, orgia, traição sexual, baderna e massacre. Os homens do Antigo Regime podiam escutar muita coisa no gemido de um gato”, diz o historiador americano Robert Darnton no livro O Grande Massacre dos Gatos. Foi um período nebuloso para os pequenos felinos. Com a queda do Império Romano, a Europa medieval foi dominada por uma Igreja Católica carregada de superstições. “Naquela época, todos que fossem contrários à doutrina cristã eram bruxos, e toda bruxa possuía um gato”, diz o professor de veterinária Archivaldo Reche, da USP.

Com hábitos noturnos, olhos que brilham no escuro, caminhar silencioso e uma resistência física fora do comum, os gatos pareciam mesmo ser de outro mundo. Nasciam superstições como a de que eles, e principalmente os de pelos pretos, seriam bruxas disfarçadas. Vem dessa época a lenda de que cruzar com um gato na rua era sinal de mau agouro. E por muito tempo foi mesmo – não para nós, mas para eles. Em 1484, o papa Inocêncio 8o chegou a incluir os gatos pretos na lista de hereges perseguidos pela Inquisição.

Morreram tantos deles nas fogueiras da Idade Média que os ratos começaram a se multiplicar rapidamente. Livres de seus caçadores, devastaram a população europeia em meados do século 14, carregando as pulgas que transmitiam a peste bubônica. Foram mortos cerca de 75 milhões de homens, mulheres e crianças, um terço da população da época. Uma tragédia que poderia ter sido atenuada se não tivessem sido atirados tantos paus nos gatos medievais.

Aquela era de trevas era um tanto estranha para bichos que começaram sua história como deuses. No Egito antigo, 4 mil anos atrás, eles eram a representação viva da deusa Bastet, símbolo da fertilidade. Foram encontrados mais de 300 mil felinos perfeitamente mumificados – muitos deles enterrados em lugar de honra, ao lado da múmia de faraós. Gatinhos com a aparência do mau-egípcio e do abissínio – raças que lembram as mais antigas – aparecem em esculturas e pinturas rupestres, por vezes carregados de adornos e joias.

Foi ali perto que, há pelo menos 9 mil anos, antes mesmo da invenção da roda e da escrita, surgiam os primeiros laços afetivos entre homens e gatos. Na região entre Israel e Iraque conhecida como Crescente Fértil, se estabeleceram os primeiros povoados. Para deixarem de ser nômades, essas aldeias precisaram começar a cultivar e então estocar comida, principalmente cereais. E a livrá-la dos ratos. É aí que entram os gatos.

Os gatos selvagens africanos (Felis silvestris catus) que conseguiam se aproximar dos homens sem medo conseguiam mais comida e se reproduziam mais. Nascia assim a forma doméstica do animal, chamada cientificamente de Felis silvestris libyca. Esse animal, mais dócil, se espalhou pelo mundo a bordo de navios mercantes e expedições colonizadoras. Encantou monges budistas no Japão e bárbaros vikings. Em diversos desses lugares, o gato foi muito mais que um animal doméstico. Ganhou status divino, símbolo de boa sorte ou representante das trevas.

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O primeiro gato que chegou ao Japão foi um presente para o imperador Ichijo, no ano 999. Logo o bicho virou símbolo nacional: o Maneki-Neko, um boneco que lembra um gato da raça bobtail-japonês com a patinha direita levantada, está em quase todas as casas do país, desejando boa fortuna a quem se deparar com ele. Os gatos também são sagrados no Camboja: acredita-se que possam atrair chuvas às plantações. Não muito longe dali, em países como a China, o Vietnã e a Coreia, os gatos também entraram rapidamente nas casas de toda a população. Só que dessa vez, pela porta da cozinha. Até hoje, os moradores dessa região acham que a sopa de gato dá energia a mulheres idosas.

De fato, está comprovado que eles fazem bem aos seres humanos. Só que vivos. “Estudos recentes mostram que afagar um animal doméstico, como o gato, abaixa a pressão arterial, o que faz com que eles sejam recomendados como uma companhia para hipertensos”, afirma o veterinário Archivaldo Reche.

O misticismo em torno dos gatos não é coisa do passado. Ainda hoje há quem acredite que eles possam prever o futuro. Um estudo da Universidade de Veterinária de Azabu, no Japão, investiga se gatos domésticos podem prever terremotos. Os pesquisadores suspeitam que os animais conseguem detectar ondas eletromagnéticas de tremores a partir do nível 6 da Escala Richter, pouco tempo antes de os humanos sentirem a terra tremer. Agora só precisam descobrir como exatamente eles fazem isso.

Nos Estados Unidos, em 2007, um gatinho aparentemente comum intrigou a comunidade médica. Oscar tinha um dom: prever a morte dos pacientes com doenças degenerativas da clínica Steere House, onde vive. Sempre que visitava um dos internos, a família era informada que o pior estava por vir. Segundo seus cuidadores, foram nada menos que 50 acertos. A história foi publicada em um artigo médico e virou livro em 2010. No livro, escrito pelo geriatra do hospital, David Dosa, ele sugere que talvez o gato consiga farejar células morrendo, assim como alguns cães são capazes de farejar câncer. Se Oscar tivesse vivido no antigo Egito, certamente teria sido mumificado e endeusado. Já se sua época fosse a Idade Média…

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AS MAIS ANTIGAS 

As raças de gato que conviveram com faraós no Egito e imperadores no Japão

Muitas das raças ancestrais foram extintas, mas criadores conseguiram reproduzir e preservar algumas fazendo cruzamentos com outras raças – e só então muitas delas foram registradas. O que inclui gatos com a aparência do mau-egípcio, raça que provavelmente habitava as pirâmides, mas foi registrada oficialmente apenas em 1950. Ou o acinzentado chartreux, conhecido como o gato oficial da França desde o século 17.

Mau-Egípcio
Origem – Egito, apareceu em papiros do ano 1000 a.C.
Registro oficial – 1950.

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Bobtail-Japonês
Origem – Japão, conhecido no país há mais de mil anos
Hoje a maior parte dos gatos de rua do Japão tem o rabo curto. Diz a lenda que foi por causa de um decreto no século 17 que obrigou os japoneses a soltarem seus gatos. O motivo: aumentar a população de gatos de rua para combater roedores que matavam o bicho-da-seda.

Siberian
Origem – Leste da Rússia, século 19
Registro oficial – Década de 1980

Khao Manee
Origem – Tailândia, antes do século 14
Registro oficial – 2009

Korat
Origem – Tailândia, século 14
Aparece no Tamra Maew, Livro de Poemas do Gato, escrito provavelmente entre os anos 1350 e 1767. No manuscrito ilustrado tailandês, o korat ganhava destaque por suas cores intrigantes.

Abissínio
Origem – Etiópia ou Egito, milhares de anos
Um gato muito parecido com ele figurava em pinturas egípcias, o que sugere que a raça existe há milhares de anos. Seus registros oficiais começam no século 19, quando foi levado da Abissínia (hoje Etiópia ) para o Reino Unido.

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