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Semente de fúria

Uma nova teoria sobre as raízes da agressividade humana abala tudo que já foi dito sobre violência: ela pode ter origem na autoestima e no amor-próprio

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h47 - Publicado em 31 Maio 2001, 22h00

Jomar Morais

Lembra de Patrick Bateman, o protagonista de Psicopata Americano, uma extraordinária mistura de sátira, drama e terror exibida em fevereiro passado nos cinemas brasileiros? Pois bem, qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência.

Patrick, representado pelo ator Christian Bale, é um jovem executivo de Wall Street, vaidoso e obstinado, cuja rotina diária de cuidados com a aparência incluem 1 000 abdominais, esfoliante de amêndoas no corpo, creme calmante de menta para o rosto. No início da manhã, Patrick se delicia com a própria imagem diante do espelho. No resto do dia, disputa com os colegas a primazia de ostentar os símbolos de status mais cobiçados – dos sapatos e ternos de grife às melhores mesas em restaurantes chiques. Que ninguém ouse superá-lo. Este homem de voz modulada e gestos estudados transforma-se em um monstro sangüinário cada vez que a sua sensação de superioridade é ameaçada. Nessas ocasiões, a carnificina não tem limites. A machadadas ele esquarteja um colega, a golpes de serra elétrica destrói amantes, com uma faca afiada assassina o mendigo que o incomoda com sua indigência. O sangue jorra da tela a cada metamorfose desse cavalheiro bem-sucedido que é o estado da arte do egocentrismo, da ambição e do narcisismo.

Freud explica Patrick? Não exatamente. Aliás, nem a psicanálise nem qualquer outra vertente da psicologia conseguiu até hoje esclarecer todo o mistério que envolve a violência. O que transforma uma pessoa aparentemente normal e bem-sucedida em uma bomba de efeito retardado cuja agressividade fere e, às vezes, mata? O executivo de Psicopata Americano parece talhado para justificar a mais recente teoria sobre a agressividade humana, resultado de estudos realizados por Roy Baumeister, doutor em psicologia social pela Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, e seu parceiro Brad Bushman, da Universidade Estadual de Iowa. Segundo os dois pesquisadores, a causa dessas explosões de violência está – pasme! – justamente na elevada auto-estima, no senso de amor-próprio que, supõe-se, move as pessoas em direção ao sucesso e à auto-realização.

Esse raciocínio levou Baumeister a escrever o livro Relation of Threatened Egotism To Violence And Agression: The Dark Side Of High Self-Esteem (Conexão entre o egoísmo ameaçado e violência e agressão: o lado escuro da alta autoestima), ainda inédito no Brasil.

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Trata-se de um balanço que atinge em cheio tudo o que se pensou e escreveu até agora sobre as raízes da violência. Afinal, os estudos sobre comportamento humano são praticamente unânimes em afirmar que indivíduos altamente agressivos agem assim, movidos, entre outros fatores, por uma auto-imagem negativa, um nível baixíssimo de auto-estima que os coloca permanentemente em situação de inferioridade diante de outras pessoas. A crença de que isso é uma verdade irrefutável é tão forte que, nos últimos anos, tornou-se moda em muitas escolas americanas a prática de uma divertida dinâmica grupal. Alunos são convidados a listar os motivos que os fazem sentirem-se pessoas especiais e admiráveis e, em seguida, entoam músicas de autocelebração. O objetivo do exercício é massagear o ego da garotada, fortalecer a auto-estima de crianças e adolescentes e, com isso, ajudá-los a controlar a agressividade e a integrarem-se socialmente. Com a nova teoria de Baumeister e Bushman, essa prática deixa de ter sentido.

“Inflar o ego de alguém pode ampliar substancialmente as chances de que ele cometa agressões”, diz Baumeister. Ao estudar indivíduos anti-sociais – como membros de gangues de rua e criminosos cumprindo pena –, e aplicar testes para medir a agressividade de gente comum, o pesquisador observou que pessoas com imagem negativa de si mesmas são confusas e costumam fugir de situações de risco. Por causa disso, deduziu, quase sempre elas se preservam de atitudes violentas contra o próximo. Entenda-se: ataques agressivos são genuinamente ações de risco para a integridade do agressor e pessoas com baixa auto-estima procurariam poupar-se de ameaças do gênero. Quando tais indivíduos falham, eles culpam a si mesmos, não aos outros, exatamente o oposto do que acontece com pessoas dotadas de auto-estima exagerada, com toques de narcisismo. Assassinos, estupradores e outros marginais violentos em geral descrevem a si mesmos como seres superiores e especiais, merecedores de tratamento privilegiado.

Membros de gangues de rua, por sua vez, costumam se apresentar como os melhores, os imbatíveis, e reagem agressivamente quando se sentem ameaçados em suas posições.

Tais ilações não significam que basta uma auto-imagem positiva para alguém tornar-se necessariamente um agressor em potencial. Baumeister cruzou os dados da sua pesquisa com os de um estudo parecido realizado há 20 anos por Michael Kernis, da Universidade da Georgia, e encontrou evidências de que a relação entre amor-próprio e violência é influenciada por outro fator: a estabilidade do padrão de auto-estima. Em geral, a auto-imagem de uma pessoa quase não muda ao longo de uma vida normal. As oscilações no dia-a-dia não têm maior significado e, mesmo que o sujeito enfrente um infortúnio, a alteração costuma durar pouco tempo. Só em casos de transição profunda no estilo de vida e situações traumáticas, o padrão de auto-estima tende a mudar efetivamente. Ocorre que esse modelo não funciona para certas pessoas, cujas flutuações no nível de amor-próprio são freqüentes e amplas – e é exatamente nesse grupo que se encontram os casos que supostamente validam a hipótese de Baumeister e Bushman.

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No universo pesquisado, as pessoas com auto-estima elevada, porém instável, eram as mais hostis. Já indivíduos com auto-estima elevada e estável ou mesmo baixa auto-estima estavam entre os menos agressivos. Em outras palavras, o germe da violência seria uma forma de egoísmo ameaçado.

Com base nessa suposição, Baumeister chega a afirmar que é um erro encorajar pessoas depressivas a reconhecerem em si mesmas méritos que não possuem. Fortalecer assim a auto-estima de alguém poderia transformar um indivíduo dócil em uma criatura agressiva e imprevisível quando ela se sentisse ameaçada em sua condição imaginária. Em vez de tentar mudar o perfil das pessoas portadoras de baixa auto-estima, diz o psicólogo, é preferível atuar para conter a megalomania daquelas que se sentem superiores às demais e necessitam que essa crença seja freqüentemente confirmada pelos outros.

Há controvérsias. “Nem sempre uma baixa auto-estima equivale a depressão ou falta de iniciativa”, diz Júnia Vilhena, doutora em psicologia e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. “Nesses casos, ao contrário, o movimento de agressão contra o próximo pode ser maior, uma vez que o outro costuma representar tudo o que o portador de baixa auto-estima não é ou não tem.” Além disso, lembra Júnia, mesmo nos casos de depressão existe um nível alto de violência oculta que, muitas vezes, é direcionada contra o próprio sujeito, sob a forma de suicídio e outros tipos de autopunição.

Numa época em que a violência urbana ganha ares de doença contagiosa, também não faltam pesquisas que tentam explicar o fenômeno sob o ponto de vista fisiológico, como é o caso dos estudos que relacionam mediadores químicos, os chamados neurotransmissores, às explosões de agressividade, à depressão e ao prazer. Um dos mediadores mais influentes é a serotonina, substância presente no cérebro e no líquido da medula espinal. Diversos estudos constataram deficiências na produção dessa substância em homens impulsivos e violentos e em suicidas. Já a aplicação de drogas que controlam a produção de serotonina em animais demonstrou que aquelas que inibem a produção da substância provocam aumento da agressividade dos bichos enquanto as que ampliam a concentração de serotonina os tornam mais dóceis.

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Ultimamente pesquisas centradas na genética procuram a causa da agressividade em características dos genes, mas quase não há progresso nessa área. Há sete anos, por exemplo, um estudo com uma família holandesa, cujos membros do sexo masculino envolveram-se em crimes violentos, mostrou que todos eles apresentavam uma anomalia no gene que codifica a produção da enzima MAOA, responsável pela quebra das moléculas de vários neurotransmissores. É uma temeridade, no entanto, deduzir daí que comportamentos complexos, como a violência, decorrem de um único gene ou mesmo que são resultado apenas de padrões cromossômicos. O mais provável é que a agressividade seja fruto da interação entre fatores genéticos e ambientais, como sugere a maioria das observações científicas.

“As raízes da violência freqüentemente começam no útero e se fixam na idade pré-escolar”, afirma Robin Karr-Morse, terapeuta familiar em Portland, nos Estados Unidos, e co-autora com Meredith Wiley do livro Ghosts In The Nursery: Tracing The Roots Of Violence (Fantasmas na creche: investigando as raízes da violência, ainda inédito no Brasil). “Os hormônios do estresse produzidos pela mãe em explosões de medo ou raiva podem influenciar profundamente o desenvolvimento cerebral do feto”, diz a terapeuta. Como a formação do cérebro humano só se completa muito após o nascimento, Karr-Morse entende que a experiência emocional da criança até os três anos é decisiva para o estabelecimento de seu padrão comportamental na fase adulta. Meninos submetidos nessa fase a abusos ou negligência têm boas chances de desenvolverem anomalias cerebrais, como resultado das respostas do organismo a estímulos externos.

A influência do estado emocional da mãe durante a gravidez e o tipo de atenção e tratamento que a criança recebe na infância seriam também a explicação plausível para uma velha questão que intriga o senso comum e a ciência: por que crianças nascidas dos mesmos pais e criadas na mesma casa costumam exibir comportamentos tão diversos, a ponto de uma ser extremamente agressiva e outra não? “O investimento emocional dos pais nunca é o mesmo para todos os filhos”, diz Júnia. “É um mito achar que eles amam seus filhos da mesma maneira.” A diversidade na relação com os filhos, que na vida real pode oscilar entre demonstrações do mais puro afeto à indiferença e à crueldade, acabaria por contribuir para a formação de perfis psicológicos absolutamente díspares dentro de um mesmo lar.

Qualquer que seja o ângulo do qual se observe o fenômeno ou a teoria que explique suas causas, o xis do problema da violência parece ser a adoção de medidas preventivas no âmbito da família e, em especial, durante os primeiros anos da infância. A velha fórmula da relação saudável com a garotada, com base em afeto e atenção, é aparentemente o caminho mais prático para evitar que marcas traumáticas ajudem a transformar a criança de hoje no psicopata de amanhã.

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jmorais@abril.com.br

Para saber mais

Na livraria:

Ghosts In The Nursery: Tracing The Roots of Violence Robin Karr-Morse e Meredith Wiley, Atlantic Monthly Press, Estados Unidos, 1998

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Evil: Inside Human Violence And Cruelty Roy Baumeister, W.H. Freeman, Estados Unidos, 1997

Na internet:

https://www.utexas.edu

Clubes da luta

Numa gangue, jovens marginalizados pela sociedade e com nenhum amor -próprio teriam a chance de construir uma auto-imagem positiva

Ao constatar a ocorrência de elevada auto-estima em integrantes de gangues de rua e concluir que pode estar aí o motivo de conduta anti-social, os pesquisadores americanos Roy Baumeister e Brad Bushman talvez tenham comprado gato por lebre. Pelo menos segundo dois estudiosos brasileiros: a doutora em psicologia Júnia Vilhena, da PUC do Rio de Janeiro, que estuda o impacto da cultura hegemônica sobre a construção da identidade em populações marginais, e o psicólogo Marlos Alves Bezerra, que pesquisa e orienta grupos de jovens carentes no Nordeste.

“Modelos culturais e relações violentas tendem a ser reproduzidos, ainda que não possamos dizer (exatamente porque cada sujeito é único) que isso vá com certeza acontecer”, afirma Júnia.

Marlos também recorre à noção de exclusão social para afirmar que a gangue é o espaço onde jovens com auto-imagem negativa e um alto senso de rejeição podem tentar a reconstituição do ego destruído pela marginalização. “Analisar a violência de um modo meramente fisiológico é um itinerário que pode conduzir a análises fantasiosas e estéreis”, diz Marlos.

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