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Somos todos mentirosos

Apesar de condenada, a mentira é um traço inevitável da comunicação entre humanos. Todo mundo mente - seja para obter um emprego, seja para mudar o destino de uma nação

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h51 - Publicado em 31 jan 2005, 22h00

Stefan Gan

Koko é uma celebridade. Desde que foi acolhida pela psicóloga Francine Patterson quando ainda era um bebê, em 1972, essa graciosa gorila se tornou o representante animal mais famoso na comunidade científica. A macaca aprendeu a “falar” com humanos e hoje, aos 33 anos, domina mais de mil sinais de comunicação gestual. Como efeito colateral do aprendizado, surgiu a primeira gorila a mentir na linguagem dos homens.

Com apenas 1 ano de idade, Koko começou a empregar os sinais para fingir e dissimular. Quando quebrou seu brinquedo preferido, um gatinho de plástico, ela prontamente apontou uma assistente de Patterson como culpada. Usando de seus artifícios mais dissimulados para escapar da pena, abaixou a cabeça como se não soubesse de nada, indicando apenas que estava lá para mostrar quem tinha feito a arruaça com o boneco.

A gorila mentiu para escapar de uma punição – como também fazem as pessoas – estratégia que funciona se a lorota for contada com perfeição. O problema é que para nós, humanos, a mentira é um assunto constrangedor. Ela envolve questões éticas e por isso é angustiante assumirmos que, deliberadamente, mentimos aqui e acolá.

Apesar de condenações morais, a mentira é um comportamento mais freqüente do que se imagina. Segundo um estudo realizado por Robert Feldman, psicólogo da Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos, 60% das pessoas mentem em conversas do dia-a-dia. Feldman descobriu que, muitas vezes, a mentira é pronunciada sem nenhum motivo óbvio.

Em sua pesquisa, ele observou 121 pares de pessoas que não se conheciam durante uma conversa casual de dez minutos. “Orientamos os participantes a se apresentar bem para o parceiro, parecer competentes e tentar conhecer a outra pessoa”, diz Feldman. Os bate-papos foram filmados e, mais tarde, os voluntários se apresentaram para comentar o que haviam dito. Duas ou três mentiras foram identificadas em cada sessão – havia desde pessoas que fingiam concordar com o outro para ser simpáticas até um cidadão que disse ser astro de rock. “Foi um resultado surpreendente porque quem participou do estudo não imaginava que mentisse tanto quanto se viu mentindo no vídeo”, diz o pesquisador.

Por que mentimos

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Às vezes nem notamos, mas toda mentira tem um porquê e é instintivamente pensada. E, apesar de condenarmos os mentirosos ao fogo do inferno, é possível extrair benefícios tanto para quem mente quanto para quem ouve a mentira.

Um dos exemplos mais básicos da mentira do dia-a-dia é a relação entre homem e mulher no quesito galanteio. Quando um rapaz cordialmente elogia a garota por sua boa forma – mesmo que o elogio não condiga com a realidade – ambos tiram proveito da situação. Além de fazer a moça se sentir bem com uma “pequena” mentira, ele faz com que ela o considere o mais cavalheiro dos príncipes encantados.

Muitas vezes, a mentira serve unicamente a finalidades pessoais. É por isso que sempre que podemos damos um “upgrade” em nosso perfil. Afinal, todos nós queremos ficar bem na fita. E não é à toa que muita gente exagera na hora de redigir o currículo e aquele “inglês avançado” não passa de um semestre básico de cursinho.

Tudo isso acontece por uma pressão inevitável pelo sucesso profissional e social, segundo Leonard Saxe, professor de psicologia da Universidade Brandeis, também em Massachusetts. “Precisamos diminuir essa pressão e encontrar formas de reforçar a honestidade”, diz Saxe. “Hoje há uma epidemia de ‘enchimento’ de currículo, como incluir o doutorado que gostaríamos de ter concluído, mas não conseguimos”, afirma Ralph Keyes, autor do livro The Post-Truth Era (“A Era Pós-Verdade”, inédito no Brasil).

A mentira, no entanto, nem sempre se resume apenas a uma leve maquiagem da realidade. Em alguns casos, ela pode se tornar uma compulsão mórbida. É o caso da mitomania – quadro em que uma pessoa vive, literalmente, uma vida de mentiras. Inventa um passado, conta histórias fantásticas e usa a imaginação o tempo todo – e tem consciência de que tudo isso é falso.

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Um exemplo é o personagem interpretado por Leonardo di Caprio em Prenda-me se For Capaz. O fime narra a história verídica de Frank Abagnale Jr., que enganou uma companhia aérea fingindo ser um piloto profissional e se passou por médico e advogado. Sua carreira de mentiroso terminou quando foi finalmente capturado pela polícia. Esse é geralmente o destino de muitos pacientes com mitomania: antes de chegar ao divã, são confrontados por policiais e juízes. Talvez por isso a mitomania não seja oficialmente reconhecida pela psiquiatria.

Mas os médicos já estão acostumados com um tipo de paciente que adora mentir: são os portadores da síndrome de Münchausen. Como forma de chamar a atenção médica, a pessoa inventa sintomas e, às vezes, até se submete a dolorosos tratamentos, como cirurgias. O nome da doença é uma “homenagem” ao barão de Münchausen, famoso pelas histórias mirabolantes sobre suas experiências militares – ele dizia, por exemplo, ter cavalgado uma bala de canhão.

A mentira na história

Se para alguns a mentira não passa de um mundo de fantasia e ficção, para outros ela serve como artifício capaz de mudar o rumo da história. Afinal, a mentira acompanha a humanidade desde os primórdios – muitas vezes em benefício de grandes líderes.

Já no Egito antigo, a mentira foi um instrumento importante para a manutenção do poder do faraó Ramsés II. Em meados do século 13 a.C., as tropas egípcias lideradas pelo faraó lutaram contra outra potência da época, o Império Hitita, na batalha de Qadesh. O maior confronto envolvendo carruagens da história – cerca de 5 mil – terminou sem vencedor. Mas não para Ramsés II. Ao voltar para casa, ele cravou nas paredes de seus cinco grandes templos o relato de sua suposta vitória contra o inimigo. “Ramsés II afirmou ter vencido os hititas com a ajuda dos deuses”, diz o historiador Julio Gralha, da UFRJ. “A mentira foi usada como propaganda política e religiosa.”

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Outro que soube manipular muito bem os fatos foi Napoleão Bonaparte. Nos idos de 1799, tudo parecia conspirar contra o general francês. O sonho de conquistar o Oriente Médio desvanecia com a humilhante derrota às margens do rio Nilo para o almirante inglês Horatio Nelson e com o fracasso na Síria. Mas o que parecia ser o sepultamento político e bélico de Bonaparte tornou-se a maior mentira política a favor de um grande líder. Habilmente, o general utilizou-se da imprensa da época para soprar aos quatro ventos suas “fantásticas vitórias” no Oriente. Ao retornar à França, Napoleão foi recebido como vitorioso e, em meio às convulsões sociais que atingiam o país, tomou o poder.

Mas não precisamos voltar tanto assim no tempo para perceber como a mentira e o poder sempre caminham de mãos dadas. Quem não se lembra do famoso episódio envolvendo Bill Clinton, Monica Lewinski e um charuto? No início, o ex-presidente americano negou de pés juntos o affair com sua então estagiária. Mas, sob a ameaça de impeachment, teve de voltar atrás em seus “causos”. “Bill Clinton foi um gênio da prática da mentira”, diz Ralph Keyes. “Isso não foi somente no caso da maconha (que ele afirmou ter fumado sem tragar) e de Monica Lewinsky. Ele também foi um grande prevaricador quando disse recordar-se de ‘memórias vívidas e dolorosas de igrejas negras sendo queimadas em meu estado natal quando era criança’. Nunca houve nenhum registro de uma igreja negra incendiada em Arkansas.”

Apesar de tantas mentiras e posteriores confissões públicas, Clinton segue sendo um dos homens mais admirados em todo o mundo. Isso, segundo Keyes, é um sintoma do que ele chama de “era da pós-verdade”. Para ele, estamos mentindo mais do que nunca, sem vergonha na cara e sem remorso. “Mentir se tornou um desafio, um jogo, um hábito”, afirma o escritor.

Mentir ou não mentir

É provável que esses grandes líderes mentirosos tenham lido a “cartilha da mentira” do filósofo grego Platão. Em sua obra A República, ele defende o uso da mentira na política e afirma que os governantes têm o direito de não dizer a verdade para os cidadãos. “Se compete a alguém mentir, é aos líderes da cidade, no interesse da própria cidade, em virtude dos inimigos ou dos cidadãos”, escreveu o filósofo grego, com uma ressalva: “A todas as demais pessoas não é lícito esse recurso”.

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Para a sorte de nós, mentirosos, o homem vem tentando justificar ao longo dos séculos nossa tendência de escorregar em declarações falsas no dia-a-dia. Afinal, quem já não encontrou um amigo depois de acordar atrasado para o trabalho, bater o dedinho no pé da cama e perder o ônibus e ainda dizer que “está tudo bem”? Relaxe: isso não passa de uma dissimulação honesta e aceitável. Pelo menos é o que dizia o filósofo italiano Torquato Accetto.

Em 1641, Accetto afirmava que muitas vezes a verdade é mais prejudicial que a mentira – desde que se trate de uma mentira honesta. Na sua visão, não é adequado um indivíduo que vive sob uma ditadura ir à praça pública e gritar que o governo está entregue a um tirano. Ele pode dissimular sua crítica e sua mentira será honesta, segundo o italiano. “Essa idéia está ligada à noção de decoro, ou seja, aquilo que pode ou não ser dito em público”, afirma Roberto Romano, professor de ética e filosofia política da Unicamp.

Essa também era a opinião do pensador francês Benjamin Constant, que acabou travando um verdadeiro duelo na ponta da pena com seu companheiro alemão Immanuel Kant sobre um suposto “direito de mentir”. Constant defendeu o uso da mentira em situações “filantrópicas”. Ora, imagine se, um dia, um assassino o questionasse sobre a presença em sua casa de um amigo que lá tivesse buscado refúgio. É provável que você mentisse. E, para o filósofo francês, com todo o direito, pois protegeria a vida de seu amigo. O argumento não convenceu Kant, para quem a mentira era inadmissível em qualquer circunstância. Segundo ele, a verdade está na base do direito, que assegura a liberdade de todos os indivíduos. Kant afirmava que a mentira sempre prejudica, se não a uma pessoa ou um grupo de pessoas, certamente à humanidade como um todo.

Mais tarde, no século 19, o alemão Friedrich Nietzsche deixaria o homem ainda mais confuso não apenas em relação à mentira, mas também em relação a sua própria existência. Segundo ele, nós precisamos da mentira para viver nesse mundo “falso, cruel, contraditório, persistente e absurdo; mundo esse que é o mundo verdadeiro”. Ou seja, na penosa tarefa de viver essa realidade, o homem precisa da mentira. O mundo que vemos é ilusão e o conhecimento – a filosofia e a ciência – é uma invenção do homem para tentar explicar o mistério do Universo.

Uma vez que a filosofia e a ciência ainda não desvendaram todas as facetas da falsidade humana, nós seguimos mentindo – provavelmente nunca vamos parar. Que o diga a gorila Koko, que, integrada à nossa sociedade, aprendeu a arte da dissimulação.

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Para saber mais

Na livraria:

The Post-Truth Era: Dishonest and Deception in Contemporary Life – Ralph Keyes, St. Martin’s Press, EUA, 2004

Os Filósofos e a Mentira – Fernando Rey Puente (org.), UFMG, 2002

Telling Lies – Paul Ekman, W.W. Norton & Company, EUA, 2001

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