Você está demitido
Ninguém gosta dessa notícia: ela causa uma série de reações em seu corpo que fará você liberar seus instintos mais primitivos. E, ainda por cima, vai doer
Só pra variar, o vizinho de baia contou a piada de sempre ao chegar. O café continuava com o tradicional gostinho de cimento. E, pela quinta vez na semana, o computador deu pau. A rotina do trabalho seguia como sempre. Até que o chefe chamou você – e só você – para uma conversa a portas fechadas. Em um segundo, aquele mundo ao seu redor se desmanchou. Não, na verdade, o mundo continuou ali – você é que deixou de fazer parte dele. Adeus baia, adeus endereço de e-mail, adeus cartão de visita, adeus colegas que você via todos os dias, adeus plano de saúde corporativo, adeus desconto na academia. Só em 2009, até abril, mais de 3 milhões de brasileiros já passaram por essa situação – um número 17% maior do que no mesmo período do ano passado. Quem não passou se borra de medo de entrar para a lista, porque a recente crise mundial botou todo mundo na corda bamba. E o fantasma da demissão é mesmo de assustar: nos EUA, epicentro do abalo econômico, mais de 600 mil vagas estão desaparecendo todos os meses – seus ocupantes foram demitidos e ninguém vai entrar no lugar. Não à toa, a Organização Internacional do Trabalho tem considerado 2009 o pior ano para os trabalhadores das últimas duas décadas.
Ser alvo de um corte não faz bem pra ninguém. E não é só financeiramente. A notícia da demissão desencadeia uma série de reações no nosso corpo, que pode nos fazer oscilar entre humores tão opostos quanto a ira e a apatia. E que pode até provocar dores, físicas mesmo. Quer saber como é essa experiência? Respire fundo, pense no seu chefe (ou no Roberto Justus) e sinta-se como um demitido lendo as próximas linhas.
A hora do choque
Estresse
Você está frente a frente com o chefe, morrendo de medo do que ele tem para dizer. Pronto: seu cérebro percebeu que tem enrascada na área. Ele interpreta a situação como uma ameaça, e o corpo responde – ativa seus mecanismos de defesa, presentes em qualquer mamífero. Ainda que a conversa seja só uma ameaça simbólica (já que o chefe provavelmente não vai lhe dar porrada), o corpo prepara você para uma briga. Começa com o coração, acelerando os batimentos e enviando mais sangue para os músculos, pra garantir agilidade. Dois hormônios são liberados para manter a sua vigilância: adrenalina e cortisol. Ganhamos até proteção extra contra um possível ataque – as células do sistema imunológico se concentram na superfície do corpo. É o estresse, que aparece sempre que somos pressionados. E que vira e mexe volta à vida de um demitido, como você vai ver.
Herança dolorida
Sabe aquele incômodo nas costas e na base do pescoço que surge junto com o estresse? É uma dor que vem do tempo em que os homens eram quadrúpedes – diante de uma ameaça, os músculos que sustentam a cabeça se contraíam para manter nossa atenção no ambiente. Até hoje fazemos isso, mesmo sem ter mais motivo.
Desamparo e impotência
Seu chefe soltou a bomba: você está demitido. Ao receber essa notícia, a maioria das pessoas fica atônita. Mas, claro, sempre tem aquele que fica mais nervosinho.
Antes de saber que ia para a rua, você tinha praticamente virado um soldado, lembra? Depois, tudo o que conseguiu foi sair da sala com o rabo entre as pernas. A energia que o corpo acumulou para a batalha ficou sem uso – e daí vem a sensação de impotência. Uma pesquisa mostrou que 44% das pessoas ficam chocadas ao ser demitidas, segundo a consultoria de recolocação profissional Lens & Minarelli, que entrevistou quase 300 executivos brasileiros. Esse pessoal se sentiu atônito diante daquela situação irreversível. O baque é tão forte que pode durar algum tempo, e virou até tema de filme: o francês A Agenda, de 2001. Nele, o personagem Vincent é demitido, mas passa meses saindo de casa diariamente como se tivesse um emprego. É a negação, sentimento comum entre os demitidos da vida real, segundo Yvette Piha Lehman, professora do Instituto de Psicologia Social e do Trabalho da USP. “O demitido não aceita a sua situação e fica incapaz de digerir a verdade.” A demissão é mesmo um fato indigesto – e por isso tem gente que fica louca para usar aquela energia do estresse armazenada para a batalha. Ou seja, louca para voar no pescoço do chefe. Até porque 7 em 10 demitidos acham sua exclusão uma injustiça. E porque os problemas que virão a seguir, como a busca por emprego, são reconhecidos como novas ameaças pelo corpo. O que significa mais combustível para estresse e raiva.
Os dias seguintes
Desamparo
Desapegue-se da vida de happy hours e almoço com os colegas. Ela agora não existe para você.
Hora de assumir o status de desempregado. No trabalho, você convivia umas 8 horas por dia com o pessoal do escritório (e alguns pentelhos, claro). A demissão acabou com isso. Sem falar nos mimos que o emprego garantia. Ou você acha que vale-refeição, vale-transporte e plano de saúde não faziam diferença? Nos acostumamos com facilidades como salão de cabeleireiro e academia no prédio da empresa. Tanto que nossa vida pessoal, e não só profissional, acaba atrelada à companhia. “Quando o trabalho se mistura à vida de alguém, a demissão é o mesmo que arrancar um pedaço da pessoa”, diz o psiquiatra Kalil Duailibi, ex-responsável pelas políticas de saúde mental da Prefeitura de São Paulo.
Tristeza e vergonha
De demitido a viúvo
Se demissão é o mesmo que arrancar um pedaço do próprio corpo, não é exagero dizer que ela é comparável à morte de alguém próximo, certo? Exatamente. Como o luto, a demissão desativa o sistema de recompensa do cérebro – aquele que dispara dopamina quando vivemos uma situação agradável, causando a sensação de prazer. Isso acontece para que a gente se lembre de algo bom e tente repetir a história. Diante de más notícias, no entanto, o corpo desliga o sistema justamente para que as memórias ruins não se repitam. Ficamos tristes. E, para que nos mantenhamos assim, diferentes áreas do cérebro armam um complô. Só o nome delas já assusta: o córtex cingulado anterior, que fica na região central do cérebro, é quem entra em ação primeiro – ele avisa que o transtorno deve ser enfrentado. Depois, o córtex pré-frontal (ali na sua testa) se encarrega de digerir e avaliar a situação. Por fim, o córtex subgenual (na parte da frente do cérebro) retrai os movimentos do corpo, nos deixando mais letárgicos. O objetivo dessa ação coordenada é fazer com que nos concentremos no problema para resolvê-lo. Mas a saída de cena do sistema de recompensa pode aprofundar outro sentimento clássico entre os demitidos: a vergonha. Não importa se seu chefe é um lunático e deu um pé na sua bunda porque o time dele foi rebaixado – você será apontado no corredor como “o demitido”. E isso acaba com a autoestima. Nesse momento, aquela dose de dopamina que foi cortada pelo cérebro faz uma falta e tanto. Ficamos sem um empurrão para erguer a cabeça, é mais difícil se recuperar. E tem gente com propensão a ficar assim. “Falhas hereditárias no sistema de recompensa podem significar uma tendência a sentir mais vergonha”, explica o neurologista Mauro Muszkat, da Unifesp. O resultado: a sensação de fracasso.
Meses depois
Dores
Estoque remédios para aliviar incômodos nos músculos, acabar com queimação no estômago e abaixar a pressão. Acredite, você vai precisar.
Lamentar a demissão dói. De verdade. É o que acontece com algumas pessoas. “A demissão provoca uma angústia que pode ser convertida em sintoma físico”, explica o psiquiatra Duailibi. Tudo começa com o estresse, que já castiga o demitido no momento da demissão. Daí para a frente, é uma carreira desabalada rumo às pontadas pelo corpo. Aparecem dores musculares, por causa da contração dos músculos e da queda na produção de endorfina e serotonina, que amenizariam o desconforto. Dor de estômago, porque o estresse faz disparar a produção de substâncias ácidas no corpo. Problemas na circulação, porque os vasos sanguíneos se contraem quando ficamos estressados e aumentam a pressão arterial. É a somatização, uma saraivada de incômodos que pode começar a aparecer de 2 a 3 meses depois que você recebeu a bomba do chefe.
Depressão e ansiedade
O corpo nos derruba e descabela.
Triste, cheio de dores pelo corpo…você parece estar na lama. Esse estado pode mexer com seus neurônios. É o que acontece quando chegamos a um nível crônico de estresse. Nesse estágio, a produção de cortisol bomba no corpo, o que reduz a comunicação entre os neurônios do sistema de recompensa (aquele que dá a sensação de felicidade). É a depressão. Algumas pessoas têm uma predisposição a sentir-se assim. Elas possuem menos neurônios no hipocampo – uma zona do cérebro relacionada principalmente à memória. Esse grupo de neurônios combate a produção de cortisol, e não é tão eficiente se estiver desfalcado. “A depressão mata dois coelhos com uma só cajadada: dificulta a felicidade e facilita a tristeza”, escreve a neurocientista Suzana Houzel no livro Fique de Bem com Seu Cérebro. Isso porque, com a doença, as regiões do cérebro relacionadas a sentimentos negativos são estimuladas, e as ligadas a sentimentos positivos, enfraquecidas.
Nem todo demitido cai na depressão, claro. A ansiedade é bem mais popular. Na região metropolitana de São Paulo, um demitido leva, em média, 8 meses para voltar ao batente. Tomar chá de cadeira em processos seletivos por tanto tempo é de fazer qualquer um arrancar os cabelos. São dias em que o nosso corpo vive em alerta, um alerta parecido com aquele do estresse. A culpa é do hipocampo, que faz a ligação entre a parte do cérebro que cuida das nossas projeções e a que dispara o alarme. Cada vez que ficamos com medo do futuro, ele manda o corpo se preparar para a adversidade. E a ansiedade costuma nos acompanhar até o fim de todo esse ciclo: a conquista de um novo emprego. Até lá, haja unha para roer.
Para saber mais
Fique de Bem com Seu Cérebro
Suzana Herculano-Houzel, Sextante, 2007.
Fired Up!
Harvey Mackay, Ballantine Books, 2005.
Emotions Revealed
Paul Ekman, Holt Paperbacks, 2003.