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Alexandre Versignassi

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Blog do diretor de redação da SUPER e autor do livro "Crash - Uma Breve História da Economia", finalista do Prêmio Jabuti.

A biologia do mercado financeiro

O mercado de ações funciona que nem o seu corpo. Agora pense melhor sobre o que é o seu corpo. Você é um amontoado de células. E cada uma aí dentro descende de uma forma de vida rudimentar: moléculas de 3,5 bilhões de anos atrás que passavam o dia flutuando na água do mar – […]

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Atualizado em 21 dez 2016, 09h49 - Publicado em 5 abr 2013, 00h22

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O mercado de ações funciona que nem o seu corpo. Agora pense melhor sobre o que é o seu corpo. Você é um amontoado de células. E cada uma aí dentro descende de uma forma de vida rudimentar: moléculas de 3,5 bilhões de anos atrás que passavam o dia flutuando na água do mar – ou no “caldo primordial”, como os cientistas preferem chamar a mistura de água e moléculas orgânicas onde a vida começou. A única diferença entre essas moléculas e grãos de areia era que elas tinham aprendido algo estranho: fazer cópias de si mesmas.

A matéria-prima para essas cópias eram outras moléculas que flutuavam no caldo. A coisa era uma versão primitiva daquilo que a gente chama de DNA, uma cadeia de átomos de carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio colados uns nos outros formando aquela escultura em forma de hélice que você conhece bem:

Bom, esse DNA flutuante de 3,5 bilhões de anos atrás pescava (digamos assim) nutrientes no caldo e, a partir dos átomos de carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio, formava outra escultura em forma de hélice, novinha. E podia morrer em paz. Essas outras esculturas eram as filhas dela, cada uma capaz de gerar suas próprias cópias. Cada nova geração, porém, não saía exatamente igual à anterior. Aparecia um errinho de cópia aqui, outro ali. Às vezes o erro tornava a molécula de DNA inútil. E ela morria. Mas outras vezes o erro de cópia dava numa mudança, uma mutação, que conferia alguma vantagem para ela.

Com o tempo, apareceram algumas moléculas com uma vantagem clara: tinham a capacidade de usar outras estruturas de DNA para fabricar seus filhos, e não só nutrientes soltos no caldo. Eram os primeiros predadores, que comiam outras formas de vida para sobreviver, igual você faz, mesmo que seja um vegetariano radical. Essa batalha para ver quem comia e quem acabava comido foi a primeira guerra mundial para valer, há bilhões de anos, no caldo primordial.

Mas surgiriam outras mutações. Algumas moléculas nasceram com uma mutação ótima para esses tempos de guerra. Uma carapaça natural, uma armadura que permitia comer os rivais sem correr o risco de ser comido. Eram as primeiras células, contêineres de proteína que protegem a vida da molécula de DNA lá dentro. Só essas sobreviveram à guerra primordial.

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Mas não demorou para chegarem células mutantes ainda melhores, com mais capacidade destrutiva. Essas células tinham o maior de todos os poderes: a capacidade de se unir, de juntar forças. Funcionavam como um pequeno exército, usando a especialidade de cada tipo de célula para o bem do conjunto. Especialidades como esta aqui: células com uma mutação que as fazia perceber a presença ou a ausência de luz, por exemplo, ficavam na linha de frente. Essa capacidade permitia enxergar onde estavam as presas. Outras cuidavam do sistema de locomoção, trabalhando como remadoras de um navio, outras ficavam a cargo de consumir os nutrientes e repassar energia para o sistema de visão e as células locomotoras (o sistema digestivo, basicamente). De quebra, aprenderam a se reproduzir em conjunto. Um exército gerava outros exércitos prontos, não só células soltas.

E o progresso nunca parou. Esses exércitos foram ficando cada vez maiores e mais eficientes. Viraram o que o biólogo inglês Richard Dawkins − um dos primeiros a enxergar a evolução da vida por esse ponto de vista, o das moléculas − chamou de “máquinas de sobrevivência”.

Hoje elas são exércitos incomensuravelmente grandes. Aberrações evolutivas que contêm, cada uma, mais células do que provavelmente existia no planeta  inteiro há 3,5 bilhões de anos. São máquinas de sobrevivência capazes de comer toneladas de outras formas de vida para fabricar os próprios nutrientes. E com o poder de formar máquinas ainda maiores e mais vorazes quando se reproduzem. Esta é a aparência que alguns desses exércitos de 100 trilhões de células têm hoje:

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Seu corpo é uma máquina de sobrevivência: uma junção de trilhões de microformas de vida. Se você pegar um microscópio e olhar só um pedaço ínfimo do seu corpo, vai ver um cenário caótico: batalhas entre glóbulos brancos e micro-organismos, bactérias que se instalaram nas células para se aproveitar delas, mas que sem querer acabam ajudando-as a funcionar melhor… Seu corpo é uma coisa relativamente ordenada que emerge de um caos completo.

O mercado de ações também.

Cada acionista age como uma célula. Ele está ali exclusivamente para o próprio benefício. Mas a junção de milhões de acionistas comprando e vendendo caoticamente forma um corpo até que bem ordenado. Entenda esse corpo como o preço de uma ação ou pelo menos como a faixa de preço em que ele tende a permanecer.

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Cada compra e cada venda são uma especulação sobre o futuro. Nenhum acionista sabe se os papéis dele vão estar mais caros ou mais baratos lá na frente. Quem acha que o preço vai cair vende, quem acha que vai subir, compra.

E é uma guerra tão violenta quanto a do caldo primordial.

O momento em que você tem a oportunidade de comprar uma ação direto da empresa que emitiu os papéis é basicamente na hora do IPO. Passou disso, só no mercado. Só com pessoas que já compraram o papel e agora estão desistindo dele. Desse jeito, dá para entender que qualquer ação é uma roubada do ponto de vista de uma parte considerável dos investidores – os que querem se livrar dela. Se ninguém achasse que algum papel é uma roubada, seria impossível comprar qualquer ação. Sempre que você adquire uma, então, tem alguém do outro lado achando que você é otário – bom, nem sempre é assim. Às vezes esse alguém está vendendo os papéis a contragosto, porque precisa do dinheiro para pagar alguma dívida, por exemplo, mas na real isso só acontece sistematicamente em momentos de crise financeira aguda (2008 foi um desses, a Grande Depressão também). No resto do tempo é só uma batalha entre investidores para ver quem se dá melhor nas costas dos outros. O placar dessa batalha é o preço da ação.

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Esse ponto de vista não tem nada de novo. É o mais antigo de todos, inclusive. Adam Smith, o filósofo que ergueu as primeiras vigas do pensamento econômico, resumiu a coisa numa frase: “Não é da benevolência do açougueiro, do padeiro e do cervejeiro que sai o seu jantar, mas da preocupação deles com o próprio interesse”. É a noção da “mão invisível do mercado”, termo criado por ele: de uma massa caótica e egoísta (comerciantes competindo para se dar bem), surge a possibilidade de você comprar carne, pão e cerveja. Sem o interesse próprio de quem vende, você não teria nada na mesa. Isso de aplicar a ideia central de Adam Smith ao mercado de ações é uma linha de pensamento que os economistas chamam de “teoria dos mercados eficientes”. Ela existe desde o começo do século 20 e defende que o preço de uma ação costuma refletir o valor real dela tão bem em dado momento quanto o preço de um carro no mercado de carros usados: a massa (de gente comprando e vendendo) faz o preço.

Pense num mercado sem massa. O de carros de colecionador, por exemplo. Em 2010, um comprador anônimo pagou o preço mais alto da história por um desses: US$ 30 milhões num Bugatti Type 57 Atlantic, de 1936. Esse é o “valor de mercado” do Bugattinho três-meia aqui embaixo?

Não. Se você encontrar um igualzinho abandonado com a chave no contato, vai ter dificuldade de encontrar alguém disposto a pagar US$ 30 milhões. Não existe tanto milionário assim atrás de um carro desses. É um mercado “sem liquidez”, na língua dos economistas.

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Quem tem “liquidez” é Uno, Gol, Corsa, Fiesta, Clio… É tanta gente querendo compar carrinhos baratos que é como se o preço deles fosse tabelado pelo governo. A tal liquidez é tão importante na determinação de um preço que colecionadores de carros antigos que trabalham no mercado financeiro estão montando bancos de dados com as negociações que acontecem pelo mundo. Compraram três Ferrari F-40 de 1988 por US$ 1 milhão e duas por US$ 1,5 milhão no ano passado?

Então, se alguém lhe oferecer uma por US$ 1,2 milhão, está no preço. US$ 2 milhões talvez não tenha muita justificativa. E US$ 750 mil é para levar na hora.

Esse banco de dados não só existe no mercado de ações como é atualizado a cada fração de segundo. Pegue uma empresa miúda da Bovespa, a Positivo, por exemplo, uma empresa que monta computadores. Um milhão de ações dela trocam de mãos num pregão típico. Da siderúrgica Gerdau, 100 milhões. Petrobras, 500 milhões. Às vezes um bilhão.

É uma liquidez tão forte que não tem como o preço de um papel estar muito além da realidade. Uma ação não é uma Ferrari F-40. É um Golzinho usado. Há um mercado intenso por trás determinando o preço. Então não existem grandes barganhas. Na prática, significa que o investidor médio, você, não tem como ganhar muito mais do que a média na bolsa. Vocé é a média.

Isso é exatamente o que prega a ideia dos mercados eficientes. Ela leva em conta a diferença entre o preço de um carro usado e o de uma ação, claro. Um carro é uma coisa estática, não muda com o tempo (só fica mais velho, mas essa é uma alteração que vai se refletir no preço, e de forma totalmente previsível). Com uma empresa, a coisa real por trás de uma ação é diferente. Ela pode estar meio mais ou menos hoje, mas amanhã pode ganhar mercado e começar a ter lucros absurdos. No mercado de ações, o Gol de hoje pode ser a Ferrari de amanhã. Mas essa expectativa também está embutida no preço. Então ele é sempre um valor que a gente pode chamar de “justo”. A teoria é tão redonda que ganhou ares de sagrada no século 20.

Só tem um detalhe: ela está errada.

No próximo post.

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