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Alexandre Versignassi

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Blog do diretor de redação da SUPER e autor do livro "Crash - Uma Breve História da Economia", finalista do Prêmio Jabuti.

Como o filme da Pixar mistura Neil Gaiman, Charlie Kaufman, Mad Men e Polanski

O título engana. No original, Divertida Mente chama Inside Out (De Dentro para Fora). Aqui, essa animação da Pixar indicada ao Oscar ganhou um título bem mais direto que o original, já que o filme todo acontece dentro de um cérebro. Só que o trocadilho fácil do título brasileiro passa uma imagem falsa: a de que que […]

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Atualizado em 21 dez 2016, 09h49 - Publicado em 22 jun 2015, 14h26

INSIDE OUT

O título engana. No original, Divertida Mente chama Inside Out (De Dentro para Fora). Aqui, essa animação da Pixar indicada ao Oscar ganhou um título bem mais direto que o original, já que o filme todo acontece dentro de um cérebro. Só que o trocadilho fácil do título brasileiro passa uma imagem falsa: a de que que o filme também é fácil, e feito para crianças. Não é.

Até dá para uma criança assistir Divertida Mente e, sei lá, se divertir. Mas o roteiro desafia, inclusive, a maior parte dos adultos. O cenário é o cérebro de uma menina de 11 anos. Lá dentro, na “sala de controle” da mente da garotinha, existem cinco personagens, cada um personificando uma emoção – quem já leu Sandman não vai estranhar: a premissa parece baseada na mitologia moderna de Neil Gaiman. Você tem a Raiva (encarnada num baixinho vermelho invocado), o Medo (um sujeito roxo com transtorno agudo de ansiedade), o Nojo (uma patricinha verde insuportável), a Tristeza (uma baixinha azul – blue, de tristeza – que parece a Velma do Scooby Doo na forma de um M&M). Por último, a protagonista da mente da menina, e do filme: a dourada Alegria (“Joy”, na versão original – uma comediante espevitada, feita à imagem e semelhança de sua dubladora, a Amy Poehler).

Esse povo todo tem dois trabalhos lá dentro. Um é controlar as formas como a menina responde aos estímulos do mundo. Se ela toma um choque na tomada, o Medo assume as rédeas. Se é contrariada, vem a Raiva. Sim, tudo bem óbvio. Mas o outro trabalho das emoções personificadas é mais complexo: formar a memória de longo prazo da menina. As memórias vão aparecendo na forma de bolas, iguais a da ilustração aqui em cima. Elas se materializam na sala de controle da mente o tempo todo, já que o cérebro grava memórias o tempo todo. E cada esfera carrega uma memória específica: uma pode representar uma discussão com os pais, outra uma brincadeira no parque… Se a emoção dominante na hora da discussão tiver sido a raiva, o que aparece na sala de controle é uma bola vermelha. Se a brincadeira no parque estava alegre, surge uma bola dourada.  Depois de um tempo as bolas seguem para um tubo de sucção rumo à memória de longo prazo, onde ficam estocadas. E essa coleção de milhares de bolas, representando milhares de memórias, forma a personalidade da menina. Faz todo o sentido, porque no mundo real é a mesma coisa: jogue suas memórias no lixo, e você deixa de existir. Não sobra nem a consciência. Você é o que você viveu.

Alegria é a chefe ali dentro da mente da menina. Os outros sentimentos até assumem o controle de vez em quando, mas Alegria sempre retoma as rédeas, garantindo a felicidade geral e a formação contínua de memórias alegres para a dona do cérebro. Tristeza, coitada, mal consegue chegar perto da sala de controle: Alegria enxota ela na hora. Natural, porque a menina, Riley, é uma criança de 11 anos. Não é um poço de alegria, porque isso nenhuma criança é. Mas como nessa idade o centro de recompensas do cérebro é bastante ativo, a emoção dominante acaba sendo a Alegria mesmo. No cérebro da mãe dela, que aparece logo no começo do filme, quem manda é a Tristeza. No do pai, a Raiva. E nem por isso ela é especialmente pra baixo nem ele agressivo. Riley tampouco é uma  boba alegre. Essa são só as emoções que se manifestam com mais facilidade dentro de cada um dos três.

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Posto o cenário, começa a trama: Riley se muda com os pais de uma cidadezinha no Minnesota, interiorzão dos EUA, para uma maior, São Francisco.

Tristeza, então, descobre que tem um poder estranho: o de transformar memórias alegres em tristes só de tocar nas esferas. Quando Tristeza mexe nas bolas douradas que representam as memórias recentes de Riley no Minnesota, elas vão ficando azuis. Claro: lembrar de momentos felizes ligados a alguma realidade que não existe mais não dá alegria, dá banzo – a versão depressiva da saudade. Alegria não se conforma com essa história de Tristeza ficar azulando as bolas douradas, e vai para o pau. No meio da briga, as duas tropeçam no lugar errado, caem naquele tubo de sucção e acabam tragadas para as profundezas do cérebro de Riley. Raiva e Medo assumem a sala de controle sozinhos. Resultado: a menina vira uma niilista, um zumbi movido unicamente por sentimentos negativos.

Tudo isso, e o filme ainda nem começou direito. Também não vou contar mais para não estragar nada. Mas dá para dizer que a história toda é sobre amadurecimento: a própria Alegria vai aprendendo que não é a melhor coisa que existe, que não é melhor ser alegre que ser triste, que “a luz no coração”, para continuar usando as palavras do Vinícius de Morais, pode e deve ter mais cores que o dourado da felicidade. E mais importante: que buscar a alegria só pela alegria é tão improdutivo quanto tomar uísque o dia inteiro pelo resto da vida para não deixar a felicidade ir embora, como o próprio Vinícius passou a fazer, de modo a não deixar a Tristeza, a Raiva ou o Medo assumirem a sala de controle do cérebro dele. A mensagem do filme, enfim, gira em torno da ideia de que a alegria não pode existir sem a tristeza. Que a felicidade para valer só chega depois que a gente conhece o que é a tristeza para valer. E que felicidade, mesmo assim, vai-se embora, porque tristeza não tem fim. Felicidade (você sabe), sim.

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Bom, a Pixar é célebre por fazer filmes capazes de agradar crianças e adultos ao mesmo tempo. Esse é diferente. Além de apresentar essa interação complexa entre Alegria e Tristeza, o roteiro não tem uma gota de didatismo forçado: não fica explicando para o espectador o que ele está vendo na tela. Nesse sentido, Divertida Mente é parecido com Mad Men. No seriado que terminou neste ano, uma mudança no tom de voz no meio de um telefonema já podia significar que um relacionamento de três temporadas acabava ali. E se você não entendeu, azar o seu.

Se essa sutileza mastodôntica já parece complexa para um seriado sobre alcoólatras de meia-idade, imagina para uma animação. O filme mais parecido com Divertida Mente que já teve é Brilho Eterno de uma Mente sem Lembrança, por causa da premissa de se passar inteiro dentro de um cérebro, materializando as mesmas abstrações: o subconsciente, os traumas bobos de infância… Divertida Mente está sentado nos ombros de Charlie Kaufman. Dos de Neil Gaiman também. E nos de outros gigantes, principalmente Roman Polanski e seus filmes psiquiátricos. O Inquilino e Repulsa ao Sexo, os dois melhores Polanskis nessa linha, também acontecem, de certa forma, dentro do cérebro dos personagens. Uma das cenas mais dramáticas de Divertida Mente , aliás, tem um paralelo no final trágico de Repulsa.

Diante de tudo isso, só resta uma constatação: Divertida Mente foi indicado ao Oscar na categoria errada.

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