Ninguém sabia o que estava acontecendo. Mas estava acontecendo.
A Juscelino desemboca na Marginal num complexo sinistro de avenidas e túneis. São mais pistas que o aeroporto de Heathrow, separadas por muretas de um metro e meio. Bem ali, fica o shopping mais Dubai da cidade: o JK Iguatemi, um mastodonte branco tão imponente que intimida quem passa a pé na rua. Mas isso […]
A Juscelino desemboca na Marginal num complexo sinistro de avenidas e túneis. São mais pistas que o aeroporto de Heathrow, separadas por muretas de um metro e meio. Bem ali, fica o shopping mais Dubai da cidade: o JK Iguatemi, um mastodonte branco tão imponente que intimida quem passa a pé na rua.
Mas isso não é problema: ninguém ali passa a pé na rua. Um ET que pousassse lá concluiria que a forma de vida mais comum na Terra é a Range Rover Evoque.
Foi desse pedaço da cidade que eu guardei a minha melhor memória dos protestos de ontem.
A Juscelino estava tomada. Ela e a Faria Lima, a Brigadeiro, a Paulista, a Berrini, a Ponte Estaiada. Todas ao mesmo tempo, pelo que a gente via no Instagram. Nota: os números oficiais falam em menos de 100 mil pessoas na rua. Bom, se o ano-novo na Paulista junta 2 milhões, e só toma uma dessas avenidas, um dos dois cálculos está errado. Mas dane-se.
O ponto é que, uma hora, a gente tinha que pular as muretas da Juscelino, para seguir à direita, em direção à Ponte Estaiada. E daí vem a minha melhor memória: todo mundo se ajudando a pular as placas de concreto. Eu não juntava as mãos para servir de apoio para o pé de alguém desde que era pequeno. Fiz isso para uma menina de 15 anos. E fizeram pra mim também. Numa mureta, uns punks ajudaram. Na outra, um cara de camisa listrada e calça social. Um pouco antes, tínhamos aplaudido a sinfonia que um grupo de motoboys tocou com os aceleradores deles. Uma sinfonia de duas notas, com os motores zunindo em ritmo de grito de guerra. Não era o supra-sumo da afinação, mas naquela hora soou límpido como a voz do David Bowie. Era tanta gente diferente misturada que a minha contabilidade pessoal do número de manifestantes não registrou nem 100 mil pessoas nem 4 milhões. Minha conclusão é que foi “todo mundo”. TODO mundo. Até a deusa morena de vestido branco que ondulava um lençol igualmente branco da sacada de um prédio de 20 mil reais o metro quadrado, achando que a passeata passeava para ela – no que ela tinha toda a razão, pelo menos naquele momento.
Bom, aí eu e basicamente todo mundo tocamos até a Ponte Estaiada. Ninguém estava guiando ninguém: era um caminho natural. A ponte é a Torre Eiffel de São Paulo. Pra mim e pros meus amigos lá seria a Praça da Apoteose da nossa passeata – tínhamos que chegar pelo menos até lá.
E o que a gente queria era ver a ponte com gente em cima dela. Gente a pé – algo tão fisicamente improvável quanto a abertura do Mar Vermelho… Mas aquela era uma noite diferente. Uma noite em que mares abriam – a começar pelo Mar Cinza da cidade.
O ápice, aliás, foi ver isso refletido nos prédios, com os vidros do centro financeiro servindo como a tela de iMax de uma superprodução em que os figurantes eram os protagonistas. Cecil B. DeMille assinaria embaixo:
Foi a noite mais bonita da história de São Paulo.
Mas os analistas de sempre concluíram que o “movimento perdeu o foco”, que ninguém sabia contra o que estava protestando. Ok. Mas ei: e daí? Como o meu amigo Maurício Horta notou ontem: ninguém sabia exatamente o que estava acontecendo. Mas estava acontecendo. E estávamos todos juntos nessa – motoboys, bancários, playboys, engenheiros de produção, vovós, biólogos marinhos, a deusa do vestido branco. É isso que importa.
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Crédito da foto de abertura: Ricardo Davino
Das outras três: Guilherme Castellar