Que a tragédia abra os olhos do poder público
A mera existência de prédios públicos abandonados é uma ofensa. Mas se há quem se aproveite da situação, os movimentos sociais legítimos devem combatê-los.
“Eu pagava R$ 450 de aluguel num cômodo em São Mateus, e meu marido gastava cinco horas para ir e voltar do trabalho. Hoje, pago R$ 200 e moro no centro. O que você acha que eu prefiro?”, diz a ex-vereadora de Santa Cruz Cabrália (BA) Neide Leonel Vidotto, 70, no espaço onde vive, no antigo Cine Marrocos.”
Começa assim uma reportagem de Fernanda Mena e Felipe Souza na Folha de S.Paulo, feita em outubro de 2015. O título da matéria, sobre ocupações como a do Cine Marrocos, era “Movimentos de sem teto cobram taxa de morador de invasão em São Paulo”.
A reportagem mostrava que algumas ocupações eram, na verdade, negócios imobiliários. Os organizadores cediam vagas não exatamente para quem não tinha onde morar, mas para quem se dispusesse a pagar.
Os moradores do prédio do Largo do Paissandú, de acordo com o Estadão, pagavam entre R$ 250 e R$ 500 para morar ali. Eram mais ou menos 150 famílias.
Levando em conta só o valor mais baixo, dá R$ 40 mil por mês. Segundo a prefeitura, há 70 prédios invadidos em SP. Na conta de padaria, dá mais de R$ 2 milhões por mês. Vamos considerar que a maior parte dos outros prédios sejam bem menores. Ainda assim temos uma receita bruta na casa dos R$ 10 milhões por ano.
Achar, por conta dessas cifras, que todos os movimentos de ocupação são máfias é uma visão estreita. A mera existência de prédios abandonados em cidades que sofrem de superpopulação é uma ofensa. E justifica a existência de movimentos de ocupação. Trata-se de uma reação natural a uma falha sistêmica. E custa caro manter o mínimo de infraestrutura para os moradores.
Por outro lado, imaginar que que cada movimento e cada um de seus integrantes trabalha na mais perfeita lisura não faz sentido. Não faltam denúncias de abuso, e elas partem justamente das vítimas, que são os inquilinos das ocupações. Num ambiente amigo do dinheiro fácil, sempre haverá quem tope colocar vidas em risco para aumentar os próprios ganhos – e isso precisa ser coibido. Que a tragédia sirva para abrir os olhos do poder público, que passou as últimas décadas mais preocupado em construir elefantes brancos para pagar propina de empreiteira do que em lidar com o déficit habitacional das nossas cidades.