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Bruno Garattoni

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Vencedor de 15 prêmios de Jornalismo. Editor da Super.

“Ela” mostra o lado triste das redes sociais

Theodore (Joaquim Phoenix) é um ex-jornalista que trabalha escrevendo cartas sentimentais para outras pessoas. Ele se separou da esposa e vive dolorosamente só, até que compra e instala um software de inteligência artificial, que assume a personalidade de uma mulher, Samantha (narrada por Scarlett Johansson) e se manifesta através do smartphone de Theo. Eles começam […]

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Atualizado em 3 set 2024, 10h25 - Publicado em 14 fev 2014, 10h08

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Theodore (Joaquim Phoenix) é um ex-jornalista que trabalha escrevendo cartas sentimentais para outras pessoas. Ele se separou da esposa e vive dolorosamente só, até que compra e instala um software de inteligência artificial, que assume a personalidade de uma mulher, Samantha (narrada por Scarlett Johansson) e se manifesta através do smartphone de Theo. Eles começam a conversar, se conhecem, se apaixonam, vivem encontros e desencontros. Esse é o mote de “Ela”, quarto filme do diretor Spike Jonze – de “Quero ser John Malkovitch” e “Adaptação”-, que estreia hoje nos cinemas brasileiros.

É um baita filme. Pelas atuações, pela cenografia (que constrói um futuro familiar e ao mesmo tempo estranho), pelo roteiro. Mas principalmente, e por isso quis comentá-lo aqui, pelo que diz sobre nossa relação com a tecnologia. A vida preenchida por um fluxo constante de emails – muitos deles com newsletters e propagandas inúteis-, o noticiário picotado e às vezes frívolo da internet, todo mundo grudado no smartphone e obcecado pelas redes sociais. Sair com alguém, num encontro, e descobrir quase tudo sobre aquela pessoa na internet – antes mesmo de conhecê-la. Os games online, habitados por criancinhas que falam palavrão. A pornografia online e sua crueza. A tecnologia presente em todas as situações de forma discreta, mas decisiva. “Ela” se passa no futuro, mas retrata um mundo muito parecido ao nosso. Está na cara.

Como está na cara, também, a crítica que faz a isso. Porque no filme as pessoas, essencialmente, são incapazes de ter emoções. Todo mundo é tão neutro, no mau sentido, que ter e articular sentimentos vira até um serviço – daí existir a empresa onde Theo trabalha, redigindo emoções para quem não as têm ou não consegue manifestá-las. Em “Ela”, as pessoas sofrem de paralisia emocional. Querem mas não conseguem expressar sentimentos espontâneos. Só conseguem manifestar um, e ruim: a ultraexigência. Em certo ponto do filme, Theo sai com uma mulher de carne e osso – e ela, sem entrar em spoilers, age de modo grosseiro. Não porque seja má, mas porque está sendo ultrafranca, ultraexigente. Essas duas características, paralisia e ultraexigência, dominam as relações humanas. Fazem tudo ser triste, solitário, melancólico. “Ela” é um filme angustiante.

E inteligente. Porque mostra que ambos os problemas têm a mesma raiz: a mediação -e deformação- das relações humanas pela tecnologia. Claro, esse tipo de crítica sempre existiu. Quando os romances impressos começaram a se popularizar, por exemplo, houve quem dissesse que sua leitura afastava e alienava as pessoas. Dizer que a tecnologia X está piorando o mundo geralmente é papo de ludita ou de gente que perdeu o bonde da História. Mas há indícios, sim, de que a conectividade ininterrupta e a interação via redes sociais estejam mexendo conosco – e não necessariamente para melhor. Há estudos que comprovam isso, mas nem é preciso recorrer a eles. Basta olhar para o dia-a-dia.

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Cada vez mais, tudo o que a gente faz, come, vê ou pensa vai parar nas redes sociais. Em si, isso não é ruim. O problema é que essa interação é assimétrica, ou seja: primeiro você posta e depois as pessoas respondem àquilo. Não é algo imediato, como conversar pessoalmente com um amigo falando o que der na telha. É premeditado, porque você pensa antes de postar. Você pensa em como as pessoas vão reagir. Como elas vão interpretar sua fotinho, post ou comentário, quantos likes aquilo vai ter. Você pensa nisso, e modela o que diz. É fato. E é normal. Porque ninguém quer dar um fora – ainda mais em público e na internet, onde eventuais mancadas são muito difíceis, ou impossíveis, de apagar.

Mas conforme as relações humanas vão sendo dominadas por essa premeditação digital, as pessoas ficam cada vez menos espontâneas. Se expõem menos. E quando se expõem, é da maneira mais previsível possível: de forma insossa, contida, cuidadosamente calculada para evitar qualquer possibilidade de discordância ou crítica, ou aderindo a uma facção ideológica na polêmica da semana (aliás, a necessidade de se abrigar num clã de ideias ajuda um bocado a explicar a radicalização e a trivialização do discurso na internet, mas isso é assunto pra outro dia). Fica cada vez mais difícil articular ideias e emoções realmente originais. Porque as redes sociais são promotoras naturais de consenso -você não segue as pessoas que pensam diferente de você. E porque, na internet, dizer algo destoante se torna mais arriscado -pois a rede tem memória eterna (você até pode tentar apagar algo, mas é provável que aquilo reapareça). Fato. Tanto que até Eric Schmidt, ex-presidente do Google, disse que a internet deveria ter um botão delete, para que as pessoas pudessem apagar eventuais erros. Como ele não existe, tentamos nos resguardar o máximo possível. “Ela” argumenta que essa postura, ao longo do tempo, leva à desarticulação e à paralisia emocional.

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A dinâmica das redes sociais também explica nosso segundo problema. Na internet, todo mundo apresenta uma versão editada de si próprio – mais bonita, mais feliz, mais esperta, mais viajada, mais legal, mais tudo. O problema é que, com o tempo, você começa a achar que as outras pessoas realmente são daquele jeito. E isso cria expectativas irreais, com relação a você mesmo (que passa a achar a própria vida insatisfatória) e com relação aos outros. Você tenta ser e espera que todo mundo seja tão bacana, na vida real, quanto aparenta na internet. Com o tempo, isso se torna uma exigência. A ultraexigência.

“Ela” mostra o que acontece quando esses dois processos são levados ao limite. No filme, o único indivíduo capaz de emoções espontâneas é justamente Samantha, o robô – que se arrisca, se expõe, comete erros. Nesse aspecto, repete o insight do clássico “2001”, em que o robô HAL 9000, mesmo falhando (ou justamente por causa disso) é mais humano do que os personagens humanos. Mas, ao contrário de “2001”, “Ela” mostra um futuro plausível. Tirando a inteligência artificial, que deve levar décadas para chegar a um nível realmente inteligente (se é que vai chegar), o mundo mostrado pelo filme vai acontecer. Já está acontecendo.

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Não precisa ser assim, claro. Sempre é possível fazer as coisas de outro jeito. Talvez alguém consiga inventar o botão delete idealizado pelo Google, e isso faça com que as pessoas se desinibam e desradicalizem ao mesmo tempo. Talvez as redes evoluam de outra forma, e o futuro siga por outro caminho.  Tomara que sim.

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