Brilhante e assustador, “Sob a Pele” é impossível de esquecer (Filmes de Sexta)
(Quando não estou trabalhando, gosto de ir ao cinema. Vejo um monte de filmes – e pensei em comentar um a cada semana. Sempre às sextas-feiras, sempre com um filme que estiver estreando. Com vocês, Filmes de Sexta) Você conhece alguém num bar, na balada, numa festa, na livraria, na praia, no aplicativo. Pode ser […]
(Quando não estou trabalhando, gosto de ir ao cinema. Vejo um monte de filmes – e pensei em comentar um a cada semana. Sempre às sextas-feiras, sempre com um filme que estiver estreando. Com vocês, Filmes de Sexta)
Você conhece alguém num bar, na balada, numa festa, na livraria, na praia, no aplicativo. Pode ser em qualquer lugar. Parece uma pessoa legal… e bem atraente. Falam, rola um beijo, combinam de se ver uns dias depois. Você dá uma xeretada básica na internet, mas a verdade é que ainda sabe muito pouco sobre aquela pessoa. Quase nada. Mesmo assim, topa encontrá-la de novo. Entrar no carro dela, na casa dela, na vida dela. Mas o seu inconsciente soa um alerta quando a porta se abre. Como essa pessoa realmente é? Que defeitos e qualidades ela tem? O que ela quer? Será que vai dar certo? Ou vou perder meu tempo, acabar só e triste? O que vou encontrar aqui, meu deus? Se a anfitriã fosse Scarlett Johansson, e sua vida fosse “Sob a Pele”, filme que está estreando nos cinemas brasileiros, você iria encontrar a morte. Scarlett é uma alienígena com a missão de encontrar, seduzir e consumir (mais sobre isso daqui a pouco) seres humanos.
No caso, homens. Ela dirige uma van pela cidade de Glasgow, na Escócia, procurando suas vítimas. As cenas estão cheias de pessoas reais, que andavam na rua sem saber que estavam sendo filmadas pelo diretor Jonathan Glazer – que, escondido na parte de trás da van, controlava um sistema de câmeras ocultas. Isso dá ao filme uma atmosfera muito real, faz com que você se sinta dirigindo por Glasgow. Mas dirigindo como se fosse um alien. A fotografia e a edição, estranhas e lindas, o uso inteligente do som (em alguns momentos, cadenciado para mexer com a sua respiração, truque que Glazer empresta do franco-argentino Gaspar Noé) e a ausência de diálogos nos primeiros 20 minutos vão formando um clima ominoso, sinistro, intimidante – e irresistível também. É impossível ver as cenas da cidade, com as pessoas andando alheias de um lado pro outro, e não se colocar no lugar do alien. Se você fosse ele/a, qual vítima escolheria?
Essa identificação quase instantânea, e com o vilão, é algo que pouquíssimos filmes conseguem. Mérito do diretor Glazer, que começou a carreira dirigindo clipes do Radiohead e do Blur, fez dois filmes (o bom “Sexy Beast”, em 2000, e “Birth”, em 2004), e de lá pra cá só produziu comerciais – para Stella Artois, Sony e Guinness, todos autorais e legais. E também mérito de Scarlett, que parece ter nascido para este papel: seu olhar vazio e ao mesmo tempo profundo, que fez a força de “Encontros e Desencontros”, é simplesmente perfeito aqui. O filme tem pouquíssimas falas, mas elas não fazem falta. Cenas sem diálogos são como livros, você mesmo imagina as coisas. E para um filme de suspense, isso é ótimo. Porque você fica mais envolvido – e mais tenso.
O silêncio só é quebrado quando ela escolhe uma vítima, estaciona a van e começa a jogar um papo furado. Sempre dá certo, claro. A maioria dos homens, ou pelo menos grande parte, toparia subir no carro de uma desconhecida e ir à casa dela, se ela fosse Scarlett Johansson. Qualquer um vira uma criança, atrapalhada e boba, na frente de uma mulher estonteante. Quando chegam na casa, as vítimas do filme são seduzidas e, sem entrar em detalhes-spoiler, assimiladas. É um processo visualmente muito bonito, que de início nem parece violento. Mas na medida em que o filme se desenvolve, e você vai descobrindo o que acontece, percebe que está vendo atos de ultraviolência. Uma ultraviolência alienígena, construída com uma lógica na qual o corpo, e o sangue, têm significado totalmente diferente do nosso. Há cenas muito fortes, icônicas, daquelas que ficam na memória por muito tempo – e serão comentadas durante décadas pelos críticos e fãs de cinema. Mas “Sob a Pele” não é apenas graficamente aterrador; também tem momentos em que a personagem se comporta com uma crueldade quase insuportável. Não é um filme que se veja à toa. Nem é para todo mundo.
Conforme a alien vai pegando e matando pessoas, começa a se interessar pelas coisas humanas. Tenta comer comida, vai à balada (cujas luzes piscando parecem extraterrestres para ela – e, às vezes, para muita gente também), é perseguida por uma gangue, assiste a TV, tem um ato de compaixão. Começa a desenvolver emoções. Sente confiança num humano. Se arrisca por ele. É sintomático que, quando isso acontece, as coisas virem e a predadora acabe se tornando a caça. Parece absurdo que o amor, uma necessidade tão básica quanto a comida, envolva tanto risco. Mas, se você parar pra pensar, faz todo o sentido. Não há amor sem confiança. Mas não há confiança sem exposição ao risco. Logo, não há amor sem risco. ♦
VEJA SE Você gosta mesmo de cinema – e de ser surpreendido, ou desafiado, por ele de vez em quando. Tem paciência e estômago para cenas fortes. Quer ver algo inovador.
NÃO VEJA SE Você se irrita com filmes de poucos diálogos. Gosta de roteiros elaborados, que sejam ricos em detalhes e deixem todas as coisas bem explicadas. Quer entretenimento.
NOTA 9/10 Um filme polarizador, que alguns irão amar – e outros odiar. Mas do qual é impossível não se lembrar. Tomara que Jonathan Glazer não leve mais uma década para fazer outro.
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