Casos graves de Covid-19 podem estar ligados à reativação de vírus pré-histórico
Estudo da Fiocruz revela que pacientes com Covid grave possuem maiores níveis de HERV-K, vírus presente nos humanos há milhares de anos; descoberta pode explicar por que a doença é mais agressiva em algumas pessoas, mas não provoca sintomas em outras
Estudo da Fiocruz revela que pacientes com Covid grave possuem maiores níveis de HERV-K, vírus presente nos humanos há milhares de anos; descoberta pode explicar por que a doença é mais agressiva em algumas pessoas, mas não provoca sintomas em outras
Por que algumas pessoas pegam coronavírus e ficam bem, sem sintomas ou com manifestações leves, enquanto outras desenvolvem formas violentas, e letais, da Covid-19? Esse é o grande mistério envolvendo o coronavírus – e até hoje, mais de um ano após o início da pandemia, não há resposta. Alguns cientistas acreditam que a gravidade da doença possa estar relacionada a diferenças no MHC, um complexo de genes relacionados ao sistema imunológico, mas ainda não há resultados conclusivos. Agora, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz apresenta outra possível resposta: a Covid severa pode ter ligação com o HERV-K (retrovírus endógeno humano K), um vírus que colonizou a humanidade há milhares de anos e incorporou pedaços do seu código genético ao nosso.
No estudo, os pesquisadores da Fiocruz acompanharam 25 pessoas com Covid grave, que foram internadas em UTI e precisaram receber ventilação mecânica. Elas tinham idade média de 57 anos e apresentavam alta carga viral de Sars-CoV-2, principalmente na traquéia. Além do coronavírus, os exames apontaram também a presença de HERV-K no viroma traqueal. E, eis a principal descoberta, esse vírus estava presente em níveis muito acima do normal (se comparado a indivíduos com casos leves de Covid-19, que haviam sido previamente testadas pela Fiocruz, ou pessoas sem Covid).
Ou seja: a Covid grave está relacionada a níveis aumentados de HERV-K. Mas isso não significa que esse vírus, que é inofensivo e normalmente passa a vida inteira sem se manifestar, esteja atacando o organismo. Isso porque tanto os pacientes que acabaram morrendo de Covid (58%) quanto aqueles que tiveram alta (42%) apresentavam níveis similarmente altos de HERV-K. Níveis elevados desse vírus já foram detectados em indivíduos com outras doenças, como câncer de pulmão, esclerose múltipla, artrite e síndromes neurológicas. Por isso, é possível que a presença aumentada de HERV-K seja uma consequência, não causa, da Covid grave.
Para testar essa hipótese, os cientistas infectaram dois tipos de célula humana, em laboratório, com o Sars-CoV-2: monócitos (pertencentes ao sistema imunológico) e Calu-3 (linhagem de células pulmonares). Após a infecção, os monócitos passavam a expressar mais genes do vírus ancestral – mas, com as células Calu-3, isso não aconteceu.
O resultado parece sugerir que a conexão entre o coronavírus e o HERV-K tem a ver com o sistema imunológico – cuja hiperativação está relacionada a casos graves de Covid-19. Os cientistas constataram, inclusive, que ambas as coisas acontecem ao mesmo tempo: níveis aumentados de HERV-K vieram junto com níveis aumentados de monócitos e interleucinas, o que indica maior atividade do sistema imune. Uma possibilidade é que o despertar do HERV-K, com a expressão de genes desse vírus, excite o sistema imunológico e favoreça a reação exagerada típica da Covid grave.
Mas, novamente, ainda não dá para cravar o que acontece primeiro: o HERV-K pode estar reaparecendo como consequência da hiperinflamação, e não ser a causa dela. De toda forma, o estudo chama a atenção – pois relaciona, pela primeira vez, esse vírus ancestral à progressão da Covid – e abre uma nova linha de investigação sobre a doença. Em que cada novo indício, como é típico do Sars-CoV-2, traz consigo uma série de novas dúvidas.