Terceira dose da vacina tem disputa entre ciência, política e interesses econômicos
Europa começa a oferecer reforço das vacinas para certos grupos, mesmo sem comprovação científica, e já tem contratos para mais 1,9 bilhão de doses; países ricos vivem superoferta de vacinas, e indústria farmacêutica defende a aprovação de dose adicional
Europa começa a oferecer reforço das vacinas para certos grupos, mesmo sem comprovação científica, e já tem contratos para mais 1,9 bilhão de doses; países ricos vivem superoferta de vacinas, e indústria farmacêutica defende a aprovação de dose adicional
A Alemanha anunciou que, a partir do dia 1 de setembro, irá oferecer uma terceira dose das vacinas da Pfizer e da Moderna para idosos e pessoas imunodeprimidas (com doenças que enfraquecem o sistema imunológico). O país segue o exemplo de Israel, que na semana passada começou a aplicar a terceira dose em pessoas acima de 60 anos, e da Rússia, que desde julho oferece o reforço para quem se vacinou há mais de seis meses – mesma regra adotada pelos Emirados Árabes. A França, que já oferece a terceira dose para imunodeprimidos, pretende estendê-la ao público acima de 75 anos. O Reino Unido, que recentemente abandonou as máscaras e as restrições sanitárias, é o mais agressivo: a partir de setembro, quer aplicar o reforço em todos os cidadãos acima de 50 anos.
Há um movimento rumo à terceira dose. Mas não existem evidências científicas, hoje, provando que ela seja realmente necessária. Vários estudos constataram que, alguns meses após a vacinação, os níveis de anticorpos caem – mas isso é normal e esperado. Ao mesmo tempo, há estudos comprovando que todas as vacinas (inclusive a Coronavac, que costuma ter menos dados publicados) são capazes de construir memória imunológica, ou seja, preparam o organismo para que ele volte a produzir anticorpos contra o coronavírus em caso de infecção. Sabe quando você lê uma notícia dizendo que a terceira dose da vacina X “aumenta muito os níveis de anticorpos”? É a memória imunológica funcionando: o corpo produz mais anticorpos justamente porque “lembra” do antígeno (a proteína spike ou o vírus inativado contidos nas doses anteriores da vacina).
Talvez até tenhamos de tomar uma terceira dose da vacina, ou mesmo um reforço todos os anos; mas, com o que a ciência sabe hoje, não é possível afirmar isso. A resposta só virá com o tempo. Se o número de hospitalizações e mortes por Covid entre vacinados começar a subir muito, será um sinal de que as vacinas estão perdendo força. Por enquanto, não é o que tem acontecido: nas áreas de maior cobertura vacinal, o índice de óbitos não está subindo (mesmo com a disparada de casos em regiões afetadas pela variante Delta).
Até no Brasil, onde a vacinação é pouco adiantada, isso está acontecendo: em São Paulo, o índice de ocupação das UTIs caiu para 49,2% – contra 92% no pior momento da pandemia. Hoje, apenas 2% dos hospitais particulares estão com as UTIs lotadas, contra 62% em junho. As vacinas estão funcionando.
Mas por que, então, vários países estão partindo para a terceira dose? Por dois motivos. O primeiro é que eles têm vacinas sobrando. Por precaução, para reduzir o risco de faltar vacina, os países ricos compraram o dobro das doses necessárias. E, agora, precisam fazer alguma coisa com elas antes que estraguem – antes de decidir pela aplicação da terceira dose, Israel tinha 1,4 milhão de vacinas se aproximando do vencimento.
É bem possível que, a médio prazo, a terceira dose comece a ser estendida para mais faixas etárias (inclusive no regime de vacinação heteróloga, em que a pessoa recebe uma dose de reforço de outra marca). Os números apontam nessa direção. Em maio e junho, a Comissão Europeia assinou contratos para adquirir mais 1,8 bilhão de doses da Pfizer e 150 milhões da Moderna. Isso dá mais três doses para cada habitante do bloco europeu. E também significa que a AstraZeneca, cuja vacina foi deixada de lado pela Europa, estará com capacidade de produção sobrando para atender outras regiões.
A indústria farmacêutica tem interesse natural em vender. Conforme a pandemia começa a se tornar menos dramática, ao menos nos países onde há mais imunizados, é normal que comecem a aflorar pressões econômicas para que as autoridades autorizem mais doses das vacinas. Tanto é assim que em 8 de julho, no mesmo dia em que a Pfizer divulgou um comunicado defendendo a dose de reforço, o CDC e a FDA americanos emitiram uma nota conjunta pisando no freio: disseram que a terceira dose só será autorizada quando/se houver vários tipos de dado, de fontes independentes, comprovando essa necessidade.
Seja como for, existe uma superoferta de vacinas no hemisfério Norte – e é por isso que vários países estão começando a oferecer a terceira dose. Em testes clínicos, ela não causou mais reações adversas do que as doses anteriores, então os governos entendem que não há grande risco em aplicá-la. E pode, também, haver um benefício.
Esse é o segundo motivo. As vacinas são eficazes contra a variante Delta do coronavírus, com uma ressalva: embora continuem oferecendo alta proteção contra Covid grave, elas não são tão boas para impedir a transmissão do vírus. Pessoas vacinadas também podem contrair a variante Delta – e, embora raramente desenvolvam sintomas graves, elas podem ter alta carga viral, similar à de pessoas não vacinadas e suficiente para transmitir o Sars-CoV-2. A vacina evita a Covid; mas não barra a circulação da Delta na sociedade.
Em tese, a terceira dose poderia ajudar a frear essa propagação. Não existem estudos comprovando isso, mas é provável (ao aumentar a quantidade de anticorpos, mesmo que temporariamente, ela reduz a chance de a pessoa contrair, e portanto transmitir, Delta). Por esse raciocínio, a terceira dose até traz algum benefício ao indivíduo, mas sua maior utilidade é outra. Impedir que o Sars-CoV-2 continue se espalhando em grande escala, reduzir a possibilidade de que a Delta sofra mutações importantes – e evitar que ela dê origem a uma nova variante, resistente às vacinas.