A União Europeia existe por um motivo: conter a selvageria dos europeus
Durante a Segunda Guerra, em Argel, capital da então colônia francesa Argélia, Jean Monnet estava debruçado sobre um mapa da Europa cheio de marcações de lápis. Um amigo que acompanhava a cena se aproximou. “Essa é a fonte de todos os problemas”, disse Monnet com os dedos apontados para as regiões do Ruhr, na Alemanha, […]
Durante a Segunda Guerra, em Argel, capital da então colônia francesa Argélia, Jean Monnet estava debruçado sobre um mapa da Europa cheio de marcações de lápis. Um amigo que acompanhava a cena se aproximou. “Essa é a fonte de todos os problemas”, disse Monnet com os dedos apontados para as regiões do Ruhr, na Alemanha, e Lorraine, na França. “É do carvão e do aço de lá que os franceses e os alemães fazem seus instrumentos de guerra. De um jeito ou de outro precisamos extrair essas regiões dos dois países”.
Era uma ideia mais imaginativa e sutil que a do general De Gaulle, que propôs, após a vitória aliada, o demantelamento total da indústria e da unidade territorial da Alemanha.
Em 1950, a França propôs que sua produção de carvão e de aço, assim como a alemã, fosse submetida a uma autoridade superior. Bélgica, Holanda e Luxemburgo, países atropelados pelos nazistas em seu caminho para conquistar Paris, e a Itália, derrotada ao lado dos alemães, se juntaram à turma. A Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca) foi a base da Comunidade Econômica Europeia e, portanto, a avó da União Europeia como a conhecemos. Jean Monnet, primeiro presidente da Ceca, é considerado hoje um dos fundadores da Europa contemporânea.
Ou seja, a União Europeia não foi criada, em primeiro lugar, para ajudar países pobres do continente a se desenvolverem nem os ricos a ampliar seus mercados. Ela existe para conter algo tão europeu quanto as ruelas medievais e os carros diminutos: a selvageria, a violência. Porque se tem algo que o europeu faz bem desde sempre, muito mais que vinho, cerveja, queijo ou móveis bacanas, é guerra.
O resto veio depois. As críticas à direita e à esquerda sobre os problemas econômicos da UE e os dilemas existenciais do euro se acumulam. Ora os mais ricos abusam dos mais pobres, os pobres são folgados e não trabalham, os pobres só querem os benefícios, os ricos não reconhecem que são privilegiados, os ricos precisam sempre socorrer os pobres, que não fazem a lição de casa e querem tudo de mão beijada. É praticamente a mesma ladainha dicotômica de boteco sobre poderosos e desafortunados, só que com Estados nacionais assumindo os papéis de pessoas.
Mas é aí que a economia lustra a política. Uma organização econômica supranacional ajuda a conter ímpetos belicosos porque torna as fronteiras mais porosas a negócios, ideias, mercadorias e pessoas. Uma entidade em que líderes de todas as nações envolvidas trabalham juntos dá menos espaço a crises nervosas de nacionalismo carente. Os cientistas políticos Bruce Russett e John Oneal afirmam que democracia, comércio e participação em organizações intergovernamentais formam um triângulo pacificador que afasta a violência. Eles concluíram que as chances de dois países que se destacam nesses três quesitos entrarem em guerra é próxima de zero. Por isso mesmo, jamais um membro da UE entrou em guerra com outro.
Isso não só é bom como necessário para o mundo quando se trata do continente cujos impérios mandaram e desmandaram em praticamente todo o planeta por cinco séculos (o Reino Unido conseguiu a proeza de ter invadido 88% dos países reconhecidos hoje pela ONU). Trata-se de um continente que registrou – de acordo com o Catálogo de Conflitos, organizado por Peter Brecke, da Universidade de Utrecht, na Holanda – 1.166 guerras entre 1400 e 2010. Isso dá quase dois conflitos por ano, e nessa conta entram as horrendas guerras de sucessão da Áustria (500 mil mortos) e da Espanha (700 mil mortos), as Guerras Napoleônicas (4 milhões) a Guerra dos Trinta Anos (7,5 milhões) e uma penca de conflitos religiosos que quase apagaram a Alemanha e a França (sim, sempre elas) do mapa – além, claro, das duas guerras mundiais (15 e 66 milhões de mortos, respectivamente).
Predação, prevenção da predação e honra levaram a Europa inteira a viver por séculos em um estado em que a paz era apenas um intervalo entre guerras. Desse ponto de vista, o Holocausto e os outros traumas da Segunda Guerra são o piso mais alto de um grande edifício de horrores erguido durante séculos.
Então, uma professora que colocasse uma cerca no parquinho para evitar que os moleques mais briguentos da turma enchessem os bolsos de pedras e armassem seus estilingues para começar mais uma confusão no pátio fazia todo sentido no mundo pós-guerra. Primeiro a gente evita a pancadaria, depois a gente vê como todos se ajeitam, se vai ter dinheiro para o lanche do recreio ou se vamos ter que voltar a roubar maçã do terreno baldio ao lado. E vamos levando.
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No referendo semana passada no Reino Unido, os idosos votaram em peso, enquanto boa parte dos jovens pulava na lama de Glastonbury – só para se indignar depois com a vitória do “Brexit”. A saída do país da UE fez grupos de extrema-direita e ultranacionalistas espumarem de alegria na Itália, na França, na Alemanha e em outros países. E levantou, de novo, uma questão que nunca morreu: a União Europeia vai acabar?
Para tentar explicar por que o Reino Unido decidiu sair, uma corrente circulou nas redes sociais fazendo uma analogia da UE com um churrasco. Na anedota, o Reino Unido é o cara rico que leva Heineken e segura a onda dos arruaceiros que contribuem apenas com marcas como Crystal (uma cerveja bem mais barata), mas bebem toda a Heineken levada pelos playboys do evento. Para piorar, eles ainda levam uns convidados penetras, mais baderneiros ainda, que só contribuem com Corote, aquela cachaça que vem numa garrafinha PET que ironicamente lembra uma granada.
Mas, “penetras”? Se existe um grupo chamado “União Europeia”, então qualquer país da Islândia ao Azerbaidjão têm, em tese, direito de fazer parte do clube dos 28 membros que logo serão 27. Em todo caso, não se tem notícia que Austrália, Indonésia, África do Sul ou Panamá sejam membros da UE – aí, sim, teríamos penetras bons de bico (aliás, já tem gente fazendo petição para o Brasil ser o novo integrante do bloco!).
Por mais que uns gastem mais e outros façam mais bagunça (o que, convenhamos, é via de regra em qualquer churrasco), ainda assim isso é uma realidade melhor do que cancelarem a festa de uma vez, deixando todos os presentes sem ter o que fazer, bêbados e às voltas com suas eternas desconfianças, traumas e egos.
A história sabe aonde isso pode levar.