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Histórias esquecidas sobre os assuntos mais quentes do dia a dia. Por Felipe van Deursen, autor do livro "3 Mil Anos de Guerra"
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Em 1987, representante da Heineken espalhou que Corona era urina

O poder bélico das fake news ficou claro lá atrás, numa intriga banhada de cerveja.

Por Felipe van Deursen Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2024, 15h42 - Publicado em 29 jan 2018, 17h22

Nos anos 1980, beber cerveja era uma experiência diferente de hoje. Bares dedicados exclusivamente a microcervejarias da região? Nanoprodutores de garagem? Fazer pouco de IPA porque “a moda já passou, prefiro sour”? Growlers? Isso é uma realidade dos anos 2010. Mesmo nos Estados Unidos, onde a chamada revolução cervejeira começou, na década de 1970, o cotidiano cervejeiro oitentista era bem mais simples, com um cenário dominado por grandes marcas e uma quase total ignorância sobre cervejas artesanais. E beleza.

Em 1987, representante da Heineken espalhou que Corona era urina

Não que o mercado fosse um total marasmo. Em 1981, uma marca mexicana desembarcou no país e conquistou cada vez mais gente com seu marketing praiano e ensolarado.

A Corona, produzida pelo Grupo Modelo (que hoje integra o leviatã cervejeiro AB InBev) apelava a um hipotético espírito surfista, californiano, com charme mexicano citricamente representado no limãozinho na boca da garrafa – apesar de isso ser mais uma estratégia de marketing de exportação do que uma tradição no México*  

Em todo caso, ela foi um sucesso, que começou até a ameaçar a líder por excelência entre as importadas nos EUA, a holandesa Heineken.

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Acima: comerciais natalinos das duas concorrentes, nos anos 80.

A Corona estava com tudo, mas, em 1987, sua sorte virou. Lojas começaram a dispensá-la e consumidores, a boicotá-la. Isso porque um rumor se espalhou quase como fake news no Facebook: mexicanos estariam urinando nas garrafas exportadas aos EUA. A história, supostamente, teria sido divulgada no tradicional programa 60 Minutes, e ficou tão grande que em algumas cidades as vendas despencaram quase 80%.

A Barton Beers, distribuidora de Corona no país, decidiu investigar a origem do boato, e acabou descobrindo que quem começou a espalhar a história foi a Luce and Son, justamente uma das varejistas que comercializavam Heineken para os americanos. 

A Corona entrou com um processo pedindo US$ 3 milhões em ressarcimento, mas as empresas fecharam um acordo extrajudicial: a Luce and Son precisou declarar publicamente que “não, a Corona não é contaminada com urina”. 

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Só que o estrago estava feito. Como tantas notícias falsas, essa se espalhou facilmente, ancorada na credibilidade do 60 Minutes: a rede CBS, dona do programa, informou que o 60 Minutes não havia falado de cerveja nos últimos quatro anos.  

Poucos se preocupavam em checar se a notícia era real ou não, e o boato correu os EUA de costa a costa. A má fama grudou na imagem da Corona como o cheiro acre que alguns becos e calçadas adquirem às custas das bexigas esvaziadas no Carnaval.

A Corona decidiu tratar o assunto abertamente com a imprensa, e foram necessários anos de artigos desmistificadores até que a história enfraquecesse. Você pode ser fã de Heineken e/ou de Corona ou de nenhuma delas ou de nenhuma cerveja em geral. Não importa aqui. O que importa é que essa história deixou encorpado, na época, o estereótipo preconceituoso do mexicano. E o que ela pode nos dizer hoje é que uma notícia falsa pode causar estrago real – e que não precisamos de redes sociais para isso.

(Procuradas, a Heineken e a AmBev, por meio de suas respectivas assessorias de imprensa, preferiram não comentar o assunto.) 

*Há um motivo científico para o uso de limão em cervejas de garrafa transparente, como a Corona. A luz solar afeta a qualidade do produto, e a rodela de limão ajuda a mascarar o problema. Por isso, fabricantes e especialistas sempre lembram: guarde suas cervejas à sombra.

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