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O dia em que Stan Lee acenou para mim

Por Otavio Cohen
Atualizado em 12 nov 2019, 14h16 - Publicado em 3 fev 2015, 18h30

Não sou o maior fã de quadrinhos do mundo. Sei o suficiente para entender por que a internet fica furiosa ou satisfeita toda vez que uma nova adaptação estreia nos cinemas ou na TV. Mas não tenho uma coleção tão invejável de edições originais quanto alguns amigos. Por isso, acho que o acaso foi bem injusto quando me colocou perto da pessoa viva mais importante do mundo das HQs. Perto demais, até. Eu vi Stan Lee a um palmo de distância.

 

A surpresa veio como uma reviravolta num roteiro que já era bem interessante. Eu estava em Los Angeles numa viagem de trabalho. Lá, entrevistei dois atores de um blockbuster de ficção científica. Mas, na tarde do sábado, 31 de janeiro de 2015, tive tempo de passear pela cidade. Segui a sugestão de uma amiga e visitei a Farmers Market, uma feira de comida de rua. A feira fica colada num shopping center ao ar livre chamado The Grove, que tem todo tipo de loja. O lugar estava lotado de turistas, crianças e cachorros e comecei a ficar agoniado com a multidão. Então, avistei na outra quadra uma placa que me dava alguma esperança de sossego: o letreiro da livraria Barnes & Noble. Quando ainda namorava a vitrine, me deparei com outra placa que muito me interessou:

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Minha sorte era inacreditável. A livraria tinha eventos programados para praticamente todos os fins de semana de janeiro e fevereiro. As meninas do Fifth Harmony visitariam o lugar na semana seguinte e, em mais alguns dias, David Duchovny (de Arquivo X) lançaria lá o seu livro. Mas, naquele sábado, em apenas algumas horas, Stan Lee apareceria para uma sessão de autógrafos e perguntas e respostas. Com o resto do dia livre, entrei e comprei o livro.

Parte boa: ele já vinha autografado pelo Stan Lee!

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Parte ruim: isso significava que ele não iria fazer dedicatórias individuais. Mas, tudo bem, ele tinha 92 anos, a gente perdoa. Com o livro na mão, arrumei um lugar na Starbucks que fica lá na livraria, para esperar. Dentro do livro, veio uma pulseirinha vermelha que daria acesso à área onde o evento aconteceria. Que emoção, uma pulseirinha! Me senti muito VIP nessa hora.

O livro – The Zodiac Legacy – parecia interessante. Ele conta a história de Steven Lee, um cara de 14 anos que se envolve numa aventura durante uma excursão escolar em Hong Kong. Ele descobre um esquema misterioso que envolve humanos com superpoderes e uma conspiração de dominação mundial. Stan Lee assinou Zodiac junto com Stuart Moore e as ilustrações são do artista Andie Tong. Me lembrou bastante as aventuras de fantasia e ficção científica que eu lia quando ainda estava na escola. A diferença é que o livro já veio com o selo Disney, um spoiler da pretensão de transformá-lo em algum produto de animação ou live-action no futuro.

Mas, depois de umas 20 páginas, comecei a achar o livro esquisito. Era como se a Disney quisesse aproveitar a assinatura de Stan Lee para tentar emplacar uma história meio complexa (no mau sentido) que me cheirava a fracasso. Duvidei que ele tivesse sequer escrito alguma daquelas frases. Poderia apostar que todas elas são 100% do tal Stuart Moore, que, disse-me o Google, também é um autor famoso da Marvel (eu disse que eu não era o fã de HQs mais dedicado do mundo). Mas qualquer um que conheça melhor do que eu a biografia de Stan Lee diria que o teor da obra é parecido com as história mirabolantes de ficção científica que ele escreveu antes de se tornar famoso como o criador do Homem-Aranha e dos Vingadores.

Então, decidi seguir em frente. Até que uma ideia me veio à cabeça: estou em Los Angeles, numa livraria popular numa região turística. Um fã de verdade não estaria aqui tomando suco no Starbucks. Um fã de verdade estaria acampando no local de eventos da livraria. Fui correndo pra lá e, sim, já tinha bastante gente na minha frente na fila. Pelo menos tenho a pulseirinha vermelha, pensei.

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Na fila, a tensão aumentou – e o sentimento de que eu não merecia tanta sorte também. Na minha frente estava uma jovem de mechas cor-de-rosa no cabelo e uma tatuagem no braço em que se lia “fiction“. Atrás de mim, uma mulher de uns 50 anos com uma camiseta cheia de super-heróis da Marvel e uma HQ na mão. A segurança abriu o auditório improvisado. Quando chegou minha vez de entrar, descobri que minha pulseirinha vermelha não me garantia uma cadeira: eu teria que ficar no fundo, numa parte afastada do palco, junto com os outros meros mortais, de pé. Apenas as pessoas com a superpoderosa pulseirinha prateada conseguiriam ver Stan Lee de perto mesmo. Fuén.

Descobri que, para ter uma pulseirinha de prateada, você tinha que fazer um cartão fidelidade da Barnes & Noble e ter a sorte de ser um dos primeiros 40 membros a chegar. Faltava uma meia hora para as 14h e ainda havia cadeiras vagas. Claro que cogitei voltar para o caixa e assinar qualquer documento que fosse para ficar mais perto. Mas nem existe Barnes & Noble no Brasil, o que é que eu ia fazer com esse cartão fidelidade? Recolhi-me à minha insignificância. O palco não estava tão longe assim, eram uns 15 metros, no máximo, bem ao alcance do zoom da câmera ruim do meu celular.

O lugar estava cheio de fãs de verdade de quadrinhos: um loiro barbudo que me lembrou o Thor (talvez ele faça cosplay nas horas vagas), muitas crianças com símbolos de heróis estampados em camisetas, moças, velhos, hispânicos, WASPs. E eu. Decidi colocar a modéstia de lado e me assumi para mim mesmo como “fã de verdade” também. Posso não saber tudo de Marvel, mas quadrinhos sempre fizeram parte da minha vida – inclusive na época em que eu desenhava minhas próprias histórias e obrigava a família a fazer leituras críticas. Parece que eu merecia estar ali também.

Acho que o acaso estava certo quando me colocou naquela livraria. Quando eu chegava a essa conclusão em balões de pensamento, começou a gritaria. Em uma fração de segundos, percebi que eu estava colado na faixa que isolava o pessoal do meu “setor”, e muito perto da saída do auditório. E da entrada também. Stan Lee precisaria necessariamente passar por ali quando chegasse. E foi assim que, celular na mão, gravei esse vídeo:

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Sei lá para quem ele acenou. Na minha cabeça, foi pra mim. Caiu a ficha de que eu tinha uma oportunidade única na vida: ouvi-lo falar ao vivo. Não era uma participação de 5 segundos num filme no cinema, não era um vídeo online. Ele estava ali, a 15 metros de mim.

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Stan Lee tinha algum tipo de superpoder. Ele tinha mais de 90 anos, não escutava direito, provavelmente devia sofrer com uma série de outras limitações por causa da idade. E mesmo assim, tudo o que ele falava parecia sair de um roteiro de quadrinhos – daqueles bem-humorados, não dos sombrios. Nos primeiros cinco minutos da sessão, ele discutiu a importância de incluir personagens não brancos na ficção. O protagonista de The Zodiac Legacy é descendente de chineses. Quando eu achei que o mediador da sessão fosse começar a falar demais sobre o livro que eu ainda não tinha terminado de ler, ele abriu para as perguntas. E foi aí que tive a chance de recolher algumas pérolas da boca da mente mais criativa das HQs.

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A primeira pergunta foi do próprio mediador: “Como é ser o criador de alguns dos mais populares e amados personagens dos quadrinhos?”. A resposta veio rápido: “Como assim ‘alguns dos mais’? Eles são OS MAIS populares e amados”. Se algum fã do Batman estava presente, ele provavelmente achou melhor ficar quieto nessa hora. O escritor confessou que seu personagem preferido é o Homem-Aranha. E o vilão que ele mais gosta é o Doutor Destino “ele é um rei em seu próprio país. Tecnicamente, nada que ele faz é contra a lei no lugar onde ele vive. O cara nem é criminoso”, disse Stan Lee.

Apesar da idade, Stan Lee não deu sinais de que quer se aposentar. Durante a sessão, revelou que suas próximas participações especiais em filmes e séries da Marvel seriam bastante surpreendentes. E ainda garantiu: “minhas participações são o motivo do sucesso dos filmes! Quem se distrai e perde aqueles dois ou três segundos volta para a bilheteria e compra outra entrada”.

Meia hora depois do início da sessão, o mediador anunciou que Stan Lee precisava ir embora em breve. Não tive tempo de formular uma boa pergunta nem improvisar no inglês. Mas, lá do fundo – bem atrás de onde eu estava – veio a questão que eu gostaria de ter feito: “Stan Lee, algum personagem que você criou deu errado?”. “Não. Pode ter sido sorte. Mas tudo o que eu criei até hoje virou sucesso”, ele respondeu.

Nessa hora, me lembrei das minhas desconfianças sobre a qualidade ou o desempenho de The Zodiac Legacy. E percebi que eu tinha sido bobo. Eu estava diante de uma lenda, um cara com seis décadas de carreira, que ajudou a construir boa parte das referências de cultura pop que temos hoje. Ele fez personagens que tanto meu pai quanto meu sobrinho de 5 anos são capazes de reconhecer e amar. Sua obra tem mais a ver com a minha vontade de ser escritor do que eu imaginava.

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Todo mundo sabe que errar é humano. Mas Stan Lee estava mais para super-herói.

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