Conheça a Bacia de Itaboraí, o berço dos mamíferos brasileiros
Já foram encontrados fósseis de marsupiais, tatus e de grupos de mamíferos que nem existem mais. Conheça esta Unidade de Conservação do Rio de Janeiro.
Este é o 22º texto do blog Deriva Continental, escrito por Lílian Paglarelli Bergqvist, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Você só está vivo porque, há alguns anos, a necessidade de nutrientes para o desenvolvimento do seu corpo foi suprida pela placenta, dentro do útero da sua mãe. Isso faz de você um mamífero do grupo Eutheria, assim como a maioria das espécies dessa subclasse. Existem ainda os mamíferos Metatheria – que se desenvolvem parcialmente em uma bolsa externa, como os cangurus e gambás. E também os Prototheria, um grupo restrito à Austrália que abriga os (bizarros) ornitorrincos e equidnas, os únicos mamíferos a colocar ovos.
Os fósseis mais antigos de mamíferos Eutheria e Metatheria datam do início do período Cretáceo, há 125 milhões de anos, e foram encontrados na Formação Yixian, no nordeste da China. A partir de lá, esses mamíferos foram se dispersando e diferenciando, dando origem a várias linhagens primitivas que posteriormente deram origem às espécies que conhecemos hoje.
Há dois únicos registros fósseis dessas linhagens primitivas no Brasil. Eles foram encontrados na Formação Adamantina, da Bacia Bauru (oeste do estado de São Paulo), e datam de 88 milhões de anos atrás.
Esses mamíferos conviveram com os dinossauros no período Cretáceo, mas eram menos diversificados e numerosos que os atuais. O grande evento de extinção ocorrido no final do Cretáceo, há 66 milhões de anos, dizimou os dinos e possibilitou uma irradiação e diversificação dos mamíferos. (Sem os répteis gigantes como predadores, eles puderam se reproduzir e ocupar ambientes que antes eram dominados pelos dinossauros). Restos fósseis de algumas dessas linhagens foram encontradas no Rio de Janeiro, na Bacia de Itaboraí.
A Bacia de Itaboraí é uma das sete bacias que se formaram numa depressão alongada, paralela à costa, que se estende do Estado do Paraná ao Estado do Rio de Janeiro, denominada “Rift Continental do Sudeste do Brasil” (RCSB). A formação do RCSB é uma consequência dos fenômenos geológicos iniciados no Jurássico Superior (160 milhões de anos atrás), que levaram ao fraturamento do continente Gondwana e à formação do Oceano Atlântico, separando o Brasil da África.
A Bacia de Itaboraí
A Bacia de Itaboraí é a mais antiga do Rift, tendo se formado no início do Período Paleógeno (há 60 milhões de anos). Ela possui 1,5 km no maior eixo e 0,5 km no menor. Está limitada ao sul pela Falha São José: uma ruptura que provocou o deslocamento de blocos de rochas adjacentes. O bloco norte afundou e na depressão se formou a Bacia de Itaboraí. As rochas que preencheram a Bacia foram posteriormente cortadas pela Falha Transversal, que a dividiu em duas porções desiguais: uma maior a leste e uma menor a oeste.
Os vários tipos de rochas calcárias da Bacia de Itaboraí estão agrupados em dois grandes grupos, de acordo com a sua origem: os calcários travertinos, formados a partir de fontes de águas quentes ricas em carbonato de cálcio (CaCO3); e os calcretes, originados a partir da precipitação de CaCO3 no solo. Essa precipitação ocorre tanto por ação de bactérias e raízes quanto pela evaporação de águas subterrâneas rica em CaCO3 , quando estas afloram na superfície em um ambiente semiárido.
Os calcretes formam a base da sequência sedimentar, a qual está sobreposta por uma intercalação de calcretes e travertinos. Na porção noroeste da bacia, cobrindo uma pequena parte dos calcários, foi encontrada uma rocha vulcânica rara chamada ankaramito, formada pela consolidação de um pequeno derrame ocorrido há 55 milhões de anos.
Entre 1933 e 1984, a Companhia Mauá explorou os calcários da Bacia de Itaboraí, com especial interesse nos calcários travertinos, que possuem acima de 60% de teor de CaCO3, sendo melhores para a fabricação do cimento. O Maracanã e a Ponte Rio-Niterói, por exemplo, foram construídos com o calcário da Bacia de Itaboraí.
Mamíferos na Bacia
O primeiro indício da presença de vertebrados na bacia (uma maxila de um crocodilo) apareceu em 1934, após o início da exploração comercial – que foi também responsável pela descoberta de uma biodiversidade abundante.
A maioria dos fósseis de vertebrados foram recuperados de fendas verticais formadas pela dissolução do calcário que preencheu a bacia. Essas fendas foram descobertas com o avanço da exploração do calcário: a primeira foi encontrada no final da década de 1940, e as últimas no final da década de 1960. Elas estavam preenchidas por marga, um tipo de rocha feita de calcário misturado com argila. Enxurradas ocasionais transportavam o sedimento margoso para dentro destas fendas, carregando também as ossadas dos animais mortos nos arredores.
Além de mamíferos, também foram encontrados fósseis de restos de répteis (crocodilos, tartarugas e cobras), aves e anfíbios (sapos e cobra-cega). Os gastrópodes – outro grupo abundante – foram encontrados nos calcretes que formam o assoalho da bacia. Também há registro de fragmentos de troncos, folhas, sementes e pólens. Dado a diversidade de vida fóssil na Bacia de Itaboraí, acredita-se que no passado existia um lago parcialmente perene por lá.
Graças aos mamíferos, a Bacia de Itaboraí ganhou notoriedade internacional. A diversidade do grupo e o estágio evolutivo em que se encontravam são tão relevantes que levaram pesquisadores a propor uma nova terminologia geocronológica. Na geologia, chama-se de “idade-mamífero-terrestre” um período da história da Terra em que viveram determinados grupos de mamíferos, com características morfológicas e diversidade próprias. Essas idades recebem o nome da localidade que possui a maior expressividade de grupos fósseis. A nomenclatura proposta é a Idade-Mamífero Itaboraiense.
A Idade-Mamífero Itaboraiense compreende um período de cerca de 4 milhões de anos: entre 53 e 49,5 milhões de anos atrás, no início do Eoceno. Essa é a idade atribuída aos fósseis da Bacia de Itaboraí, mas estudos em andamento questionam essa proposta, defendendo uma idade mais antiga.
Mas, afinal, quem são esses mamíferos que tornaram a Bacia de Itaboraí tão importante e conhecida internacionalmente, ganhando o apelido de “berço dos mamíferos do Brasil”?
Dos sete grupos de mamíferos registrados na bacia, cinco não possuem representantes atuais. Eles são informalmente chamados de ungulados (mamíferos com cascos na extremidade dos dedos), e possuem nomes bem diferentes: “Condylarthra”, Litopterna, Notoungulata, Astrapotheria e Xenungulata.
Os condilartras são considerados um grupo artificial que abriga mamíferos onívoro com dentição e esqueleto primitivos. Fósseis deste grupo são encontrados principalmente na América do Norte, de onde migraram para a América do Sul e deram origem a algumas das linhagens que se desenvolveram aqui.
Os demais grupos são todos herbívoros e nativos da América do Sul. Os litopternas e notoungulados, são parentes distantes dos perissodáctilos modernos (como cavalos e rinocerontes). Eles abrigam os menores, mais abundantes e mais diversificados ungulados da Bacia de Itaboraí.
Os astrapotérios eram animais grandes, que possuíam presas no lugar dos dentes caninos e mandíbulas muito fortes. É o único grupo cujos fósseis foram encontrados tanto nas fendas como no calcrete.
Os xenungulados eram os gigantes de Itaboraí, com cerca de 2 metros de comprimento. Características na sua dentição e esqueleto justificam o nome dado ao grupo (xenos significa estranho). É um dos grupos de ungulados mais raros da Bacia de Itaboraí, mas o único que possui o esqueleto quase todo conhecido.
Dentre os grupos de mamíferos modernos, apenas os Metatheria e Cingulata estão registrados como fósseis na Bacia de Itaboraí.
Os metatérios (grupo que abriga os marsupiais), apesar de serem menos abundantes que os ungulados, eram muito mais diversificados que estes. Dentre eles estão os únicos mamíferos carnívoros de Itaboraí. Já os cingulados abrigam as linhagens modernas dos tatus. Os poucos fósseis encontrados na Bacia de Itaboraí representam o mais antigo registro do grupo.
Com o fim do interesse comercial pelos calcários da Bacia de Itaboraí, a Companhia de Cimento Mauá deixou a Fazenda São José em 1984. Em 1990, a prefeitura de Itaboraí desapropriou a fazenda e em 1995 criou, por decreto de lei, o Parque Paleontológico de São José de Itaboraí, com o objetivo de preservar a sua área física, os testemunhos da geologia original e os fósseis nestas rochas – além de divulgar a importância geo-paleontológica da Bacia de Itaboraí.
Ações em parceria da prefeitura com a UFRJ e a UERJ, e com o apoio financeiro da Petrobrás, Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ), criaram um pequeno museu, melhoraram a infraestrutura e o acesso aos afloramentos remanescentes e realizaram ações de divulgação e conscientização para moradores dos arredores e estudantes. Para se adequar às normas federais vigentes, em 2018 o parque foi transformado em uma Unidade de Conservação, recebendo o nome de Parque Natural Municipal Paleontológico de São José de Itaboraí (PNMPSJI). O parque é aberto ao público e visitas podem ser realizadas mediante solicitação prévia.